Após se demitir, ex-coordenadora critica decreto de Doria sobre população de rua

Decreto publicado pelo prefeito permite a remoção de cobertores, colchonetes, mantas, travesseiros, lençóis dos moradores de rua. / Rovena Rosa/Agência Brasil
Decreto publicado pelo prefeito permite a remoção de cobertores, colchonetes, mantas, travesseiros, lençóis dos moradores de rua. / Rovena Rosa/Agência Brasil

No último sábado (21), o Diário Oficial de São Paulo (SP) publicou o decreto 57.581/17, editado pelo prefeito João Doria Jr., para alterar o decreto 57.069/16, que proibia a retirada de itens de sobrevivência de pessoas em situação de rua pela Guarda Civil Metropolitana (GCM), editado pelo ex-prefeito Fernando Haddad em junho do ano passado, após mortes por frio nas ruas paulistanas.

Com a decisão, três dos quatro servidores da Coordenação de Políticas para a População em Situação de Rua da Prefeitura de São Paulo pediram exoneração do cargo nesta segunda-feira (23). Uma delas foi a coordenadora da área, Júlia Carvalho Ferreira Barbosa Lima, que classificou as alterações como “grandes equívocos”, que dão margem “a possíveis violações de direitos humanos”.

“Nessa ausência de diálogo que estávamos sentindo, achamos que foi desrespeitado o Plano Municipal de Políticas para a população em situação de rua”, afirma Lima em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.

Confira a íntegra da conversa:

Brasil de Fato – O que aconteceu para vocês chegarem no limite de se exonerarem?

Júlia Lima – Já estávamos insatisfeitos desde o começo do ano pela ausência de diálogo. Uma marca na gestão anterior era o diálogo com as pessoas em situação de rua para poder construir as políticas para elas, porque acreditamos que essa construção não é somente para elas, mas, na verdade, com elas.

Nosso trabalho sempre foi muito pautado nisso, mas, nessas últimas três semanas, esse diálogo não estava acontecendo. O decreto original, que é de junho do ano passado, demandou um trabalho muito grande de construção com a sociedade civil, envolvendo as pessoas em situação de rua, a Defensoria Pública, o Ministério Público e diversas secretarias envolvidas na temática.

Foi um trabalho longo, de mais de um ano para conseguir chegar no formato final do decreto, com o objetivo de proteger as pessoas em situação de rua, orientando as ações da zeladoria urbana e dispondo sobre todos os procedimentos: o que pode e o que não pode ser feito nas ações da zeladoria em relação às pessoas em situação de rua.

Sobre essa revisão do decreto, nossa coordenação foi comunicada na sexta-feira (20), e no sábado (21) foi informada de sua publicação [no Diário Oficial].

Não apenas não participamos da construção dessa revisão, mas também não conseguimos nem ter acesso ao novo decreto. Foi uma decisão de cima para baixo e toda atropelada. Acredito que essa revisão trouxe muito prejuízo para o trabalho construído.

Como analisa essa revisão do decreto?

Ele promoveu alterações que foram grandes equívocos. Primeiro, por essa falta de diálogo; segundo, porque ele expõe as pessoas.

Alguns pontos específicos do novo decreto, como no artigo décimo, que dispõe sobre o que pode e o que não pode ser retirado, dizendo que as equipes de zeladoria deverão respeitar os bens das pessoas, e o primeiro parágrafo fala que é vedada a subtração e a inspeção e apreensão de alguns bens. O inciso terceiro foi totalmente tirado, que falava justamente que não poderia ser retirado os itens portáteis de sobrevivência, como papelões, colchões, colchonetes, cobertores. Se não vai permitir a retirada, por que remover esse inciso? É uma coisa que ficou bem delicada.

Dentro do artigo oitavo, que trata sobre o que pode ser recolhido nessas ações, no novo decreto inclui um parágrafo dizendo que podem ser retirados “bens inservíveis, excessivamente deteriorados ou que não revelam valor econômico ou utilitário sobre qualquer perspectiva”, e que “poderão ser descartados de imediato”. Mas o que é exatamente um bem inservível? Quem que vai avaliar o que é um bem inservível? Na minha opinião, quem avalia se aquele bem serve ou não é a própria pessoa em situação de rua, e o novo decreto dá margem para os funcionários das zeladorias avaliarem.

