por Murilo Pajolla
Em 2021, duas gigantes da mineração, Vale e Anglo American, prometeram desistir dos requerimentos à Agência Nacional da Mineração (ANM) de projetos de mineração que afetassem terras indígenas.
Um estudo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da ONG Amazon Watch aponta, no entanto, que a iniciativa não passou de uma “manobra” para driblar a repercussão negativa gerada por denúncias de violações de direitos humanos de povos originários.
A quarta edição do relatório Cumplicidade na Destruição, lançada nesta terça-feira (21), identificou que mineradoras apenas excluíram da área requisitada a parte que se sobrepunha a terras indígenas.
Na maioria dos pedidos, a nova delimitação ocorre no limite das áreas ocupadas por povos originários, mantendo, assim, o efeito nocivo sobre as comunidades. “Em alguns casos, contrariando até a portaria 60 de 2015, que estabelece como raio de interferência a distância de 10 km”, destaca o documento.
Embora minerar territórios dos povos originários seja proibido, não há restrições para que as requisições formais sejam feitas na ANM.
Por meio de nota, a Vale reafirmou não possui nenhum requerimento em terra indígena no Brasil e se colocou à disposição para “esclarecer todos os pontos com a Apib e a Amazon Watch”. O comunicado na íntegra está disponível no fim desta reportagem.
Requerimentos minerários voltam a tramitar
Os pedidos de adequações nas áreas pleiteadas para a mineração, chamados de “Retirada de Interferência”, foram feitos em nome da Vale, da Anglo American, da canadense Belo Sun e da Glencore, de origem anglo-suíça.
“Essa manobra tem feito com que pedidos até então parados na ANM voltem a tramitar e que a agência comece a publicar autorizações de pesquisa (chamadas Minutas de Alvará) em nome das mineradoras”, diz o relatório.
“Não é possível seguirmos convivendo com atividades que obrigam os povos indígenas a chorar o assassinato cotidiano de seus parentes, ou a testemunhar a destruição de biomas dos quais são os guardiões para avançar um projeto que não gera desenvolvimento real, e sim destruição e lucros nas mãos de poucos”, afirmou Sonia Guajajara, da coordenação executiva da Apib.
Discurso de responsabilidade socioambiental
Uma das maiores produtoras mundiais de minério de ferro, a Vale anunciou em setembro do ano passado que desistiu de todos os seus processos minerários em terras indígenas no Brasil.
Em comunicado oficial, a multinacional afirmou que “a mineração em TIs só pode se realizar mediante o Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) dos próprios indígenas e uma legislação que permita e regule adequadamente a atividade”.
Em março, a Anglo American também afirmou ter abandonado projetos em territórios ocupados por povos originários. Reforçou o compromisso com o desenvolvimento sustentável e prometeu “re-imaginar a mineração para melhorar a vida das pessoas”.
Contudo, segundo o relatório Cumplicidade na Destruição, as duas empresas estão entre as nove do ramo que possuem interesses minerários em terras indígenas. Juntas, elas possuíam, em 5 novembro de 2021, 225 requerimentos ativos com sobreposição a 34 terras indígenas.
A Vale é a que possui mais requerimentos, com 75 pedidos ativos, seguida pela Anglo American (65 pedidos), Minsur (Taboca e Mamoré), com 35 requerimentos, Potássio do Brasil (19), Rio Tinto (14), Belo Sun, (11), Glencore (3) e AngloGold Ashanti (3).
Cobre, ouro, níquel, sais de potássio, zircão, cassiterita, bauxita e diamante são as principais substâncias de interesse das mineradoras. A área abrangida pelos 225 requerimentos é de 5,7 mil km², o equivalente ao território do Distrito Federal.
O estado que mais concentra pedidos é o Pará, com 143 requerimentos sobrepostos a 22 Terras Indígenas. “Importante registrar que os pedidos de exploração nesse estado duplicaram em menos de seis meses (eram 67, em 12 de julho)”, assinala o estudo. Em seguida estão Amazonas (56) e Mato Grosso (23).
Mineração em terras indígenas contraria constituição, diz Apib
Entre as terras indígenas onde mais incidem requerimentos minerários estão a Xikrin do Cateté e Waimiri Atroari, com 34 requerimentos cada, Sawré Muybu (21), e Apyterewa (13).
Os povos mais atingidos são Kayapó (73 pedidos), Waimiri Atroari (34), Munduruku (25), Mura (14) e Parakanã (13). “Pelo menos cinco requerimentos estão em áreas onde vivem indígenas em isolamento voluntário, da etnia Apiaká”, ressaltam a Apib e a Amazon Watch.
“É preciso um entendimento geral de que essas áreas não estão disponíveis para exploração mineral, e nem devem estar, tanto pelo respeito ao direito constitucional de autodeterminação dos povos indígenas sobre os seus territórios quanto pela sua importância para combater as mudanças climáticas e garantir a vida no planeta”, afirma Dinaman Tuxá, membro da coordenação executiva da Apib.
“O mesmo vale para territórios tradicionais e outras áreas de preservação. Esse entendimento deve vir do Estado, mas também das empresas (que têm totais condições de saber quais áreas estão pleiteando para sequer protocolar esses requerimentos), e das corporações financeiras que as financiam”, complementa a liderança.
Outro lado
Confira na íntegra o comunicado enviado pela Vale ao Brasil de Fato: “Como já amplamente informado, a Vale não possui nenhum requerimento em terra indígena no Brasil. No ano passado, a empresa anunciou a desistência de todos os seus processos minerários em TIs no país (o que inclui requerimentos de pesquisa e lavra). Os pedidos de desistência foram protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM) ao longo de 2021. Essa decisão se baseia no entendimento de que a mineração em TIs só pode se realizar mediante o Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) dos próprios indígenas e uma legislação que permita e regule adequadamente a atividade. A Vale reforça ainda que está à disposição para esclarecer todos os pontos com a Apib e a Amazon Watch”.