A COP26 elegeu 10 de novembro como o “Dia do Transporte”. A cúpula climática mais importante da diplomacia mundial emitiu uma declaração assinada por países, investidores, cidades — e fabricantes de carros — que coloca como objetivo tornar os “veículos com emissão zero” o “novo normal” até 2030.
A proposta, todavia, ignora os impactos ambientais da extração de matérias-primas necessárias para esses veículos e o modelo de cidade que ele impõe.
O documento foi assinado por empresas como Ford, Mercedes-Benz e Volvo, e estabelece como meta tornar esse tipo de transporte “acessível” e “sustentável” em todas as regiões do mundo até 2030. O documento fruto do “Dia do Transporte” reconhece em suas últimas linhas a necessidade de “apoiar sistemas de transformação para transportes públicos” e a importância da “viagem ativa”.
A declaração, todavia, não foi assinada por Estados Unidos e China, embora conte com a rubrica de fabricantes de carros da China e também de outros mercados emergentes, como Índia e Bolívia.
A aposta, que mereceu uma data no calendário, faz parte da transição energética discutida e planejada por grandes empresas e Estados dispostos a facilitar o investimento privado, substituindo o combustível automobilístico à base de petróleo por veículos elétricos.
Os carros do futuro, desenvolvidos por empresas como a estadunidense Tesla e a chinesa BYED, são alimentados pelas baterias recarregáveis de íon-lítio. Essas baterias são também as responsáveis pela autonomia de dispositivos como celulares e computadores.
Segundo a Bloomberg, o mercado mundial de veículos elétricos em 2021 já supera 260 milhões de unidades particulares e mais de 1 milhão de unidades em transporte público.
De acordo com previsão da Agência Internacional de Energia, fazer uma transição energética que atenda às demandas do Acordo de Paris significará aumentar a demanda atual por lítio em até 40 vezes até 2040. Grafite, cobalto e níquel, outros minerais estratégicos, terão um aumento na demanda de 20 a 25 vezes.
Portanto, o lítio torna-se uma matéria prima central para a transição energética que o mundo globalizado de hoje cobiça. Não à toa a descoberta de novas jazidas e investidas para sua exploração nos territórios de reservas já identificadas aumentaram nos últimos cinco anos. E também é por essa razão que este metal entra em xeque nas discussões da COP26.
Qual é a cidade do carro elétrico?
O urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Roberto Andrés avalia como um “escândalo” o foco de autoridades na COP26 e da discussão sobre transição energética estar concentrada nos carros elétricos.
Para o pesquisador, esse arranjo “busca garantir a manutenção dos lucros de uma indústria que foi extremamente predatória e que tem uma responsabilidade enorme na crise climática que a gente vive.”
Uma coligação de mais de 300 organizações publicou carta pedindo aos líderes mundiais da COP26 ações para que o uso de bicicletas e o transporte público tenha um papel maior para enfrentar a emergência climática.
O texto destaca que o transporte é responsável por 24% de todas as emissões de CO2 do planeta e que a poluição do ar é responsável por cerca de sete milhões de mortes todos os anos. Os dados sobre a poluição são da Agência Internacional de Energia e sobre mortes por poluição do ar da Organização Mundial da Saúde.
“O automóvel é um veículo de uma, duas toneladas, e nos Estados Unidos têm veículos de três toneladas também, que transportam uma ou duas pessoas. Então o desperdício energético, seja qual for a fonte energia desse modo de deslocamento, é um desperdício energético gigantesco”, diz Andrés ao Brasil de Fato.
O professor da UFMG avalia que o carro elétrico é uma “falsa solução” que interessa apenas à indústria do setor e que ocupa um espaço vital nas cidades.
“Todo esse espaço [ocupado pelo carro], além de ser essencial para a vida urbana, é agora cada vez mais essencial para a vida das cidades em um contexto de crise climática. Em centros urbanos, os impactos da crise climática são dois: de um lado, as enchentes e inundações, de outro, as ilhas de calor. Para muito calor, a gente precisa de mais árvores, mais verde na cidade. Para o problema de muita chuva, a gente precisa absorver a água da chuva, precisa de espaço urbano e distribuição no território”, avalia o urbanista.
Uma transição energética que não enfrenta os reais problemas de nosso tempo é o que o doutor em geopolítica e pesquisador sobre recursos naturais na América do Sul Bruno Fornillo identifica como “capitalismo verde”.
