Por Sputnik Brasil.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas destacam as vastas reservas de gás natural no enclave e alertam para a possibilidade de aumento nos preços caso a situação se agrave ainda mais.
A ofensiva israelense na Faixa de Gaza completou 100 dias no último domingo (14), com pelo menos 24 mil mortos, sendo 70% mulheres e crianças, e mais de 60 mil feridos, segundo dados do Ministério da Saúde palestino. No lado israelense foram 1.139 mortes, quase o total do dia 7 de outubro, quando houve a incursão do grupo palestino Hamas ao território israelense.
Nos últimos meses, chamou atenção o apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel, mesmo diante de fortes críticas de outros Estados à desproporcionalidade da ofensiva israelense em Gaza. Esse apoio se deu, em especial, em votações no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Alguns analistas apontam que o apoio incondicional de Washington não tem como pano de fundo apenas a manutenção da aliança com Tel Aviv, mas também os recursos naturais pertencentes aos palestinos e a tentativa de fortalecer uma rota comercial alternativa ao projeto chinês da Nova Rota da Seda.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam quais são os objetivos de Washington ao apoiar a incursão israelense no enclave, e se o conflito pode acabar beneficiando a Europa, atualmente em crise de energia.
Qual o real motivo do conflito na Faixa de Gaza?
Filipe Ribeiro, criador do canal Geopolítica em Português, aponta que Israel tem vários objetivos em Gaza, que incluem a Cisjordânia, território da Palestina controlado por Israel.
“Mas Gaza é o principal foco. De fato os recursos [naturais] são um dos pontos importantes para Israel, mas quando falamos em recursos, não falamos só em gás natural. Os próprios relatórios das Nações Unidas explicaram que alguns dos objetivos de Israel relativamente aos recursos eram […] controlar a água, controlar as terras que permitem uma boa agricultura, e, de fato, o gás natural na região é estimado em vários trilhões de pés cúbicos, em vários pontos, não só na zona marítima, mas também na zona terrestre”, explica Ribeiro.
Ribeiro acredita que a abundância de gás natural explica o apoio dos EUA e da Europa a Israel. Segundo o analista, o chamado “Ocidente coletivo” parece ter uma estratégia calcada em dois objetivos relacionados entre si.
“Um dos objetivos era o domínio dos hidrocarbonetos no Oriente Médio. O outro objetivo era o afastamento da Rússia e do Irã como principais parceiros das grandes economias da Europa, principalmente no gás natural, mas também no petróleo. Só que a sequência dos eventos deveria ser: fase um, domínio do Oriente Médio, ou seja, o controle dos hidrocarbonetos; fase dois, afastar a Rússia da Europa e travar também a capacidade do Irã, que tem vindo a mostrar-se importante também nas questões geopolíticas”, afirma Ribeiro.
“Quanto ao primeiro objetivo, na minha opinião, a estratégia do Ocidente foi de arredondamento, porque na sua fase normal de implementação ela necessitava que a operação na Síria desse resultado, ou seja, remover e substituir Bashar al-Assad, necessitava controlar o Líbano, manter a Arábia Saudita sob influência e derrubar economicamente o Irã”, complementa.
Ribeiro aponta que os dois principais campos de gás natural da Faixa de Gaza são os campos Tamar e Leviatã, com uma quantidade significativa de cerca de 200 trilhões de metros cúbicos de gás. Segundo ele, os campos foram descobertos entre 2009 e 2010 e já são explorados pela empresa norte-americana Chevron, que atua no ramo de geração de energia, em especial petrolífera.
“Só que os especialistas mostram que naquela região ainda há muitas reservas estimadas [além dos dois campos]. Ou seja, existe muita capacidade de exploração ainda nessa região”, diz Ribeiro.
Ele destaca que além dos campos explorados pela Chevron, há outros atualmente explorados pela britânica British Petroleum e pela italiana ENI. O especialista chama a atenção para o fato de a esposa do primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, ser uma das associadas da British Petroleum.
“Não tenho todos os dados sobre isso, mas aquilo que me chegou, de pessoas que partilham esse tipo de informações comigo, era que o negócio seria do sogro de Rishi Sunak, que teria uma empresa de tecnologia da informação. Nem seria nada especificamente ligado ao petróleo, mas que estava em um dos consórcios, ou seja, iria receber dividendos, iria receber também mais-valias da exploração”, explica Ribeiro.
Quem vai ser responsável por reconstruir a Faixa de Gaza?
Questionado sobre se as reservas de gás natural presentes na Faixa de Gaza podem despertar o interesse da Europa em contribuir para a reconstrução do enclave após o fim da ofensiva israelense, Ribeiro afirma que quando houver a ocupação total de Gaza por Israel, “esse será um interesse ocidental na região”.
“Se for preciso, até dinheiro da União Europeia será utilizado para financiar a reconstrução. […] Em última análise, todos os principais valores que vão financiar a reconstrução de Gaza serão norte-americanos, porque temos que nos lembrar que é o lobby israelense que manda normalmente nas eleições norte-americanas. Por isso os bilhões de dólares que vão todos os anos dos Estados Unidos para Israel, eles vão continuar a ir, e se for preciso, serão valores até mais avultados para reconstruir Gaza para os objetivos que estão propostos”, afirma o especialista.