Em resposta a esses questionamentos, Doria disse que os cobertores não serão retirados, e que esse decreto serviu apenas para preservar o direito da GCM e “para não haver ilegalidade nas ações”…

Sinceramente, não vejo nenhum sentido na resposta dele. Até porque, dentro do decreto, tanto no original quanto na revisão, fala-se que a GCM não faz ação, ela só poderá acompanhar a ação para colaborar na mediação de conflitos e assegurar a proteção de todos os envolvidos. Quem faz a ação é a Zeladoria Urbana.

Essa história de retirar o inciso terceiro e proibir a retirada do cobertor é estranha. Porque se não vai permitir a retirada do cobertor, então por que retirar o inciso? A ausência desse inciso não implica na legalidade do ato, mas sua retirada vai na contramão da necessidade da expressa proibição.

Quando pensamos o decreto, foi justamente porque havia muitas denúncias sobre retiradas de cobertores. No momento em que isso foi retirado, dá margem a possíveis violações de direitos humanos.

Você acha que está havendo um desrespeito em relação ao Plano Municipal?

Aos poucos, ele está lançando alguns projetos específicos das pessoas em situação de rua. Nessa ausência de diálogo que estávamos sentindo, achamos que foi desrespeitado o Plano Municipal de Políticas para a população em situação de rua. Foi feita uma construção ao longo dos quatro anos, principalmente em 2016.

Tiveram diversos grupos de trabalho envolvendo as pessoas em situação de rua, foram feitas seis consultas públicas para ouvir essas pessoas, para lançarmos finalmente no final o Plano Municipal, que é para nortear a política a ser trabalhada. E esse plano não está sendo consultado. Ele tem criado novos políticas, mas nunca consultando o Plano Municipal.

Ele está com um novo projeto de trabalho. A questão da empregabilidade é sempre interessante. É uma coisa que as pessoas em situação de rua sempre pedem, mas tem que ser um projeto construído respeitando o tempo da pessoa. Tenho um pouco de medo do atropelamento desses projetos. Muita vontade de começar a fazer, mas sem dialogar com as pessoas, entender um pouquinho melhor.

Como você avalia a ação na Praça 14 bis nos primeiros dias deste novo mandato?

A situação na Praça 14 Bis foi uma situação de violação de direitos humanos, pois removeram as pessoas da praça, colocaram-nas numa quadra e tamparam-nas com uma tela para torná-las invisíveis. Quem estava do lado de fora não via quem estava lá dentro.

As pessoas relataram que não queriam estar lá com essa tela e que estavam se sentindo num galinheiro. Eles solicitaram a retirada da tela verde, o que não aconteceu.

Você acredita que já esteja sendo implementada uma política de higienização?

Ainda é muito cedo para dizer que é uma política de higienização. Estamos há apenas três semanas e meia de governo, mas já considero algumas ações higienistas, sim.

Quais seriam as soluções para esses problemas tão complexos?

A política para a população em situação de rua é muito complexa. É uma população muito heterogênea, e é bem complexo tentar uma solução. Não acho que é má fé, mas essa vontade de querer resolver o quanto antes, sem respeitar a individualidade da pessoa e o tempo delas –o que é essencial num ambiente muito complexo –, tem grandes chances de não dar certo.

É preciso levar em consideração o Plano Municipal lançado no final do ano passado, porque foi construído com as pessoas em situação de rua. Esse plano é pautado em quatro eixos principais: habitação; conhecimento, cultura e trabalho; atendimento humanizado; e gestão.

Nessa construção com as pessoas, a gente sentiu que esses são os quatro eixos principais para poder se construir uma política que permita a saída da rua.

Edição: Camila Rodrigues da Silva.

Fonte: Brasil de Fato.

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