Araxá: um nome para uma coruja e o sonho de um novo horizonte. Retrospectiva Semanal

Imagem: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

A coruja dos esperançosos acompanhava o movimento dos viajantes, chegando em Cuiabá, a capital de Mato Grosso, eles decidiram fazer uma parada, era meia tarde. Enquanto isso, Perséfone olhava para a coruja e estava inconformada, acreditava que o nome deveria ser menor, mais simples, Roberto orientou Ulisses para chegar na casa de um amigo, um típico morador da região, ao chegar lá, encontraram o proprietário, foi quando Roberto disse ao morador:

– Boa tarde Adriano! Será que ainda reconhece um velho amigo?

Adriano olhou para Roberto, demorou alguns segundos e reconheceu, seu ânimo se encheu de alegria, própria de amigos que se encontram depois de muito tempo, afinal já fazia 15 anos que eles não se viam, em seguida falou:

– Não é possível! Será quais são os ventos que trazem esse desaparecido, esse argentino mais brasileiro que já conheci? Vamos lá Roberto, traga seus amigos para entrar em minha casa, temos a simplicidade, pouca coisa, mas muito espaço e tempo para os amigos, irmãos de caminhada! Aliás, vocês escolheram um excelente horário para chegar, vamos lá para nosso chá com bolo!

Roberto – Você acha que foi coincidência que chegamos nesse horário? Ainda lembro da hospitalidade e do famoso chá com bolo.

Os viajantes entraram na casa de Adriano acompanhados pela coruja dos esperançosos, durante as conversas Roberto relatou, ao amigo cuiabano, sobre a busca de Inaiê, de Ulisses e de Deméter pelos irmãos, que estavam no Sul do país, bem como suas histórias de dificuldades e desafios. Diante do relato, Adriano ficou emocionado e falou:

– Sei o que é sentir as dificuldades de ter um filho, um irmão longe, faz mais de  10 anos que não vejo meu filho que foi trabalhar na FAB (Força Aérea Brasileira) em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, antes disso, ele foi estudar, como não tinha muito dinheiro, não veio mais até minha casa, no final desse mês ele virá, nos comunicamos, mas tenho muita saudade, desejo abraçá-lo, por outro lado, meu irmão não vejo faz 20 anos, ele foi morar na Austrália, foi buscar por melhores condições de vida.

Roberto – Falando de seu irmão, lembro que o fenômeno da emigração tem muitas motivações, entres elas estão a busca por novas oportunidades, pela sobrevivência, pela fuga de conflitos ou guerras!

Inaiê – Tudo isso parece ser uma marca muito forte na humanidade, nosso país foi construído ou destruído inicialmente com a chegada dos portugueses, que implicou no sofrimento e morte de muitos índios, depois a imigração forçada pela escravidão de vários povos africanos, seguida da imigração de muitos descendentes de vários povos europeus, que vinham para o Brasil e achavam que aqui era  a terra da oportunidade, grande maioria permaneceu nas terras brasileiras com muitas dificuldades de sobrevivência,  penso que o nosso país foi construído na base do sofrimento de muita gente ou com diria o sociólogo brasileiro Darcy Ribeiro: em um grande moinho de moer gente.

Deméter – Infelizmente, muitos não percebem esse fluxo migratório, que também aconteceu e ocorre internamente de uma região para outra, não por uma escolha, em que as pessoas buscam conhecer novos lugares, mas movidas pela força da necessidade de sobrevivência, pais buscando, em outros lugares, garantir o sustento da família, filhos procurando por oportunidades que não são tão fáceis. Agora fico imaginando alguém fugindo de uma guerra, até mesmo da fome, como aconteceu com muitos imigrantes que chegaram no Brasil, abandonando, não por desejo, pessoas que nunca mais terão contato. Isso parece ser a força motriz do estranhamento agindo sobre as vidas humanas, despedaçando a nossa percepção de humanidade.  

Inaiê – Saber que muitas vezes olhamos para quem chega em nosso país com uma grande desconfiança, agora imagine como fica a situação emocional de quem já perdeu muito, foi obrigado a sair pela necessidade, chegando em um lugar distante, com pessoas diferentes que ignoram ou caçoam de você, sendo que deixou para trás muita gente que ama, sente a saudade e não pode retornar!

Ulisses – Isso tudo traz muito sofrimento, fico chocado com muitas atrocidades que nós seres humanos cometemos. Eu li um livro do sociólogo Zygmunt Bauman intitulado Vidas Desperdiçadas, na apresentação ele começa dizendo que o nosso planeta está cheio.  

Adriano – Que absurdo!  Olha só, minha casa é pequena, mas é capaz de acolher a minha família e amigos. Nunca excluiria alguém pelo espaço físico. Agora imagine, o ser humano com toda tecnologia, com sua grande genialidade não é capaz de fornecer um espaço para seu semelhante, penso que do mesmo modo, que tenho minha casa, a grande  morada dos humanos é a terra, as pessoas deveriam ter seu espaço, ter o local para poder dormir e sentir que tem um lugar onde fossem acolhidas, valorizadas como seres humanos. 

Ulisses – No entanto, o sociólogo Bauman diz que isso não ocorre meramente sobre o ponto de vista geográfico ou físico.

Inaiê – Para aí! Então, em que sentido ele quer dizer?

Ulisses – Para ele de fato temos muitos moradores na nossa morada terra, mas esse não é o maior problema, mas sim o planeta está cheio no aspecto social e político. Olha só, como o irmão de Adriano e muitos outros buscam por oportunidades em outros lugares, alguns conseguem garantir uma vida digna, às vezes por um tempo, mas em geral são estrangeiros, em países que não reconhecem o seu direito de estar.

