Há poucos dias, viralizou nas redes sociais uma montagem de duas fotos. Localizada na parte de cima da montagem, a primeira mostrava a equipe de funcionários da Ável, empresa especializada em assessoria de investimentos ligada à XP Investimentos. Na segunda, inserida na parte de baixo da montagem, dezenas de garis trabalhadores do Rio de Janeiro. O contraste “fala por si”, mostrando a essência do Brasil.
A primeira imagem foi capturada recentemente, a segunda em um passado não muito distante, mas ambas registram situações perversamente corriqueiras: enquanto na Ável apenas pessoas brancas posam para a foto, em sua maioria homens, entre os garis do Rio só homens negros compõem o retrato. Retrato da desigualdade vigente no país, que salta aos olhos.
Não é a primeira vez que isso acontece. Montagem de 2017 já registrara tal contraste racial e social, com uma diferença: a foto da parte de baixo é a mesma presenciada dias atrás, mas a da parte de cima mostrava formandos do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ou seja, a diferenciação racial era a mesma, só pessoas brancas na imagem de futuros médicos. Mas há quem continue negando o fosso racial aqui existente.
Os olhos veem, mas o coração não sente
Haveria outra explicação para a falta de visão ou interpretação da desigualdade racial, que muita(o)s teimam em não reconhecer? O apartheid étnico-racial e social sempre esteve e continua no país. Aqui a elite sequer precisou criar leis, nos moldes do apartheid sul-africano, que segregassem territórios para brancos e negros no pós-abolição da escravatura. Em locais frequentados por pessoas mais abastadas, não raro o ambiente é composto por pessoas brancas. Já em bairros populares, favelas ou comunidades, destaca-se o alto contingente de pessoas negras. Isso nunca foi novidade, desde sempre. O desafio é como enfrentar essa chaga social.
Inúmeras constatações comprovam a extrema desigualdade étnico-racial em várias áreas no país. Citamos aqui apenas dois exemplos:
1) Idade média ao morrer – o Mapa da Desigualdade 2019, publicação da Rede Nossa São Paulo, que compara indicadores dos 96 distritos da capital paulista, revela que quem vivia na Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, morria em média 23 anos mais cedo que um(a) morador(a) de Moema, bairro com um dos metros quadrados mais caros da capital. Na Cidade Tiradentes, a idade média ao morrer era de 57 anos, já em Moema, a média era de 80 anos. E a idade ao morrer estava diretamente ligada à cor da pele: Moema era o distrito mais branco da cidade (apenas 5% de sua população era negra), enquanto em Cidade Tiradentes esse índice era mais de onze vezes maior (56,1%), isto é, a maior parte da população do distrito da Zona Leste era composta por negros e negras (Censo 2010);
2) Rendimentos – segundo o IBGE, em 2018, a média do rendimento mensal da população branca ocupada foi de R$ 2.796 enquanto a da população negra foi de R$ 1.608. Isto quer dizer que as pessoas pretas ou pardas receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca.
Essa diferença obedece a um padrão perverso que vem se reproduzindo ano a ano no Brasil. O que “justificaria” a negação de alteridade? A quem isso interessaria? Privilégios se manterão ad aeternum? Até quando a sociedade tolerará tamanha desigualdade no país?
Estamos de olho
Algumas poucas empresas começam a sensibilizar o olhar para as assimetrias raciais e de gênero em seus quadros funcionais. Outras tantas realizam apenas ações de marketing para se afirmarem enquanto empresas diversas e socialmente responsáveis, porém sem desenvolver ações concretas de transformação. Há ainda um terceiro grupo de empresas, que simplesmente continua ignorando a questão da diversidade, inclusão étnico-racial e de gênero em seus quadros funcionais. E, ressalte-se, há empresas que contratam pessoas de grupos sociais subalternizados apenas na condição de estagiária(o)s ou aprendizes, o que é um paliativo, mas bem insuficiente.
Pesquisa realizada em 2016 pelo Instituto Ethos, Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas, constatou que apenas uma pequena parcela dessas empresas desenvolvia políticas efetivas, pois muitas se restringiam a desenvolver somente ações pontuais e a maioria sequer empreendia alguma política ou ação. Consequentemente, permaneciam as disparidades de gênero e de raça no mercado de trabalho, sobretudo no que diz respeito a salários e ocupação de cargos do alto escalão.
