Por Mariana Schreiber.
A Polícia Rodoviária Federal (PFR) exonerou nesta segunda-feira (25/05) um dos chefes da área de comunicação depois que a TV Globo levou ao ar uma reportagem mostrando que aumentaram as mortes em acidentes nas rodovias federais em abril, por causa do afrouxamento do isolamento social adotado em março no país para conter a expansão do coronavírus.
Formado em jornalismo e policial concursado da PRF há sete anos, Fernando Oliveira chefiava o setor de comunicação da Superintendência do Paraná desde 2017.
Ele disse à BBC News Brasil que foi exonerado da função porque seus superiores em Brasília consideraram a reportagem da TV Globo “desalinhada”, devido a abordagem de temas “sensíveis aos olhos do presidente” Jair Bolsonaro, como o uso de radares de velocidade e o isolamento social durante a pandemia.
A reportagem foi realizada após a própria PRF avisar veículos de comunicação sobre a Operação Nacional de Segurança Viária, que seria realizada em todo o país a partir de 14 de maio.
O material, transmitido no dia seguinte no jornal Bom dia Brasil, usou estatísticas de acidentes da PRF, exibiu falas de policiais rodoviários durante uma operação de fiscalização em Curitiba, assim como uma infração de excesso de velocidade captada por um radar.
O setor de comunicação da PRF no Paraná atendeu às demandas da equipe da TV Globo para produzir a reportagem.
Segundo Oliveira, minutos após a veiculação da reportagem houve uma ligação da direção da PRF em Brasília para a Superintendência do Paraná reclamando do “desalinhamento”. Depois, às 12h27 do mesmo dia, ele recebeu pelo WhatsApp uma mensagem do chefe da Coordenação-Geral de Comunicação Social da PRF (CGCOM), Anderson Poddis, disparada para todo o efetivo que trabalha na área determinando a centralização do atendimento à imprensa.
“Em reforço à mensagem enviada aos Diretores, Superintendentes e Superintendentes executivos, diante das matérias totalmente desalinhadas que surgiram na imprensa hoje em diversas localidades do país, informo que está PROIBIDO pautar imprensa sem expressa autorização da CGCOM do conteúdo do release e da entrevista”, diz a mensagem, segundo imagem disponibilizada por Oliveira à BBC News Brasil.
No mesmo dia, foi alterado um documento oficial que trata da atuação da área de comunicação da PRF durante a pandemia (Ordem de Serviço Nº 9 de 2020 da CGCOM).
A versão original previa que as unidades regionais de comunicação deveriam pautar os veículos de comunicação no seu Estado para cobrir a Operação Nacional de Segurança Viária, a ser realizada pela PRF em todo o país para prevenir acidentes.
Já a nova versão do documento passou a estabelecer que “as Superintendências Regionais somente realizarão atividades de comunicação social se demandas e no formato estabelecido pela Coordenação Geral de Comunicação Social – CGCOM”. Além disso, também determinou que “qualquer entrevista em canais de mídia, seja televisiva, de rádio ou qualquer outro meio, está condicionada a prévia aprovação da Divisão de Comunicação Institucional”, em Brasília.
No dia 18, Oliveira foi comunicado que seria exonerado. Ele diz que sua atuação no caso da reportagem da TV Globo apenas seguiu a orientação inicial para pautar os veículos de imprensa sobre a operação da PRF.
“Por conta de o Paraná liderar o ranking de unidades da Federação com mais trechos de rodovias considerados críticos — com 23 pontos dos 150 espalhados pelo país — a afiliada local da Globo destacou uma equipe de reportagem para cobrir uma das ações de fiscalização da PRF”, contou ainda.
Bolsonaro tem criticado de forma agressiva governadores e prefeitos que adotaram medidas para ampliar o isolamento social com objetivo de conter a propagação da covid-19, doença que já matou mais de 25 mil pessoas no país.
O presidente considera que apenas idosos e pessoas que já tenham outras doenças prévias devem ficar em quarentena, por acreditar que isso reduziria o impacto econômico da pandemia.
Radar virou ‘tabu’ na PRF
Horas após a exibição da reportagem da TV Globo, Oliveira também recebeu a ordem de apagar imediatamente todas as fotos de radares armazenadas no perfil da PRF do Paraná na plataforma Flickr, que tem quase 9 mil imagens. Oliveira contou que não obedeceu à ordem por considerá-la “ilegal”, já que não havia “justa motivação” para deletar os registros. As imagens usadas nessa reportagem vêm desse banco de fotos.
Segundo ele, o assunto radar é “tabu” na PRF desde agosto de 2019, quando o governo Bolsonaro suspendeu o uso de radares portáteis pela instituição, decisão que só foi revertida pela Justiça no fim do ano passado.
“Não houve, por exemplo, a divulgação de nenhum dado relativo a infrações de controle de velocidade registradas pela PRF durante as operações de Natal e Ano Novo, o que contrariou a prática dos anos anteriores”, disse Oliveira.