Perséfone – Como pode ser isso? O planeta não é dos seres humanos e dos demais seres da natureza? Não consigo entender!

Deméter – Minha filha, é que existe o conceito de nações, de países, que pode ser comparado com as ideias imaginadas, assim como você imagina algumas coisas e conta suas histórias! Entre as ideias imaginadas, pelos seres humanos, temos aquelas que servem para dizer para os outros que um certo lugar pertence a um determinado povo e quem for lá é visto como estrangeiro, ou seja, é de outro lugar, até pode visitar se as pessoas que lideram tais países permitirem!

Perséfone – Compreendo mamãe, mas acho estranho que somente algumas pessoas é que vão decidir onde as outras podem estar ou não, para piorar, tais indivíduos são capazes em nome de uma ideia imaginada matar ou deixar morrer de fome outras. Não consigo entender essas coisas de adultos! Qual o motivo de vocês complicarem tanto?

Todos começaram a rir pela reação da menina, ao mesmo tempo, a inocência de uma criança trazia consigo a exposição de uma lógica que estavam inseridas as vidas humanas, que embora houvesse uma interligação entre causas e efeitos, uma racionalidade, não apresentava sentido, pois trazia, como efeito, a produção do estranhamento em que todos eles faziam parte, isto é, tratava-se de uma lógica de exclusão e de privação. Em seguida Ulisses falou:

– Minha sobrinha, se o mundo aprendesse um pouco da sabedoria das crianças, como você, provavelmente seria um lugar melhor, onde todos teriam seu espaço. O sociólogo Bauman, afirma que em vários pontos do nosso planeta existem grandes movimentos de pessoas sem os meios de sobrevivência, são pessoas que são marginalizadas, inadaptadas, expulsos dos seus lugares, podem ser comparadas com  o lixo humano, que ninguém mais quer, pois a sociedade de consumo não os inclui, tais pessoas acabam não tendo mais para onde fugir, muito menos pensar no futuro. Elas são vistas como problemas para os Estados, tornando-se apenas um objeto das políticas de segurança, já que são percebidas como uma ameaça para ordem social, a ordem da sociedade de consumo. 

Deméter – Que ideia ruim, parece que tratamos o ser humano como um refugo, que são consequentes de uma lógica da modernidade, pois a qualquer momento que não formos capazes de consumir e pagar pelo nosso lugar estamos fora da ordem, do que é considerado aceitável.

Roberto – O que podemos fazer sobre isso? Não temos poder para mudar!

Novamente a menina, de sete anos, surpreendeu a todos, quando disse:

– A sua resposta é parecida com as minhas desculpas para mamãe, já que quando estou com preguiça ou não quero fazer algo digo que é difícil, que não posso fazer, nunca vou aprender. No entanto, minha mãe diz que tenho que tentar e se não fizer isso ficarei de castigo. Vejo que o ser humano se prende a determinadas ideias, que são imaginadas, daqui a pouco não quer mais mudar, tem preguiça ou medo, mas deveríamos ter vontade e executar ações para transformar, contudo, se não fizer nada, ficará tudo igual, isso até eu que tenho sete anos sei.

Todos riram, em seguida Ulisses falou para Perséfone:

– É por isso que demos o nome para essa ave de coruja dos esperançosos!

Perséfone – Sobre isso estou pensando a viagem toda! Poderíamos mudar de nome, pois é muito longo, não é legal, embora a ideia seja!

Roberto – Poderíamos usar o nome Iara,  que faz parte do folclore brasileiro, está ligada com as lendas presentes em alguns povos indígenas da Amazônia, conta-se que ela era uma jovem guerreira muito bela, admirada pelo seu pai, entretanto seus irmãos tinham ciúmes e juntos planejaram tirar sua vida, como ela era uma excelente guerreira sobreviveu ao ataque e matou seus irmãos, mas ficou sem coragem para voltar para a tribo, por isso decidiu fugir, seu pai ordenou que matassem a assassina de seus filhos, quando encontrada foi jogada no Rio Negro, quando parecia que perderia a sua vida, os peixes levaram seu corpo até a superfície e a jovem se transformou em uma bela sereia. A partir daquele momento, Iara passou a viver seus dias cantando nas águas, quando chegava ao fim da tarde seu canto ecoava nas águas, podendo ser ouvido em longas distâncias.

Perséfone – A história é linda e o nome também! No entanto, não parece combinar com a nossa coruja.

Deméter – Então, poderíamos chamá-la de Araxá, que é um nome Tupi Guarani e pode ser traduzido como horizonte, vista do mundo.

Perséfone – Araxá combina!

Inaiê – A ideia de horizonte tem o  indicativo de caminho, a vista daquele que tem esperança e que percebe o mundo como um lugar  que pode ser visto, sem contar que tem o sentimento de poder ir além do que é dado, passando a imagem que é possível continuar, porquanto existe um lugar para percorrer, sem que ninguém impeça em nome de uma ideia sem sentido.

Araxá foi o nome dado para a coruja que passou ter um sentido simbólico de sabedoria dos viajantes, indicando as possibilidades de visualizar o horizonte, sobrevoando para o alto, tendo a magnitude da beleza,  como em um  sonho, posteriormente voltando para as mentes, tendo como efeito uma ideia imaginada, percebendo os estranhos não mais como refugo, não havendo mais vidas desperdiçadas, construindo e reconstruindo relações com os outros, permitindo conhecer novas realidades, novos lugares, no simples encontro de olhares, ao mesmo tempo, surgiu  a crença que todos fazem parte da grande terra mãe, cuja casa nunca está cheia para seus filhos e esses não se perderiam mais na fluidez das relações, dado o fato em haver um  propósito  bem sólido em buscar a humanidade perdida no emaranhado da estranheza.

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Carlos Weinman

Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

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