A província canadense do Quebec realiza nesta terça-feira (04/09) uma eleição parlamentar antecipada. Segundo as pesquisas mais recentes, o resultado deverá decretar o fim de um período de nove anos de governo liberal, comandado pelo primeiro-ministro Jean Charest, para dar lugar aos soberanistas da centro-esquerda, sob a liderança de Pauline Marois. Esta seria mais uma disputa política interna e corriqueira não fosse pelo clima de ebulição pelo qual passa a região francófona, que sempre contou com um forte movimento separatista – tema que, desta vez, ficou em segundo plano.
“Há muita coisa em jogo. A sociedade civil aguarda a eleição com grande expectativa. Os simpatizantes de direita torcem para que ela continue no poder e avance com seu projeto atual. Os que têm uma conscientização mais à esquerda exigem o fim do atual processo de desmantelamento e enfraquecimento das instituições públicas, o que tem ocorrido desde a primeira eleição do governo liberal, em 2003”, diz Christian Nadeau, professor de Filosofia Política da Udem (Universidade de Montreal) em entrevista ao Opera Mundi.
Histórico
Desde fevereiro, a quase sempre pacata Quebec tem sido tomada por uma série de protestos populares que já foi denominado de Primavera Érable (nome em francês da folha de bordo, símbolo do Canadá, em referência às revoltas no mundo árabe).
A faísca foi o anúncio pelo governo local de que os custos das anuidades das universidades públicas iriam aumentar cerca de 75% nos próximos cinco anos.
Os estudantes não aceitaram e, além de convocarem uma greve geral, exigiram uma completa reformulação da política educacional que tivesse, como objetivo final, uma educação pública gratuita e de qualidade – o episódio guarda muitas semelhanças com o movimento estudantil chileno. O símbolo usado para mostrar rejeição ao aumento é o quadrado vermelho, ou “carré rouge”, preso à roupa como um broche.
Gradativamente, eles ganharam gradativamente apoio de outros setores da população, seja pela inflexibilidade do governo nas negociações (propôs apenas que o aumento ocorresse em sete anos); pelo aumento da repressão policial; e, principalmente, pela aprovação da polêmica Lei 12 (antigo Projeto de Lei 78).
Ela proíbe grupos de organizarem protestos ou manifestações com mais de 50 pessoas sem autorização prévia das forças de segurança. No entanto, ela só serviu para aumentar a instabilidade e os confrontos entre estudantes e polícia, e fazer com que Charest, pressionado, antecipasse a eleição.
“Trata-se de uma lei que, por um lado, é completamente desprovida de legitimidade. Por outro, o que é pior, mostra ser completamente inútil, mesmo para os que a apoiam”, explica Nadeua. “Não há nenhuma acusação formal até agora, nem qualquer inquérito por violação dessa lei. Ela serviu, no máximo, como um instrumento de intimidação. Mas os estudantes não voltaram aos seus cursos por causa dela. Foi, acima de tudo, por um cálculo político. Tanto parte dos estudantes quanto a população espera o desenrolar dos próximos atos para agir”.
Nadeau afirma que a instabilidade vivida pela província vai muito além dos aspectos escancarados pelos protestos estudantis. Para ele, o Quebec, assim como o Canadá, passam por uma crise institucional. “Há duas razões principais: em primeiro, ocorreu uma mudança de paradigma em relação às instituições públicas, que deixaram de tratar o cidadão como contribuinte para que virasse um mero consumidor”, afirma.
A outra razão, segundo ele, é que o Executivo, ao adotar medidas de caráter semelhante à Lei 12, mostra que não está à altura de governar pelos modos regulares e legítimos. Por isso, passa a achar que deve governar através de medidas de exceção. “É aí que ele se mostra incapaz. A legitimidade de um governo se mede precisamente por sua capacidade de governar sem esses artifícios mesmo enfrentando crises excepcionais. É difícil comparar, mas muitos golpes de Estado em países que já foram democráticos tiveram medidas dessa natureza como embrião. Funcionando por decretos, sem uma legitimidade real. Um exemplo parecido é o Patriot Act, nos EUA”, afirma.
Pesquisa
A eleição geral no Quebec é disputada no modelo parlamentarista distrital clássico, ou seja, cada membro do Parlamento é eleito em uma circunscrição. Mas o quadro do próximo Parlamento não deverá favorecer a implementação de grandes mudanças.