“Essas propostas reciclam a crise constante do capital porque é assim que ele funciona: parasitando as ideias que se gestam nas forças mais ativas e criativas da sociedade civil, se apropria delas e as mercantiliza. Por isso, hoje, o mercado está tornando-se ‘verde'”, ressalta Fornillo.
Diferentes modelos
Já não se pode, então, falar simplesmente em “transição energética”. Há, por um lado, o que setores ativistas observam como a diferença fundamental entre a transição energética corporativa e, por outro, a transição energética popular.
“A transição energética corporativa é a dominante, em que as empresas e organismos multilaterais utilizam a sustentabilidade de maneira ideológica e escondem o que é na verdade um controle e um domínio do comando corporativo da transição. Assim, a transição corporativa não ataca as causas que levam à crise ambiental e à desigualdade na distribuição de recursos naturais”, explica Fornillo.
Em contraponto, a transição popular se resume a cinco pontos principais relacionadas à energia: desmercantilização, descentralização, desconcentração, democratização e a despatriarcalização. “As energias renováveis atacam diretamente o predomínio corporativo, uma vez que podem ser gestadas por uma produção popular e social”, destaca Fornillo.
Nova energia, velha mineração
O grande dilema no modelo corporativo, base para a COP26, é que a saída de uma sociedade baseada no extrativismo nos combustíveis fósseis parece recair sobre um novo modelo extrativista, só que de outros minérios.
Na América Latina, as zonas de reserva de lítio já identificadas abrem suas portas para empresas extrativistas há mais de 20 anos, reforça o geógrafo Joaquín Deon, da Universidade de Córdoba, na Argentina.
“A produção de lítio parece ser nova, mas já ocorre há várias décadas. A estratégia para obter o sal de consumo doméstico foi a que começou a ser analisada para obter um metal não tão convencional, já que o sal não se acumula na superfície. Assim, é preciso sujeitá-lo a um processo de tratamento com enormes quantidades de água e a adição de produtos químicos”, explica. “Neste processo , a água resultante não é adequada para o desenvolvimento da vida nestes ecossistemas.”
Além da contaminação resultante, o processo de extração de lítio envolve um consumo enorme volume de água. Em 2019, o Chile enfrentou a maior seca em mais de 60 anos e o incidente diminuiu a produtividade de suas minas.
Além disso, uma exploração média de lítio evapora cerca de 10 milhões de metros cúbicos de água por ano, o equivalente ao consumo de uma cidade com 70 mil habitantes, conforme apontou a eletroquímica Verónica Flexer, especialista em lítio, em entrevista à Agencia Tierra Viva.
Lítio, o “petróleo do século 21”
O valor do lítio está em plena expansão e a contínua exploração por novas fontes do minério aumentou consideravelmente a estimativa das reservas globais do mineral: de 14 milhões de toneladas identificadas até 2018, hoje essa cifra sobe para 21 milhões de toneladas, segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS).
A Austrália lidera o ranking de extração do minério atualmente, e a China é seu principal comprador. O país lidera toda a cadeia produtiva relativa à produção de baterias de lítio e outros minerais estratégicos. Segundo Fornillo, o quadro é resultado de uma antecipação chinesa, visando a entrada em um dos maiores mercados do mundo.
“A China domina toda a cadeia de produção e produz 43% dos carros elétricos atualmente”, diz. “Todo o seu desenvolvimento é centrado na questão energética. A grande notícia recente que tivemos foi o anúncio do governo da China, país mais emissor de gases de efeito estufa do mundo, de descarbonizar sua economia até 2060.”
A atenção dos interessados na exploração do lítio, e em particular as indústrias chinesas, está na América Latina. Só o chamado Triângulo do Lítio, formado por Argentina, Chile e Bolívia, concentra 68% das principais reservas mundiais do lítio em Salares, de mais fácil exploração e maior rentabilidade econômica.
Neste cenário de crise sanitária, econômica e ambiental, a busca por recursos põe a região em um lugar de destaque. Novos projetos e acordos internacionais surgem no horizonte para a região, alguns inclusive anunciados durante a COP26 – como o investimento de US$ 8,4 bilhões da Austrália em hidrogênio na Argentina.
Mas as metas só poderão ir a fundo no objetivo de reduzir não só as emissões de gases, mas de frear as violações de direitos humanos, quando as populações forem atores ativos nas decisões, destaca o geógrafo argentino Deon. “Para que assim essas soluções de ‘desenvolvimento sustentável’, entre aspas, da COP26 não tornem os territórios das comunidades locais insustentáveis.”