Por Felipe Souza.
Mas o que os assaltantes fazem com esses aparelhos, já que a polícia bloqueia o IMEI (número de identificação) assim que o boletim de ocorrência é registrado?
Em 2015, o então secretário da Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, anunciou que esse bloqueio do registro do celular faria o smartphone perder todas as suas funções “e virar uma pedra” na mão dos criminosos. Mas não é o que acontece.
O bloqueio até ocorre de forma efetiva, mas os criminosos descobriram um aparelho capaz de trocar o IMEI bloqueado por outro antigo em uso – o que pode levar a dois celulares a terem o mesmo código. Depois, os assaltantes encontraram nas “feiras do rolo” do Facebook um caminho fácil para desová-los. Alguns grupos do tipo têm mais de 300 mil participantes.
Nesta terça-feira, uma mulher ofereceu 14 celulares “semi-novos” em um grupo fechado para venda e troca de celulares no Facebook, com 248 mil membros.
Desbloqueio
Mas, antes de tudo, o aparelho precisa estar funcionando plenamente.
Fabricado na China e na Coreia do Sul, o desbloqueador de IMEI apaga a identificação do aparelho registrado no Cadastro de Estações Móveis Impedidas (Cime), da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Isso “engana” o sistema das empresas de telefonia e faz o aparelho ser reconhecido como válido e efetuar ligações e acessar a internet normalmente.
Esse desbloqueador foi proibido no Estado de São Paulo há três anos. Mas, em entrevista à BBC Brasil, o delegado titular da Delegacia de Cybercrimes do Departamento de Investigações Criminais (Deic), José Mariano de Araújo, disse que os criminosos brasileiros passaram a compram o aparelho no Paraguai. Cada um custa cerca de US$ 350 – o equivalente a R$ 1150.
O delegado do Deic diz que hoje apenas dois modelos de celular são imunes ao desbloqueio do IMEI: o iPhone X, fabricado pela Apple, e o Galaxy S8, da Samsung. Com um aparelho desses em mãos, só resta aos assaltantes tentar desmontá-lo e vender suas peças.
José Araújo, que também é professor de cybercrimes e Direito Eletrônico da Academia da Polícia Civil de SP, diz que essa barreira é apenas uma questão de tempo para os criminosos. Como a atualização do desbloqueador é feita online, quando um hacker de qualquer parte do mundo conseguir quebrar o código para destravar o IMEI do iPhone X, por exemplo, todos os desbloqueadores do mundo também poderão ter acesso à função.
Questionada pela BBC Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo não informou quantos celulares foram roubados durante o carnaval. Mas segundo o delegado, o número de ocorrências cresceu.
“Estamos vendo uma reedição do roubo e furto de automóveis. É como pegar uma BMW novinha, descobrir uma que deu perda total, implantar o chassi dela na roubada e está lá a mesma situação (legal). Tem celular roubado, com IMEI de celulares antiguíssimos, rodando normal”, explica o delegado.
No dia 12 deste mês, a polícia prendeu um porteiro de 45 anos e uma moradora do prédio onde ele trabalha, de 27 anos, sob suspeita de participarem de um esquema de roubo de celulares no Carnaval de São Paulo. Com eles, foram apreendidos 300 aparelhos. Na semana anterior, outro grupo fora detido com 32 smartphones.
Em São Paulo, a Polícia Militar reforçou a segurança com 7.504 policiais a mais nas ruas durante o Carnaval. No período, 8.843 pessoas foram abordadas, 31 presas e 4 menores apreendidos na capital. Em 2017, 4.127 celulares foram recuperados em ocorrências de receptação.
Por que não bloquear dois celulares com o mesmo IMEI?
A Anatel já fez anúncios de que bloquearia o IMEI de celulares piratas – sem o registro ou com a numeração repetida. A mais nova previsão é que a medida seja adotada a partir de maio de 2018, no Distrito Federal e Goiás.
Para o delegado do Deic, essa é uma das medidas mais importantes para evitar os roubos de celulares.
O delegado explica que o Brasil não exigiu que cada celular tivesse um IMEI diferente quando começou a registrar os aparelhos roubados no Cadastro de Estações Móveis Impedidas (Cime). Isso possibilitou que um registro fosse usado em diferentes celulares.
“Chega um aparelho da China aqui com um IMEI que nem existe e funciona. Fora isso, existe também uma configuração padrão de IMEI para testes de operadoras, que são usadas pelos fraudadores e aparecem dezenas de vezes”, conta José Araújo.
