Aquarius: Cavalcantis e cavalgados

Por Flávio Moura.

A cena que correu o mundo quando “Aquarius” foi exibido em Cannes – o elenco e parte do público com cartazes denunciando o golpe no Brasil – deixava dúvida sobre o tipo de resistência que estava em jogo. O filme perigava se resumir à condição de bandeira lustrosa da campanha #foratemer.

Mas convém cautela. Se há um pressuposto de militância no filme, ele é nuançado e disposto a encarar contradições e aceitar pontos cegos por trás das boas intenções. Exatamente o que tem faltado a uma parte expressiva da esquerda brasileira.

Seria fácil tachar “Aquarius” de libelo contra a especulação imobiliária. Clara, interpretada por Sônia Braga, mora num predinho antigo de frente para o mar de Boa Viagem, no Recife. Uma grande construtora quer demolir o edifício para ali construir um espigão cheio de câmeras de segurança e espaços gourmet.

Os demais moradores já aceitaram a oferta para sair de casa. Mas Clara está disposta a ir até o fim. Ela recusa as propostas de compra e leva ao limite a resistência contra os invasores. Resumido assim, o quadro parece de fato esquemático.

Mas essa é apenas a fachada de um edifício dramático mais complicado. Clara vive há mais de trinta anos num dos endereços mais nobres da cidade porque herdou, além deste, “mais cinco apartamentos” que garantem vida confortável, com carro importado e uma empregada para preparar uma “verdurinha” enquanto ela vai nadar na praia.

Como lhe joga na cara a filha antipática, ansiosa por convencê-la da venda do imóvel, “não foi como jornalista e escritora” que ela conquistou tudo isso. Também o engenheiro empenhado em sua saída, numa das cenas finais do filme, faz questão de ironizar o “esforço de sua família de pele mais morena” para lhe garantir esse conforto.

Há nobreza na resistência de Clara, mas há também arrogância. E essa é uma arrogância intelectual, de quem preza finos LPs, romances literários e filmes de Kubrick, mas também – e sobretudo – uma arrogância de classe.

Não se trata, pois, de um confronto de uma intelectual bem intencionada e uma elite financeira inescrupulosa, mas de um embate entre duas modalidades da elite pernambucana que encarnam as contradições da classe alta brasileira.

Para seguir resistindo, é preciso enfrentar orgias no apartamento de cima, merda espalhada nas escadas, cultos evangélicos no prédio e outras sabotagens mais graves.

Mas os expedientes de que ela se vale para enfrentar seus algozes revelam sua posição confortável no xadrez social da cidade. Para descobrir podres da firma de engenharia, ela aciona um amigo dono de jornal.

O jornal depende dos anúncios da construtora, naturalmente. Seu dono é um Cavalcanti – o oposto dos “cavalgados”, no célebre adágio pernambucano. Mas é de um Cavalcanti que Clara é amiga. E é graças a um favor dele que consegue instrumento para sua cartada final.

Também o jovem engenheiro que lhe inferniza a vida é um sujeito de modos polidos. Acabou de voltar de um curso de business nos Estados Unidos, teria tudo para ser a caricatura da elite coxinha, mas é mais afável com Clara do que seus três filhos.

Kléber Mendonça Filho é um craque em mostrar como a violência de classe se agudiza por trás desses modos educados. Em “Som ao Redor” isso já aparecia, mas agora parece levado ao paroxismo.

Clara é consciente da crueldade dos desníveis sociais e amiga da empregada. Ela vai até a favela próxima prestigiá-la no aniversário. Mas quando a subordinada mostra à família de Clara uma foto do filho morto num acidente, o constrangimento é geral – inclusive por parte da patroa.

Há ainda em “Aquarius” um sentido político mais sutil, expresso na crueza com que trata de temas-tabu, como a sexualidade na velhice.

Clara é de uma beleza brutal, mas sua idade, temperamento e uma cirurgia de mama em decorrência de um câncer a tornam vulnerável. Ela enfrenta as agruras dessa condição – sai para a balada com as amigas, mas o sexo lhe é negado pelo sujeito atraente com quem vai embora da festa.

Ela preenche o vazio com um michê que não se importa em lhe dar prazer apenas no seio certo. Mas isso não aparece como indício de sua solidão profunda, e sim como alternativa legítima de sexo satisfatório. Clara também não hesita em se valer de sua sensualidade para manter próximo de si o salva-vidas da praia, de quem é amiga e que a socorre numa cena chave do filme.

O modelo para o comportamento de Clara é tia Lucia, presente apenas no prólogo, que recua ao ano de 1980. Enquanto os filhos pequenos de Clara leem textos elogiosos à tia em sua festa de 70 anos, a senhora divaga em lembranças de sexo livre, ali mostradas sem pudor algum, mas também sem regozijo com a própria ousadia.

“Aquarius” é um filme de detalhes – cada móvel da casa tem história, cada música da trilha acrescenta uma camada de sentido à narrativa.

A repercussão dos protestos em Cannes envolveu o filme numa atmosfera de ingenuidade e bom-mocismo. Mas “Aquarius” é bem maior do que isso.

Flávio Moura é jornalista e doutor em Sociologia pela USP, é editor na Companhia das Letras.

Fonte: Nexo.

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