Os dados dessa pesquisa mostram que as mulheres eram minoria em todos os cargos das empresas pesquisadas, exceto nos postos de “aprendizes” e “estagiárias”, e que elas sofriam também um afunilamento hierárquico, ou seja, eram excluídas das posições mais altas das grandes corporações. Como exemplo, podemos citar o “Conselho de Administração”, onde as mulheres ocupavam apenas 11% dos cargos e 13,6% no “Quadro Executivo”. Quanto às pessoas negras, o afunilamento hierárquico e a sub-representação eram ainda maiores. Apesar de ser maioria no grupo dessas empresas como “aprendizes” (57,5%) e “trainees” (58,2%), a população negra tinha sua participação resumida a 6,3% no nível “Gerência” e 4,7% no “Quadro Executivo”.
No caso das mulheres negras, existe a interseccionalidade de, pelo menos, dois fatores de discriminação: gênero e raça. Com isso, a exclusão chegava a ser descomedida. A condição era tão desfavorável que, em todo o quadro de pessoal, elas apareciam ocupando apenas 10,6% e no “Quadro Executivo” sua presença se reduzia a aviltantes 0,4%.
Apesar dos olhos invisíveis do mercado, o Estado tem que agir
Considerando esse cenário, algumas proposições/sugestões podem ser encaminhadas para o campo das políticas públicas, pois é mais do que urgente que o Estado se posicione contra esse apartheid ao qual a sociedade brasileira tem sido submetida. As ações propostas referem-se a três frentes distintas: 1) incentivo, 2) legislação sobre a transparência de dados das empresas públicas e privadas, e 3) sanção por descumprimento de dispositivos legais que versam sobre a questão.
Na frente “incentivo”, o Estado brasileiro, por meio de seus governos, pode e deve tomar iniciativas de estímulo reparador como selos, prêmios e incentivos fiscais que reconheçam ações de inclusão e promoção de direitos humanos e diversidade em organizações no âmbito de órgãos públicos, da iniciativa privada e de entidades do terceiro setor (sem fins lucrativos). E tão importante quanto tal adoção é a fiscalização da eficácia na adoção dessas políticas de diversidade e inclusão e no acompanhamento da evolução dos quadros de pessoal para garantir o sucesso da iniciativa.
Na frente “atualização de leis”, uma sugestão fundamental é a promulgação de uma lei nacional de transparência que obrigue as empresas, públicas e privadas, a socializarem relatório anual com informações de raça/cor, gênero e salários de funcionária(o)s por cargos; e mais, que o Estado regulamente um limite máximo percentual de diferença de salário em um mesmo cargo e que penalize empresas com índices de desigualdade por cargos e salários conforme o gênero ou a raça da(o) trabalhador(a). Esse tipo de medida já está sendo discutida pela União Europeia (UE) neste ano de 2021, quando a Comissão Europeia decidiu propor uma nova diretiva de regulamentação para equilibrar a remuneração em uma mesma função.
Segundo o documento, é necessário fortalecer a aplicação do princípio de igualdade salarial para trabalho igual ou de igual valor entre homens e mulheres – que é um dos princípios fundadores da UE consagrado no Tratado de Roma – por meio de transparência e mecanismos de fiscalização, uma vez que a ausência de transparência sobre os salários se converte em uma das principais barreiras às soluções (EUROPEAN COMISSION, 2021, p.2). No Brasil, em 30 de março de 2021, o Senado aprovou um Projeto de Lei semelhante ao mencionado anteriormente. O PLC nº 130/2011 foi apresentado em 2009 e enviado ao Senado em 2011, onde foi engavetado por uma década e somente agora voltou a ser debatido. Após discussões e alteração realizada no texto aprovado no Senado, o PLC retornou à Câmara dos Deputados. Tudo leva a crer que será necessário haver pressão popular para sua aprovação, o que nos faz questionar: a quem interessa que tal projeto não seja aprovado?