“Porque o objetivo em Gaza é ser um ponto de ligação de energia à Europa, eu não tenho grandes dúvidas em relação a isso. Aquilo que eles querem fazer são grandes terminais de energia, criar gasodutos para interligar o Chipre, a Grécia, a Itália, e fazerem um grande hub energético, que será uma alternativa à Rússia, que agora está desligada da Europa”, acrescenta.
Segundo Ribeiro, “a energia é uma necessidade urgente para a Europa”, e Israel tem o comprometimento em ser “a representação do Ocidente no Oriente Médio”.
“[Israel] É literalmente o último projeto colonial europeu naquela região. Por isso essa é uma questão de poder, de manter ligações com o grande ponto geográfico de energia no mundo. Aí não interessam os direitos humanos, os direitos humanos não falam acima dos interesses econômicos e financeiros.”
Situação na região pode gerar alta no preço do gás natural?
Para Luiza Guitarrari, pesquisadora do Centro de Estudos de Energia da Fundação Getulio Vargas (FGV), se a situação no Oriente Médio escalar, não apenas com o conflito em Gaza, mas também com a guerra no Iêmen, pode haver uma desestabilização dos preços do gás natural, que estabilizaram após alcançar um pico em 2022. Ela aponta, em especial, os ataques a navios no mar Vermelho perpetrados pelos houthis, que vêm ameaçando o fluxo de comércio global.
“O que é a grande preocupação de nós, analistas de energia, mas também de pessoas envolvidas no comércio marítimo e de [pessoas de] logística, é esse conflito escalonar e acabar criando gargalos para o trânsito desses navios-tanque e também navios de gás, do GNL [o gás de cozinha]. Pode ser, sim, um motivo de elevação dos preços nos próximos meses.”
Ela aponta a fragilidade da situação no Iêmen e a ascensão do Irã, que apoia os houthis, na geopolítica global.
“Tem alguns dados que comprovam que os houthis são apoiados em termos de tecnologia, de aparatos digitais, como os próprios drones, e economicamente pelo Irã. Então, se a comunidade internacional entender que o Irã esteja tendo uma atuação um pouco mais proeminente, mais direta nesse conflito, a gente pode ver também uma possível entrada do Irã [diretamente no conflito], que é um ator muito importante para a economia global e também para o setor de óleo e gás.”
Ela lembra que “o Irã é uma produção pujante de gás, com quase 260 bilhões de metros cúbicos, então um transbordamento desse conflito para outras regiões seria extremamente preocupante”.
“Não somente para os países envolvidos na região, mas para o mundo inteiro, dado que o Oriente Médio, atualmente, concentra 40% das reservas mundiais de gás e 48% de petróleo”, alerta a especialista.
Questionada sobre se a escalada de tensão no mar Vermelho pode abrir um novo front de guerra, principalmente após o ataque do dia 10 de janeiro, o maior dos últimos 26 ataques na região, Luiza destaca que “o ataque recente não foi isolado”.
“Foram 18 drones envolvidos nessa operação, 2 mísseis cruzeiros… É um potencial bélico considerável, tendo em vista a situação atual do Iêmen e dos próprios houthis. Então é uma região que tem chamado bastante a atenção dos analistas, tem preocupado, sim, o comércio internacional de insumos variados. Mas se vai começar o conflito por ali exatamente, eu não sei.”
Luiza acrescenta que a possibilidade de o conflito escalar se tornaria maior caso Arábia Saudita e Irã se envolvessem diretamente no conflito. Porém ela aponta que esse cenário de transbordamento do conflito vai contra os interesses de EUA, Europa e Israel.
Ela ressalta que, em outubro, o Ministério de Energia israelense concedeu 12 licenças de exploração a empresas petrolíferas para explorar gás no Mediterrâneo, mais especificamente no oeste do campo de Leviatã, localizado em um meridiano que inclui o norte da Faixa de Gaza.
“Leviatã é um campo que já tem sido explorado há muitos anos por Israel, com reservas acima de 600 bilhões de metros cúbicos. […] Então, além desse campo, Israel pretende seguir explorando não somente o campo de Leviatã, mas também [os campos de] Tamar e Karish. E a produção pode não ocorrer nesse transbordamento do conflito, dada a questão da insegurança dos trabalhadores e dos operadores que ficam na região.”
Qual o papel do Brasil nesse xadrez geopolítico?
Sobre a atuação do Brasil em relação à escalada de violência no mar Vermelho e na Palestina, Luiza aponta que o papel do país, historicamente, é o de buscar o equilíbrio entre as partes através da diplomacia.
“O Brasil sempre buscou trazer as partes em conflito para a mesa de negociações. Não à toa o Brasil sempre é convidado como observador do Conselho de Segurança da ONU ou de outros órgãos associados à ONU. O Brasil sempre tenta assumir essa posição moderada e também chamar para a mesa de negociações as partes em conflito.”
No entanto ela destaca que a atuação do Brasil nem sempre é bem-sucedida, principalmente porque o mundo atravessa um período extremamente inseguro.
“A gente tem visto uma perda da credibilidade de instituições, como o próprio direito internacional, então urge aos Estados que eles cooperem juntos e atuem, tenham esse caráter cada vez mais diplomático, para, enfim, chegar às vias pacíficas de fato.”