“Apoio a ação violenta reforça tese de que bandido bom é bandido morto”

Por Débora Melo. 

Vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública diz que o País fracassou ao adotar uma política que valoriza o confronto policial.

No último dia 19, um grupo de cem moradores da Vila Andrade, na zona sul de São Paulo, recebeu com aplausos e gritos de “heróis” os policiais militares envolvidos na morte do menino Ítalo, criança de dez anos atingida com um tiro na cabeça durante uma perseguição. Menos de uma semana depois, uma ação da Guarda Civil Metropolitana (GCM) em Cidade Tiradentes, na zona leste, terminou com a morte de Waldik, de 11 anos.

Em entrevista a CartaCapital, o sociólogo Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que o apoio popular funciona como uma espécie de autorização para a prática de ações violentas por parte dos agentes de segurança.

Para Lima, o Estado fracassou ao adotar uma política que valoriza o confronto e trata o cidadão como inimigo. “A população precisa entender que não se enfrenta o crime no cano quente de um revólver”, diz.

Pesquisa realizada em 2015 pelo Fórum e pelo Instituto Datafolha mostrou que 50% dos entrevistados concordam com a frase “bandido bom é bandido morto”. As informações integraram o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que também revelou que policiais civis e militares mataram ao menos 3.022 pessoas no Brasil em 2014, alta de 37% em relação à letalidade policial de 2013.

Confira a entrevista:

CartaCapital: Nós tivemos no início do mês o caso do menino Ítalo e, no último fim de semana, uma criança de 11 anos foi morta pela Guarda Civil Metropolitana. São casos isolados?

Renato Sérgio de Lima: A princípio acho que não, não são casos isolados. Mas também não está acontecendo nada de extraordinário, infelizmente. Com o episódio do menino Ítalo, a gente experimentou o mesmo que aconteceu com o caso do estupro [coletivo, no Rio], ou seja, o problema ganhou visibilidade. Mas o número de homicídios, de estupros e de mortes em decorrência de intervenção policial no Brasil mostra que isso é um problema recorrente. A violência no Brasil é recorrente, mas vive de crises.

Nesses momentos redescobrimos o problema, mas a violência nunca deixou de fazer parte do cotidiano do Brasil, sobretudo dos pobres, dos negros e dos jovens. A experiência com a violência e com a resposta violenta por parte do Estado, não só das polícias, é algo muito presente na vida dos jovens das periferias do País. Infelizmente este não é um momento de crise aguda, é uma crise recorrente que nós insistimos não enxergar.

CC: Diante da constatação de que a violência é recorrente e faz parte do cotidiano, o que deu errado na estratégia de segurança pública?

RSL: Pode soar exagerado, mas eu diria que quase tudo deu errado. O Estado – e quando eu digo Estado estou me referindo a todos os poderes, em todas as esferas – tem sido ineficaz em dar respostas para reduzir a violência e para garantir direitos à população, direitos que estão consolidados na Constituição desde 1988, mas nos quais a gente não consegue avançar. Temos uma dificuldade muito grande em aproximar o Estado da população, aproximar as polícias da comunidade.

O Estado brasileiro insiste em adotar uma receita de como administrar conflitos sociais que é uma receita falida, na qual o enfrentamento é valorizado. Isso coloca em xeque a vida dos jovens, sejam eles policiais ou não, porque muitos policiais que estão na rua são jovens e boa parte é formada por negros. Então o perfil da população que está vivendo esse faroeste é, de um lado e de outro, muito similar.

Enquanto isso, vamos vivendo de crise em crise. O mesmo aconteceu no caso da médica que foi morta no Rio de Janeiro. Quando alguém mais proeminente na sociedade é vítima de violência, instala-se uma crise. E proeminente eu digo no sentido de conseguir mobilizar a sociedade e a opinião pública, não apenas por ser mais rico.

O que aconteceu com o menino Ítalo, o que aconteceu no Rio de Janeiro, o que tem acontecido na abordagem da Brigada Militar de Porto Alegre são ecos da timidez com que o Brasil optou tratar o tema da segurança. O País vive administrando crises e não pensa como resolver o problema de forma inovadora.

CC: A que o senhor atribui a repercussão do caso do menino Ítalo?

RSL: Um dos fatores é, sem dúvida, a idade dessa criança. Não dá para pensar que uma criança de dez anos é um bandido perigoso. Responsabilizar uma criança de dez anos e achar que o problema é dela é abandonar um projeto de País e de humanidade. Esse episódio revelou o fracasso das políticas públicas, acho que por isso chamou tanta atenção.