Segundo ele, a Anatel tem quer permitir que apenas aparelhos homologados funcionem nas redes de telefonia o mais rápido possível. “Mas as operadoras não têm nenhum interesse nisso porque o que elas querem é aumentar a sua massa de assinantes”, diz.
Ele diz isso porque, caso os IMEIs piratas ou duplicados fossem bloqueados, a maior parte dos celulares importados da China deixaria de funcionar no Brasil por conta das identificações repetidas. Isso forçaria todos os brasileiros a usarem aparelhos nacionais e afetaria diretamente a quantidade de assinantes das operadoras.
O delegado do Deic ainda sugere que todos os celulares fabricados tenham um número de fábrica cravado em suas peças, como nos chassis de carros.
“Isso viabilizaria a gente saber a origem das peças de cada aparelho ao analisá-lo, além de evitar a venda das peças. Mas as fabricantes também não estão interessadas porque isso aumenta o custo de produção”, explica Araújo.
Procurada pela reportagem da BBC Brasil, a Anatel não disse por que ainda não bloqueia IMEIs repetidos nem confirma quando adotará a medida.
Desova no Facebook
As “feiras do rolo”, como são conhecidos os comércios ilegais de rua onde são vendidos produtos falsos ou roubados, agora migraram para a internet.
A maior parte desses grupos fechados e secretos está no Facebook e alguns são destinados exclusivamente ao comércio de celulares. A ideia inicial era de que os usuários pudessem vender aparelhos antigos ou com pequenos defeitos, mas criminosos estão aproveitando a plataforma para desovar os aparelhos roubados.
A reportagem da BBC Brasil teve acesso a mais de 10 grupos de troca e venda de celulares na rede social. Em alguns deles, pessoas vendiam até cinco aparelhos diferentes e faziam pacotes – um usuário vendia três celulares por R$ 800. Um sinal forte de irregularidade, segundo o delegado.
José Araújo e sua equipe do Deic investigam há mais de um ano os grupos criminosos que desovam celulares nas redes sociais. Diversos suspeitos foram identificados, mas nenhum foi preso.
“A infiltração virtual é muito complexa. Os criminosos agem como um exército e se blindam. É muito difícil conquistar a confiança de alguém pela internet. Assim que o cara desconfia de você, bloqueia na hora”, diz o delegado.
Ele culpa redes sociais como o Facebook por dificultar o trabalho policial.
“Se nos mostrarem uma feira do rolo, eu mando uma equipe e a gente combate, mas na internet eu não tenho informação. As empresas que deveriam ajudar não vão porque elas têm que provar que possuem um ambiente seguro, não importa se o usuário é um criminoso ou não. Elas deveriam me dar acesso para trabalhar e investigar, mas não dão. Quer uma polícia eficiente que trabalhe com segurança ou preservar o anonimato de criminosos?”, afirma o delegado.
Procurado, o Facebook informou que os “padrões da comunidade proíbem o uso do Facebook para praticar atividades criminosas, como as que causem danos financeiros a pessoas ou negócios”. Diz ainda que “remove qualquer conteúdo desse tipo assim que fica ciente e fornece às autoridades os dados requisitados seguindo a legislação”.
Como sei que um celular é roubado?
O delegado do Deic aponta a receptação como o principal combustível que impulsiona os roubos e furtos de celulares. Mas muitas vezes o comprador tem boas intenções ao participar de um grupo de trocas nas redes sociais e não sabe identificar se um aparelho é roubado.
O delegado do Deic diz que a principal dica para não colaborar com crime é aplicar os mesmos conhecimentos usados ao comprar um carro quando adquirir um celular de outra pessoa.
“O produto tem documentação ou nota fiscal? O aparelho tem o IMEI bloqueado? Eu recomendo que ainda que marque um encontro com o vendedor num local público de grande movimentação para avaliar o aparelho pessoalmente. Vá acompanhado, ligue o aparelho, veja se a conta do iTunes da Play Store estão bloqueadas, leve um chip para testá-lo e coisa do tipo”, recomenda o delegado.
Mas para ele, enquanto IMEIs repetidos forem permitidos e a comercialização indevida for possível por meio das redes sociais e até mesmo em lojas que fazem manutenção de aparelhos, todas as outras ações serão apenas para “enxugar gelo”.