Os povos indígenas continuam aguardando ações concretas que garantam efetivamente assistência à sua saúde em meio à pandemia de Covid-19, apesar da liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, do início do mês, que obrigou o governo a apresentar soluções para a crise sanitária entre essas populações.
A decisão foi tomada com base em uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Esse tipo de ação busca evitar ou reparar dano a algum princípio básico da Constituição resultante de ato ou omissão do Poder Público. A previsão é que a liminar vá a referendo do plenário do STF no dia 3/8.
Barroso determinou que o Subsistema de Saúde Indígena atenda os povos que estejam em áreas com demarcação já concluída ou não; a criação de um grupo de trabalho com participação de indígenas e governo para monitorar as ações em geral e de uma uma sala de situação para definir uma estratégia para povos isolados e de recente contato em particular; além da implantação de barreiras sanitárias em territórios com indígenas isolados (saiba mais no quadro no fim da reportagem). Duas semanas após a liminar, as barreiras ainda não foram implementadas, apesar do prazo de dez dias (a contar da notificação da decisão) estabelecido pelo ministro em 8 de julho. Outro item fundamental da decisão do ministro – a elaboração de um plano de enfrentamento à Covid entre os povos indígenas – ainda está em elaboração.
“Barroso determinou que o Subsistema de Saúde Indígena atenda os povos que estejam em áreas com demarcação já concluída ou não”
“Agora, estamos na fase de fazer com que essa decisão da mais alta corte do Brasil seja cumprida. Ainda em relação aos povos indígenas, não houve nenhuma mudança de postura do governo brasileiro no combate à pandemia”, diz Luiz Henrique Eloy Terena, assessor jurídico da Apib e um dos responsáveis pela ADPF.
O presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o defensor público Renan Sotto Mayor, avalia que o diálogo para a construção da estratégia de combate e prevenção à pandemia entre os povos indígenas estava travado e que, a partir da decisão, ele tem de acontecer.
De acordo com o levantamento independente do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena da Apib, 588 indígenas morreram e 19,3 mil foram infectados pelo novo coronavírus até o dia de hoje (28/7). É a mais alta taxa de letalidade de um grupo populacional no país. O aumento do número de casos de Covid-19 entre indígenas acelerou em julho, conforme a entidade.
Reunião tensa
Ainda segundo a Apib, o planejamento apresentado pelo governo para os índios isolados na primeira reunião da sala de situação, em 17/7, é genérico. Faltam ações específicas para a realidade de cada território, por exemplo.
O encontro foi tenso. Em comunicado a Barroso, a Apib classificou o tratamento dado aos indígenas como “desastroso, humilhante e constrangedor” e “uma clara tentativa de violar sua liberdade de expressão”. A representante da Coordenação das Organizações dos Indígenas Amazônia Brasileira (Coiab), Angela Kaxuyana, teve o microfone cortado por um mediador do governo (saiba mais).
“Apib classificou o tratamento dado aos indígenas como desastroso, humilhante e constrangedor, e uma clara tentativa de violar sua liberdade de expressão”
O chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, ministro Augusto Heleno, afirmou que os indígenas que estiverem fora de Terras Indígenas (TIs) homologadas (com demarcação já concluída) serão tratados como “produtores rurais”, indicando que o governo não pretende atendê-los, o que contraria a decisão do STF. Em publicação no Twitter, Heleno criticou matéria da revista Veja sobre a reunião. “[A notícia] tenta caracterizar um ambiente de ofensas e conflitos que não ocorreu”, escreveu.
Há meses, a Apib denuncia que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, não está atendendo TIs ainda em demarcação. Eloy Terena conta que, em reunião do grupo de trabalho realizada ontem, coordenadores dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) justificaram que não têm condições de prestar assistência a essas áreas por falta de recursos.
A Sesai não respondeu o pedido de um posicionamento oficial sobre a questão do atendimento em áreas não homologadas até o fechamento desta reportagem.
No ano passado, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier, determinou que os servidores do órgão não visitassem terras não homologadas. Na prática, a medida dificulta ainda mais não apenas o avanço dos procedimentos demarcatórios mas também o acesso de milhares de indígenas a benefícios sociais, entre outros problemas. A orientação contraria recomendações do Ministério Público Federal (MPF) e faz parte da estratégia do governo de inviabilizar as demarcações, uma promessa de campanha de Jair Bolsonaro.
MPF
A subprocuradora-geral da República e coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF, Eliana Torelly, considera que a segunda reunião da sala de situação, no dia 24, foi mais positiva, com uma pauta mais objetiva e menos participantes. “O Ministério Público Federal acompanhará atentamente todas as etapas do cumprimento da medida liminar”, garante.
“Precisamos conhecer os planos, discutir e botar para funcionar”
As reuniões de planejamento das ações para os povos isolados, assim como as de caráter mais geral, continuam acontecendo. A forma de cumprimento da cautelar deferida pelo ministro Barroso deve ser ajustada entre o governo e o movimento indígena.
“O que a gente está discutindo são ações de prevenção. O que está sendo feito [no momento] são ações paliativas. Precisamos conhecer os planos, discutir e botar para funcionar”, pontua Angela Kaxuyana.
Veja quais são as medidas determinadas pelo ministro Luís Roberto Barroso
– Instalar um grupo de trabalho, com participação de representantes do governo e dos indígenas para acompanhar o andamento das ações de combate à pandemia;
– Instalar uma sala de situação para a gestão de ações para os povos indígenas em isolamento e de recente contato, com participação do governo, comunidades indígenas, Procuradoria Geral da República (PGR) e Defensoria Pública da União (DPU);
– No prazo de 10 dias contados a partir da notificação da decisão, o governo deve criar barreiras sanitárias em terras de povos indígenas isolados;
– Em 30 dias a partir da notificação da decisão, o governo deve elaborar um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros. O plano deve ser feito com a participação das comunidades indígenas e do Conselho Nacional de Direitos Humanos;
– Estabelecer, no âmbito do Plano de Enfrentamento, medidas de contenção e isolamento de invasores em relação a terras indígenas;
– Garantir que indígenas em aldeias tenham acesso ao Subsistema Indígena de Saúde, independente da fase de demarcação da TI;
– Indígenas não aldeados (urbanos) também devem acessar o subsistema de Saúde Indígena caso não haja oferta no SUS;
*Matéria publicada originalmente no site do ISA, edição de Oswaldo Braga de Souza/ISA: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/apos-decisao-do-stf-governo-bolsonaro-segue-omisso-no-combate-a-pandemia-entre-indigenas?utm_source=isa&utm_medium=ISA&utm_campaign=Covid-19
Fonte: CIMI.