Apesar das circunstâncias, não se deve ter medo de nada (ou “os sindicatos do lado certo da história”)

Imagem: Pixabay

Por José Álvaro Cardoso.

Mesmo com o evidente avanço da extrema direita fascista no Brasil, com destruição de direitos e da democracia, o governo não conseguiu dar uma estabilidade política e econômica ao país. A instabilidade e a polarização estão relacionadas diretamente com o fato de que não conseguiram apontar uma mínima saída para a crise econômica. O seu programa de governo, inclusive, ao destruir direitos e entregar patrimônio nacional, claramente tende a piorar a situação de conjunto, no médio prazo. Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que comanda verdadeiramente o processo no Brasil) quer mais e precisa extrair mais.

A grande mídia e os setores conservadores em geral queixam-se, inclusive, do fato de que as privatizações não estão caminhando. Ou seja, toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o desmonte da Petrobrás, tudo isso não significa uma saída que satisfaça os setores que financiaram e deram o golpe no Brasil. Eles querem, por exemplo, desarticular o setor público, como vimos pelo projeto de reforma administrativa, que liquida com direitos históricos dos servidores e tende no médio prazo a desmantelar o Estado.

Na outra ponta da corda a população come o pão que o diabo amassou. Se a família sobrevive com um salário mínimo (e no Brasil são muito milhões de famílias), a inflação pode ser zero que, mesmo assim, irá faltar dinheiro para suprir as necessidades básicas. Quem sobrevive com um salário mínimo no Brasil (no total, 27,3 milhões de brasileiros recebem até um salário mínimo, cerca de um terço do total da força de trabalho do país, segundo dados da Pnad-IBGE), gasta praticamente toda a sua renda para comprar comida. Dependendo do número de dependentes da família, não consegue pagar nem mesmo luz e água. Isso, em meio a uma pandemia que já matou quase 530.000 pessoas no país, boa parte delas por incompetência e descaso governamentais.

Essa dramática piora recente dos indicadores conjunturais se soma a uma situação estruturalmente muito aguda. No Brasil, os 50% mais pobres em termos de renda têm apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50% do total. No que se refere à propriedade, os 50% mais pobres detém 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos detém entre 70% a 80% de tudo. São níveis de desigualdade semelhantes aos da Europa no fim do século 19 ou começo do século 20, e que estão piorando com o conjunto de medidas deste governo, que retiram direitos e renda dos trabalhadores.

É neste quadro de profunda crise política e econômica que se desenrolam as negociações coletivas entre sindicatos de trabalhadores e patronais. Elas, que são uma das tarefas mais importantes dos sindicatos e que nunca foram fáceis, ficaram ainda mais adversas neste cenário de verdadeira tempestade completa. Uma das consequências de toda essa situação é a não reposição das perdas salariais, que para a maioria das mesas de negociação no Brasil é a cláusula mais importante. Como as negociações no Brasil são muito limitadas, o reajuste salarial é fundamental.

No entanto, segundo o Caderno de Negociação do DIEESE (nº42, de junho), em função da alta inflacionária, as negociações tem sido as piores da história. No acumulado de 2021 até maio, 14,3% dos resultados apresentaram aumentos reais; 27,8%, apenas recomposição das perdas, e 58%, ficaram abaixo da inflação no período, sempre na comparação com o INPC-IBGE. A variação real média no ano é de -0,67%. Além da maioria das negociações não estarem conseguindo nem mesmo a reposição da inflação na data-base, muitas vezes a negociação se arrasta por três ou quatro meses, e os patrões, malandramente, não aceitam retroagir o reajuste salarial ao mês da data-base. Ou seja, o trabalhador perde definitivamente 1/4 ou 1/3 do percentual de inflação no poder de compra. Como os salários são muito baixos isso faz diferença, servindo como um mecanismo extraordinário de exploração do trabalhador.

Em janeiro de 2018, o reajuste necessário para repor as perdas pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor-IBGE) era 2%. Agora em junho de 2021, este reajuste já teria que ser praticamente de 9%. A saída da burguesia brasileira – e da extrema direita que está no poder – para o problema inflacionário é aumentar os juros básicos da economia, via taxa Selic. Ora com uma inflação que está relacionada ao reaquecimento mundial da economia nos países centrais, e que nada tem a ver com o comportamento da demanda interna, obviamente aumentar juros não irá controlar a inflação. Em compensação irá aumentar os gastos com a dívida pública, enriquecendo ainda mais os milionários do país, os 0,2% de sempre.

A não reposição da inflação aos salários, ou o adiamento da reposição para meses após a data-base, provoca uma significativa queda dos salários reais, que já são bastante irrisórios. Ou seja, os patrões estão aproveitando a crise e a desarticulação do movimento sindical neste período para, na mesa de negociações, não dar reajuste salarial ou retirar os poucos avanços que os acordos e convenções coletivas possuem. O fato é especialmente grave para os salários mais baixos, já que, a inflação tem sido puxada pelos alimentos. Ao comparar junho de 2020 e junho de 2021, o preço do conjunto de alimentos básicos que compõe a cesta calculada pelo DIEESE, subiu em todas as capitais que fazem parte do levantamento. Os percentuais oscilaram entre 11,17%, em Recife, e 29,87%, em Brasília.

O aumento das dificuldades na negociação se verifica num contexto em que as dificuldades da ação sindical, de conjunto, aumentaram muito. De 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados no Brasil, segundo dados da PNAD Contínua/IBGE. Em 2019, das 94,6 milhões de pessoas ocupadas no país, 11,2% estavam associados a sindicatos. Em 2012 esse percentual era 16,1%. Além disso, há uma sistemática desqualificação dos sindicatos feita através da mídia comercial, empresas, instituições em geral, o que torna muito difícil para os trabalhadores enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas. É complicado o trabalhador comum entender que a existência do salário mínimo é uma conquista fundamental, numa sociedade na qual quase 60% da população vive com renda domiciliar per capita igual ou inferior ao valor do salário mínimo, e 43,1 milhões de pessoas, 20,6% da população, vivem em uma situação de insegurança alimentar.

É nesse contexto extremamente desfavorável que estão ocorrendo as negociações coletivas deste ano. Os patrões estão aproveitando toda essa conjuntura de crise econômica e sanitária para tentar “depenar” os direitos dos trabalhadores, muitos conquistados a suor e lágrimas, às vezes obtidos em muitas décadas. Assim, vale lembrar a observação da direção sindical do DIEESE em Santa Catarina, em documento de 2020, que trata da postura dos sindicatos na negociação coletiva:

“Apesar da situação ser uma das mais críticas da história, não iremos nos desesperar. Apesar das circunstâncias serem extremamente temerárias também não devemos ter medo de nada. Afinal de contas, estamos defendendo os interesses da esmagadora maioria da população e nos encontramos do lado certo da história” (11.08.20).

José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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