Por Maura Silva e Marcelo Cruz. Estado registra a maior parte dos assassinatos em áreas rurais no país, seguido por Rondônia e Mato Grosso.
Segundo o dicionário da língua portuguesa, “eldorado” quer dizer lugar pródigo de riquezas e oportunidades. Mas significados podem ser distorcidos, conforme interesses e disputas que se travam neste lugar. Este é o retrato de Eldorado dos Carajás, município paraense, a mais de 770 quilômetros da capital Belém.
Após 20 anos do massacre que vitimou 21 sem-terra e deixou 69 feridos, a impunidade e a violência caracterizam aquele pedaço do país, de acordo com relatos de trabalhadores que viveram o dia 17 de abril de 1996. Este território ainda é marcado pelo latifúndio, pela mineração e grandes interesses econômicos. É o que afirma o agricultor Eurival Carvalho, conhecido como Totó, 49 anos, sobrevivente do massacre.
“O latifúndio persiste no estado do Pará, só que agora muito mais organizado e violento. Isso acontece porque a justiça não deu a resposta necessária e esperada no caso [do Massacre de Eldorado dos] Carajás e em nenhum outro que tenha acontecido na região. Com o tempo, a prática da violência se refinou, mas não diminui, pelo contrário”, explica.
Dados recentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) reforçam esta percepção. O Pará registrou o maior número de assassinatos no campo nos últimos anos, seguido por Rondônia e Mato Grosso. Em 2015, foram 50 mortes no país, sendo 47 somente na região Amazônica. Este é o maior número dos últimos 12 anos.
O advogado da CPT no Pará, Afonso Batista, lembra que o massacre ocorrido há duas décadas é emblemático em relação à violência praticada contra trabalhadores no campo. “Não há dúvida nenhuma de que a polícia a serviço do Estado queria mandar um recado para os camponeses dessa região, especialmente o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]”, declara. Ele destaca que, de 1970 a 2015, foram mais de 30 chacinas contra camponeses na região, envolvendo mais de 200 assassinatos.
Dentre as mortes citadas por Batista estão os assassinatos de Onalício Araújo Barros e Valentim Serra, conhecidos como Fusquinha e Doutor, dois integrantes do MST que foram mortos em março de 1998. Segundo o advogado, há indícios de que policias que participaram do massacre em 1996 também estejam envolvidos nos dois crimes. Até hoje ninguém foi condenado.
Outro caso emblemático na região é o da missionária estadunidense naturalizada brasileira Dorothy Stang, morta em 12 de fevereiro de 2005, em Anapu (PA), cidade na margem da rodovia Transamazônica. Os mandantes do crime nunca foram presos, apenas o pistoleiro – que reincidiu em mais homicídios.
Veias abertas da mineração
O Massacre de Eldorado de Carajás foi o terceiro em um intervalo de 30 anos no estado paraense, como lembra um dos coordenadores do Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM), Marcio Zonta. Na década de 1970, integrantes da Guerrilha do Araguaia – que tinha como objetivo derrubar a ditadura civil-militar – foram mortos pelo Exército e muitos ainda estão desaparecidos. Em 1987, o Massacre da Ponte São Bonifácio deixou centenas de garimpeiros mortos, que protestavam contra o fechamento de Serra Pelada. Esses casos têm em comum o aparelho repressivo do Estado, por meio da polícia e do Exército.
Para Zonta, os sucessivos ataques tinham o objetivo de aniquilar polos de resistência na região, uma vez que os interesses econômicos de grandes empresas estavam ameaçados. “O MST surge no Pará em um contexto dominado pelo latifúndio. Naquele período, existia um polo siderúrgico em Marabá. Os caminhões da Vale saíam da Serra de Carajás e levavam minério de ferro para serem beneficiados na cidade –, conforme a estrada ia sendo trancada pelos sem-terra, o processo de circulação de capital era interrompido”, explica.
Surgido em 2010, o MAM é um movimento popular que se estrutura na região e em outros estados do país para organizar trabalhadores frente os impactos provocados pela mineração. Zonta reforça o papel da mineradora Vale no subdesenvolvimento de algumas cidades do Pará. “A entrada da Vale no sul e sudeste do Pará acentuou o subdesenvolvimento. Ela ativa um saque mineral só visto em épocas coloniais, mas com advento tecnológico extremamente sofisticado. No começo do projeto Grande Carajás, tirava-se dez milhões de toneladas métricas de ferro por ano. Hoje, chega-se à marca de 230 milhões”, destaca.
A companhia Vale informou, por meio de nota, que em 2015, a produção de minério de ferro em Carajás foi de 129,6 milhões de toneladas. A mineradora reconhece que as operações transformam o entorno da região. Diz, no entanto, que busca conciliar as atividades com “a promoção de prosperidade, gerando empregos, renda, acesso a educação, apoiando o desenvolvimento de novos negócios locais a partir de vocações produtivas e de serviços da região”. Para a mineradora, “recursos naturais sem serem transformados não geram valor” e que busca práticas sustentáveis na extração dos minérios. Informa, por fim, que a Floresta Nacional de Carajás, em Parauapebas (PA), é um exemplo nesse sentido, pois a Vale ocupa uma área de menos de 3% da reserva.
Nova face do latifúndio
“Eu entrei [no MST] porque eu nunca tinha tido uma terra. Eu só vivia trabalhando na terra dos outros”, diz Maria Raimunda Agapito Moreira, 62 anos, sobrevivente do Massacre de Eldorado dos Carajás. Ela é o retrato da reconfiguração fundiária que ocorreu no Pará após década de 1990. Nesse período, foi retomado na região um processo de articulação massiva pela reforma agrária.
Segundo Haroldo Souza, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), a visibilidade nacional e internacional do massacre, atrelada ao esgotamento do modelo fundiário, contribuiu para que esse novo período se abrisse. “A partir de 1994, o MST entra em um período de reascenso, realizando grandes ocupações de terra e se organizando regionalmente com outros movimentos. É importante ressaltar que o modelo de concentração fundiária, o uso excessivo de recursos naturais e a escravização da mão de obra, foram elementos fundamentais para o fortalecimento das mobilizações por parte dos trabalhadores e para o esgotamento de horizonte das políticas neoliberais”, explica.
Neste cenário, o capital rentista, mesmo com um ambiente aparentemente desfavorável, reconfigurou o processo na região implantando um novo sistema latifundiário, explica Haroldo. “A crise desse modelo neoliberal do final dos anos 1990, de certa forma, foi também uma espécie de crise de um capital produtivo, expropriatório, que não buscava nenhum tipo de transformação na organização da produção e na produção em si. Ele é oriundo de uma oligarquia local que se perpetua desde 1920 e que foi se reestruturando e se recriando a partir da aliança com o Estado ou com o capital”.
O professor conclui que o capital financeiro atrelado ao latifúndio e ao seu antigo modelo origina o atual modelo de agronegócio. “É o controle de grandes faixas de terras nas mãos de grandes corporações”, finaliza.
Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Fonte: Brasil de Fato