Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“E a cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire” (um dos versos mais lindos, criados por Chico César, de toda a poesia popular brasileira).
Um dos dez maiores pedagogos do mundo visitou o Colégio Estadual de Olinda, onde eu estudava o Segundo Grau, prestes a entrar na Universidade. Naquela mesma noite, eu queria ir à casa de uma menina que eu paquerava, e não tinha o menor interesse naquele barbudo, que meus colegas de colégio apelidaram de Papai Noel (era perto do Natal). A diretora quis obrigar-nos a assistir a palestra de Freire e repetia que estava muito feliz pela ilustre visita. De longe, escutei ele, Paulo, nos liberar, falando de autonomia: quem não quiser me escutar não deveria ser obrigado. Foi assim que, pela primeira vez, ele chamou a minha atenção, surpreendendo-me. Foi a minha primeira aula de Pedagogia da Autonomia.
Naquela noite, eu também fui feliz.
Em seguida, tenho uma vaga lembrança daquela famosa assembleia do Sindicato dos Professores, no auditório que fica nos fundos de uma igreja do Recife. Eu estava ajudando numa filmagem e Paulo começou e prosseguiu durante um bom tempo se referindo às professorAs, no feminino, de forma inclusiva para toda a plateia (majoritariamente feminina). Até que um professor, incomodado, reagiu. Disse Paulo: “a placa fora do sindicato fala em professores, no masculino, mesmo a maioria sendo mulheres; e foi sempre assim; como eu nunca vi nenhuma professora reclamar disso, resolvi provocar esse debate e o porquê do seu incômodo (e o porquê delas nunca terem se incomodado com isso).
Ainda hoje o sindicato mantém o nome, dos ProfessorEs. A maioria continua sendo de professorAs.
Também na juventude, fui presenteado com a Pedagogia do Oprimido por uma professora de Teatro do Oprimido, de um grupo chamado Vivencial Diversiones – com quem fiz minhas primeiras oficinas, no Teatro do Bonsucesso. Tenho esse livro – um dos mais traduzidos em todo o mundo – comigo, até hoje. Na primeira vez que eu tentei dar uma Conferência sobre a Pedagogia e o Teatro do Oprimido (a relação entre Freire e Boal), em Barcelona, o proprietário daquela escola pediu pra mudar o nome, pois Oprimido é “uma palavra que remete ao século passado”, segundo ele.
Num aniversário, ainda em Olinda, ganhei de presente a biografia (imensa) do grande mestre. Na contracapa, foto de Paulo no lixão de Aguazinha (um dos maiores lixões da Região Metropolitana do Recife), em meio às crianças catadoras de lixo, e um jovem educador ao seu lado. Eu identifiquei o educador, ali mesmo, sentado ao meu lado, numa atividade da Escola Sindical da CUT com a Escola Quilombo dos Palmares. Olhei várias vezes para reconhecer o barbudinho (Paulo também era, como já mencionei no episódio do Papai Noel). Era ele mesmo. Naquele mesmo dia apresentei-me ao jovem educador Danilson Pinto, meu Formador de Formadores. Ele indicou todas as páginas daquele mesmo livro, Pedagogia da Autonomia (um dos melhores, em minha opinião), onde aparece o seu nome. Não era falsa modéstia. É o que eu hoje chamo de aprendizagem emocional.
As coisas mais importantes, a gente aprende com o coração – e não com a mente. De fato, é o corpo todo que aprEEnde (confiscar, em inglês). “A Leitura do Mundo antecede a leitura da palavra”. Leiam Pedagogia da Autonomia. Tão pequeno e gigante que eu sempre tenho dois.
Ontem, antevéspera do centenário mais importante em que o Brasil ecoa no mundo inteiro (o nascimento do Professor Paulinho), assisti a uma filósofa muito famosa na Internet, chamada Rita Von Hunt – de quem eu me tornei um educando assíduo – mencionando a também famosa página 48 do programa de desgoverno de Bolsonazi. Lá está escrita a palavra “Expurgar”, explicitamente referindo-se a Paulo. No final do vídeo, Rita chora emocionada, tentando-se explicar a emoção. Emoção não se explica. Se sente. E eu chorei com Rita.
Quem me conhece sabe que eu sou chorão. Que eu sempre fui mesmo. Mas a diferença é o quanto eu agora gosto de falar de todas as vezes em que eu choro.
Amanhã, 19 de setembro de 2021, é um grande dia para o Brasil.
Acabei de ver uma notícia de que a Justiça Federal do Rio de Janeiro proibiu, ontem mesmo, o Presidente da República chamar o Patrono da Educação de Energúmeno. Energúmeno, quem?!
Parece que estou vendo na minha mente (no meu sentimento) o sorriso estampado na cara daquele Papai Noel do Colégio Estadual de Olinda. Até lembrei da paquerada menina.
Hoje entrevistei eduardvallory.cat, um jovem educador catalão que eu conheci no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2005 e que fala um português muito bom. Ficamos de fora da palestra de Hugo Chávez com Lula, naquele ano, por não caber mais ninguém no gigante e lotado auditório. Saímos dali, fomos tomar uma cerveja no Parque da Redenção, e comprei uma bolsa de algodão orgânico do Fórum, com as quais eu ainda hoje faço as minhas compras. Eduard é Presidente do Centro Unesco daqui. Da mesma UNESCO onde eu trabalhei, e que escolheu Freire como um dos dez pedagogos mais importantes do Século XX. Eduard é um dos muitos freires atualizados, espalhados pelo mundo. Mais vivo do que nunca. Ainda bem.
Uma tempestade de final de verão derrubou o vídeo do Instagram, na hora que eu estava “guardando” toda a entrevista com Eduard, na Internet – que caiu. Paulo Freire sorriu de novo.
Corri pra gravar, então, com Enrique Castro Ferro e esta entrevista, sim (depois da tempestade sempre vem a bonança), pode ser assistida no Instagram @fibrainternacional. Enrique respira Paulo. E, sem saber, falou quase tudo o mesmo que Eduard. E falou da bolsa de algodão orgânico feita pelas mulheres do projeto da Justa Trama, que ele e a ONG que fundou, ajudam a mais de dez anos. O vídeo La Justa Trama (qualidade de cinema!) também está na Internet.
Esperançar é um verbo criado por Paulo Freire.
Eu nunca mais o desprezei. Ele está aqui.
Barcelona, 18 de setembro de 2021. Sábado de final de verão catalão.
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Flávio Carvalho é sociólogo, escritor e participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya.
@1flaviocarvalho, @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor.
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