Na frente “sanção”, que se aplicaria às empresas “resistentes” ou negligentes em promover essa igualdade, uma alternativa possível seria a judicialização dos casos, embora não seja inoportuno considerar eventual conivência do Poder Judiciário. Ocorre que, independentemente de se afirmar socialmente responsável, empresas que mantenham quadros hierárquicos marcados por desigualdade étnico-racial e de gênero devem responder para a sociedade e a Justiça brasileira, pois a igualdade de oportunidades no trabalho, sem distinção de gênero e de raça, está disposta na Constituição Federal de 1988 (CF/1988). Um exemplo desse tipo de ação é o Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidades para Todos (PPIOT), adotado pelo Ministério Público do Trabalho, que utiliza dispositivos jurídicos para cobrar o combate ao racismo e a aplicação de políticas afirmativas nas organizações empresariais.
Em complemento a essas sugestões, propomos ainda a ampliação do debate em torno de outros mecanismos por meio dos quais o Estado brasileiro possa pressionar as empresas a adotarem ações efetivas de diversidade e inclusão em seus quadros hierárquicos, como a regulamentação dos seguintes impedimentos: 1) de acesso a crédito público – empréstimos e financiamentos por bancos públicos; 2) de participação em editais públicos de venda de produtos/serviços para os poderes públicos; e 3) de acesso a benefícios ou renúncias fiscais. Contudo, nunca é demais lembrar a importância do comportamento exemplar do poder público também no que se refere às condições a serem exigidas para as empresas privadas.
O que se defende aqui é que políticas públicas e ações afirmativas sejam desenvolvidas respeitando os direitos fundamentais, sociais e trabalhistas inscritos nos artigos 3º, 4º, 5º, 6º e 7º da CF/1988, para que as desigualdades de gênero, raça e classe, em suas frequentes combinações, sejam reconhecidas e combatidas de maneira efetiva também no mercado de trabalho. Tais políticas precisam chegar no ambiente interno de todas as empresas, públicas e privadas, como uma diretriz obrigatória que obedece a legislação vigente no país e não como mero jogo de marketing ou favor que as empresas podem ou não conceder a grupos sociais historicamente excluídos.
De olhos bem abertos
Após a longa batalha ideológica para vencer alegações com vistas a manter privilégios e conservar desigualdades, entre outras: “políticas afirmativas ferem o princípio da isonomia”; “não se pode abrir mão do mérito individual numa sociedade competitiva”; “é preciso privilegiar o combate à pobreza e não a questão étnico-racial”; e “é difícil identificar as pessoas a serem beneficiadas dada a miscigenação ocorrida no país”, é urgente a adoção de políticas de ação afirmativa que reparem de fato a desigualdade e a injustiça ainda sistematicamente produzidas e reproduzidas no mercado de trabalho do país.
Até porque existe ainda outra falácia que reverbera no mundo corporativo, referente à alegada dificuldade de as empresas selecionarem pessoas negras com boa formação acadêmica para seus quadros funcionais, o que não é verdade, em especial após a conquista de cotas étnico-raciais e sociais nas universidades públicas. Ademais, a pequena presença em cargos mais prestigiados não se deve ao fato de não haver pessoas pardas e pretas aptas para assumir tais posições. Ocorre que estas enfrentam maiores obstáculos para concorrer a esses cargos, mesmo quando conseguem por mérito próprio atingir mais tempo de casa. São comuns casos de pessoas negras com boa formação e experiência profissional ficarem com a carreira estagnada ou mesmo amargarem o desemprego devido ao racismo estrutural que as impedem de galgar posições de destaque. Afinal, ainda são muitas as empresas que continuam não só teimando em não reconhecer esta chaga social, mas, pela sua falta de transparência, negam também o direito de que toda(o)s possam ver como esse país tem sido efetivamente desigual e injusto.
Mas não se pode ignorar algumas conquistas que são frutos de muitas lutas, contudo ainda insuficientes, o que não lhes ofusca o mérito. Por exemplo, as cotas raciais e sociais que foram, e continuam sendo, essenciais para que pessoas pretas, pardas e indígenas tenham acesso às universidades públicas e a postos mais qualificados e bem remunerados do mercado de trabalho. Porém, cabe enfatizar que estas ações precisam ser acompanhadas de políticas de permanência estudantil, sob pena de não cumprirem seu objetivo.
O Estado não pode mais se eximir de desenvolver políticas públicas de ações afirmativas no mercado de trabalho, devendo agir para que a sociedade brasileira reconheça e repare esse histórico apartheid social.
Marcelo Pagliosa é professor na Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Maranhão.
Tanielle Abreu é doutoranda na Faculdade de Economia e Administração da USP-Ribeirão Preto.
César Minto é professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.