Outra coisa que mostra esse fracasso é o conservadorismo. É bastante preocupante a reação de alguns dos moradores da região onde ele foi morto, defendendo [a polícia] e dizendo que é assim que tem que responder, que os policiais apenas fizeram o trabalho deles, independentemente de investigação. É a população ensandecida.

Mesmo que consideremos que os policiais agiram dentro do que a legislação permite, você não pode comemorar o resultado. Mesmo que a lei permita que em uma situação extrema você mate alguém em legítima defesa, de você mesmo ou de outra pessoa, comemorar e defender essa ação é mais uma evidência de que fracassamos em um projeto de Estado. Comemorar a morte nunca é uma saída se a gente quer um País mais justo, onde os direitos sejam garantidos. A morte não é algo a ser comemorado, mesmo que tecnicamente não seja crime.

CC: Quais as consequências disso na ação policial?

RSL: O apoio à ação violenta reforça e retroalimenta a tese de que bandido bom é bandido morto. Reforça segmentos da polícia que acham que essa é a saída. Isso dificulta bastante qualquer projeto de modernização das instituições, porque, se a população acha que essa tem que ser a resposta, as instituições muitas vezes ecoam esse imaginário.

Infelizmente isso vai se reproduzindo, mas a gente não pode ter medo de dizer que essa não é a saída. Se fosse, nós não teríamos os números de homicídios crescendo há quase 30 anos.

CC: O senhor disse que o Brasil vive administrando crises e não pensa em resolver o problema de forma inovadora. O que seria uma proposta inovadora? No caso das polícias, é possível inserir por aqui uma cultura de não violência?

RSL: Polícia é força, é a tradução da força. A força pode ser exercida para garantir direitos, quando os mais fortes estão subjugando os mais fracos, ou também pode ser usada para provocar tiranias. Quando olhamos para democracias consolidadas, percebemos que as instituições policiais estão sob escrutínio público, sob rígidos mecanismos de controle e transparência e não têm medo de prestar contas. Isso seria uma revolução no Brasil.

Mais do que isso, precisamos de uma polícia que se aproxime da população. É preciso afastar a ideia de que a população é inimiga. Vamos avançar muito quando conseguirmos desfazer essa cultura do enfrentamento e pensar que as polícias podem e devem ter na população uma parceira para exercer sua tarefa. Essa ideia do inimigo talvez seja a grande inovação.

CC: A desmilitarização da polícia seria um caminho?

RSL: Se você entende a desmilitarização como a substituição dessa cultura do enfrentamento, como o fim da cultura do inimigo, acho que é um caminho a ser explorado. Mas se a desmilitarização for simplesmente eliminar estruturas hierárquicas, acho que não passa por aí.

CC: A presidenta afastada Dilma Rousseff sancionou o Estatuto Geral das Guardas, que deu porte de arma aos agentes. Isso foi um equívoco?

RSL: Não, porque o estatuto deixou muito claro que o papel das guardas não é fazer o papel da Polícia Militar, não é fazer o papel de polícia repressiva. É fazer prevenção. Isso pode ser uma boa estratégia, se bem coordenada.

CC: O GCM envolvido na morte do menino Waldik acabou sendo preso por homicídio culposo –  depois pagou fiança e foi liberado. Se ele assumiu o risco, não deveria ter sido homicídio doloso?

RSL: O homicídio culposo foi registrado porque, como era guarda, não poderia ser o auto de resistência, morte com intervenção. Então foi o mecanismo jurídico encontrado para o guarda não permanecer preso.

A princípio, a leitura que eu faço é que o delegado optou por não punir o agente e não considerou a ação equivocada. Eu discordo, porque nenhuma abordagem, nenhuma perseguição precisa ser feita daquela forma. A forma de parar um carro não é atirando. Existem outras técnicas para parar um carro, não é atirando no vidro, não é atirando na pessoa.

As forças de segurança precisam entender que não é enfrentando de peito aberto que os problemas serão resolvidos, e sim usando inteligência, capacitação e técnicas.

CC: Mas essa é uma mudança que vai vir de baixo?

RSL: Essa é uma mudança que precisa vir tanto de baixo como de cima. Mas, para isso ser de fato alcançado, a população também precisa parar de apoiar essas ações e entender que não se enfrenta o crime no cano quente de um revólver.

Da forma como a gente faz segurança pública hoje, sem desqualificar os 700 mil profissionais que atuam na área no País, fazer garantir a segurança da população e os direitos é quase impossível. Os policiais e os guardas correm riscos desnecessários, e a população se sente cada vez mais insegura e refém do medo da violência.

Foto: Reprodução/Carta Capital

Fonte: Carta Capital

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