Bolsonaro considera que os radares têm viés arrecadatório e crítica o que seria uma “indústria da multa”. Já os defensores da punição do excesso de velocidade dizem que a fiscalização é fundamental para reduzir acidentes e salvar vidas.
Levantamento do movimento SOS Estradas mostra que houve aumento dos acidentes nas rodovias federais a partir de abril de 2019, quando o governo federal começou a tomar medidas contra os radares. No primeiro trimestre de 2019, morreram em média 398 pessoas por mês em acidentes nas rodovias, queda em relação ao mesmo período de 2018 (428).
Já entre abril e dezembro de 2019 morreram a cada mês, em média, 460 pessoas nesses acidentes, contra 441 no mesmo período de 2018. A alta reverteu a tendência de queda que ocorria há sete anos, segundo o SOS Estradas.
‘Censura inédita’
A BBC News Brasil conversou com mais dois policiais da área de comunicação da PRF que estão na instituição há mais de dez anos, lotados em outros Estados. Ambos disseram ser inédito o atual nível de censura e controle no setor. Eles pediram para não ter o nome divulgado, com medo de represálias.
“Se não rezar a cartilha (da direção da PRF), você pode ser retaliado. Eu sou (apoiador do) Bolsonaro, mas acho que temos que ser um órgão técnico ao passar informação e não ficar sujeito a tanta censura”, disse um deles.
Procurado por telefone pela BBC News Brasil, o Coordenação-Geral de Comunicação Social da PRF, Anderson Poddis, não quis comentar a exoneração de Oliveira nem as reclamações sobre a censura dentro da instituição.
A reportagem também enviou na terça-feira, por email, perguntas para setor de comunicação da PRF em Brasília e no Paraná, mas não obteve retorno.
Desde 2015, a PRF tem um manual com diretrizes para sua comunicação. O documento estabelece que “o compromisso de responder a todos os questionamentos, não omitindo fatos de interesse do público, é considerado pela Assessoria de Comunicação da PRF como um dos princípios fundamentais da democracia, garantidor do direito da sociedade à informação e essencial na conquista da credibilidade institucional”.
Além disso, prevê que a “o processo de comunicação deve ser ágil o suficiente para atender com rapidez e eficiência as demandas da sociedade”.
Para Fernando Oliveira, sua exoneração e as ordens da direção da PRF contrariam o manual de comunicação do órgão e a Constituição. Ele ainda não foi designado para uma nova função.
“A postura da área de comunicação de qualquer órgão público deve estar alinhada sempre com os princípios constitucionais, como o da transparência e o da impessoalidade. Se estiver alinhada a uma interferência sem amparo técnico, ainda que ela tenha partido do presidente da República, não se trata de algo legítimo”, critica o policial exonerado.
“Assim como a Polícia Federal, na condição de órgão policial da União, a PRF também deve funcionar como uma polícia de Estado, livre de interferências políticas ou meramente pessoais”, reforçou.
Novo diretor–geral da PRF
Bolsonaro trocou na sexta-feira (22) o comando da PRF, substituindo Adriano Furtado por Eduardo Aggio, que antes ocupava o cargo de assessor especial na Secretaria-Geral da Presidência da República.
Furtado foi repreendido pelo presidente em abril após ter divulgado uma nota de pesar da PRF pela morte de Marcos Roberto Tokumori, agente administrativo da instituição, devido à covid-19. A nota manifestava tristeza por seu falecimento e dizia que a doença “não escolhe sexo, idade, raça ou profissão”.
A reclamação de Bolsonaro foi revelada em reunião com seus ministros no dia 22 de abril. O conteúdo desse encontro foi tornado público em maio pelo Supremo Tribunal Federal, como parte do inquérito que apura possível interferência ilegal de Bolsonaro na Polícia Federal.
“Eu liguei pra ele (Adriano Furtado). Por favor, o que mais? Ele (o agente morto) era obeso, era isso, era… bem, tinha … como é que é? Comorbidades. Mas ali na nota dele só saiu covid-19. Então vamos alertar a quem de direito, ao respectivo ministério, pode botar covid- 19, mas bota também tinha fibrose nu… montão de coisa, eu não entendo desse negócio não”, disse Bolsonaro, com irritação.
Dentro da PRF, porém, a demissão de Furtado é atribuída ao fato de ele ter sido nomeado pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, agora desafeto de Bolsonaro.
Seu substituto, Eduardo Aggio, se mostra bem alinhado com a visão do presidente.
Em outubro de 2019, ao participar de uma live com Bolsonaro no Facebook, Aggio apoiou a proposta do presidente de ampliar de 20 para 40 pontos o limite para o motorista ter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) suspensa por multas.
“A posição de aumentar acaba trazendo umas questões que, hoje, em alguns pontos, existe o desvirtuamento da punição para um caráter arrecadatório. Então assim, com as decisões que o senhor vem tomando, a gente tem uma desconstituição disso”, disse o novo diretor geral da PRF.