A última pesquisa foi anunciada na véspera (03), pelo Forum Research, e mostra como o quadro do futuro político local está completamente indefinido. Seja qual for o resultado, o partido vencedor estará obrigatoriamente atrelado a um governo minoritário, pois nenhum partido deverá obter o número de vagas para governar com maioria absoluta (63 representantes de um total de 125).
Segundo a projeção, o PQ (Partido Quebequense), de Marois, obteria 36% dos votos, com uma dianteira considerável sobre o PLQ (Partido Liberal do Quebec) de Charest, de centro-direita, com 29%. No entanto, a CAQ (Coalizão pelo Futuro do Quebec), recém criada aliança de partidos conservadores, tem 25% de apoio. A CAQ apoiou o PLQ para a aprovação da Lei 12.
Entre as demais filiações com votação significativa, restam o Quebec Solidário (esquerda), com 6%, o Opção Nacional (social-democracia soberanista) com 2% e os Verdes, também com 2%. Mesmo minoritários, nenhum dos três é cotado para se aliar ao PQ.
Apoio dos estudantes
As principais associações estudantis da província não viram a antecipação da eleição com bons olhos. “Infelizmente, ela só serviu para desmobilizar as pessoas que participavam dos protestos,. Muitos se deram por satisfeitos ao saberem dessa decisão, voltando às aulas. Mas não podemos dizer que a luta está terminada”, disse Camille Robert, porta-voz da CLASSE (sigla em francês da Coalizão Ampla por uma Associação Estudantil Solidária e Sindical), maior associação estudantil da província.
Seus membros reivindicam a gratuidade e reclamam também financiamento cada vez maior que o governo dá para pesquisas nas universidades privadas em detrimento às públicas. Até o anúncio do pleito, cerca de 150 mil secundaristas e universitários boicotavam as aulas em protesto.
Além da CLASSE, as outras duas grandes associações estudantis quebequenses, a FEUQ (Federação dos Estudantes Universitários do Quebec) e a FECQ (Federação dos Estudantes Colegiais do Quebec), não recomendam o voto para nenhum partido, apenas para que sejam contrários ao PQL de Charest e à CAQ. E não demonstram confiança nas palavras de Marois, ex-ministra da Educação em 1996 e também responsável por um aumento nas taxas universitárias na época.
“Quebec Solidário e Opção Nacional são os únicos a apresentarem projetos e programas de acordo com as demandas dos estudantes. Mas eles tem poucas chances de fazer diferença. O primeiro deve conseguir quatro ou cinco deputados e, o outro, com sorte, apenas um. É muito pouco”, diz Camille.
Para ela, o PQ não terá força para provocar mudanças em um governo minoritário. “Eles até disseram que anulariam a Lei 12, mas que isso só seria possível em caso de maioria, o que não deve ocorrer. Agora dizem: ‘não sabemos se dará para fazer, vamos ver’. Portanto, nesse momento, não há garantia para a revogação da Lei12”, diz Camille. “O mais provável é um governo do PQ minoritário. Mas não dá pra saber o que vai acontecer, portanto é importante nos mantermos mobilizados”, disse.
Durante a campanha, Marois [à esquerda] prometeu, além de abolir a Lei 12, indexar a taxa de escolaridade, barrando o aumento dos liberais (que resultaria em uma despesa extra de 1770 dólares canadenses ao fim de sete anos de curso). Os conservadores do CAQ propuseram um aumento de mil dólares em cinco anos, proposta também rejeitada pelas associações estudantis. No entanto, os três partidos concordam em uma coisa: para eles, a educação pública e gratuita é uma utopia.
Segundo Nadeau, no entanto, o tema deveria estar aberto à discussão. “Devemos, no entanto, saber até onde podemos chegar com a gratuidade. Na França, por exemplo, o custo dos estudos é baixo mas, por outro lado, isso traz problemas. As universidades têm muitas dificuldades para operar. Se for gratuita e não oferecer um bom serviço, então também não adianta”, afirma.
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/
Foto 1: Divulgaçã0.
Foto 2: Manifestação em 22 de março no centro de Montreal contra a alta da anuidade reúne cerca de 150 mil pessoas.