Por Gualter Santana Pedrini.
Peixe frito pode ser apreciado por muitos, mas o odor da fritura não é tão bem aceito e pode ser insuportável para alguns. Agora, imagine uma cidade inteira cheirando a fritura de peixe durante a noite inteira?
Essa era a realidade de cidades como Rio de Janeiro, Santos e São Paulo durante o século 19. Momentos antes do pôr do sol, lanternas e lamparinas alimentadas por óleo de baleia, mas chamadas de azeite de peixe, eram acesas pelas principais ruas dessas cidades e queimavam por toda noite, emitindo um odor característico que dominou as noites urbanas por décadas.
Era trabalho a ser feito por escravizados, em dupla, chamados de vagalumes: um era encarregado de abaixar e subir os lampiões, através de um sistema de alavancas e cordas, e o outro carregava sobre a cabeça um grande jarro com litros de óleo de baleia, que seria derramado para dentro do lampião.
Em 1829, a cidade de São Paulo possuía pouco mais de 20 mil habitantes e apenas 24 lampiões alimentados com azeite de oliva iluminavam as ruas mais prósperas e as casas dos mais ilustres moradores. Com o crescimento urbano, os moradores exigiam aumento do número de postes de iluminação, pois não aguentavam mais pisar em sapos que surgiam a centenas pelos encanamentos da cidade. Devido ao aumento do número de pontos de luz, o oneroso óleo de azeite foi substituído pelo óleo de baleia e, depois, por óleo comum de peixe.
A energia elétrica chegou ao Brasil em 1879, mesmo ano da invenção da lâmpada. Na ocasião, Dom Pedro II concedeu a Thomas Edison a permissão de implementar seus equipamentos no País, iniciando pela Estação Central da Estrada de Ferro que recebia o nome do então Imperador, onde dínamos eram acionados por máquinas a vapor usadas para transportar cargas pesadas. Em 1883, Dom Pedro inaugurou em Campos dos Goytacazes, no norte do Estado do Rio, o primeiro serviço público de iluminação do Brasil e da América do Sul. Até esse momento, a história da iluminação pública no País era pautada na morte de incontáveis baleias, toneladas de peixes e o desmatamento de centenas de hectares de Mata Atlântica e manguezais no norte fluminense. Mesmo antes da energia elétrica alcançar todas as cidades brasileiras, as lamparinas permaneceram acesas pela queima de derivados do petróleo.
Hoje, é difícil imaginar uma vida urbana sem iluminação noturna artificial. Ela prolongou nossos horários de trabalho, mudou nossa relação com os espaços urbanos e possibilitou mudanças nas interações sociais. Não é exagero pensar que uma parcela considerável dos seres humanos se tornou noturna.
Uma nova forma de poluição
Excluindo alguns ecossistemas que estão imersos em uma constante escuridão, a natureza passou mais de 3 bilhões de anos se adaptando e evoluindo dentro de um ciclo entre o dia e a noite. Na marcha evolutiva, cada espécie encontrou uma forma de conviver com as variações diárias de luz: o melhor momento do dia para sair do esconderijo, quando caçar, migrar, acasalar, depositar seus ovos, bem como o momento mais seguro para as crias saírem do casulo e não serem devoradas. A iluminação artificial pode perturbar esse relógio biológico das espécies e trazer consequências nem sempre tão fáceis de se perceber.
O termo fotopoluição, utilizado para luzes artificiais noturnas (ou LAN), foi sugerido apenas em 1985, pelo professor holandês Dr. Frans Johan Verheyen, que já estudava os efeitos das luzes artificiais nos animais desde a sua tese, em 1958. Mas foi somente em 1994 que se iniciou o monitoramento, via satélite, do crescimento da luminosidade noturna, que hoje já alcança mais de 80% da população global, com um crescimento anual de 2,2% impulsionado pela popularidade das lâmpadas de LED, que possuem um espectro de luz azulada com maior poder de propagação tanto no ar quanto na água e com mais impactos nos animais do que as antigas luzes incandescentes amarelas.
A partir dos anos 2000, os estudos sobre os efeitos das luzes artificiais noturnas cresceram largamente. Os astrônomos já alertavam há tempos que não conseguimos mais ver estrelas no céu urbano e os efeitos nocivos já foram estudados em mais de 160 espécies de animais e plantas, com impactos na fisiologia, comportamento, interações entre espécies e reprodução. Porém, a maior parte dos estudos se concentra principalmente no ambiente terrestre, onde os impactos são mais evidentes devido à proximidade com a luz. A mortalidade de insetos polinizadores e de aves migratórias são os mais bem documentados.
Mas o ambiente marinho não está livre da poluição luminosa, que alcança habitats marinhos remotos, devido ao crescimento de litorais urbanizados e ao aumento de infraestruturas nos mares, tais como plataformas offshore de petróleo, píeres, navios de cruzeiro e hotéis construídos diretamente acima de recifes. Assim, existe uma necessidade crítica de se entender a extensão e os impactos ecológicos do uso de LAN nos sistemas marinhos. De qualquer forma, já possuímos alguns estudos contundentes que apontam a necessidade de mudanças na forma que iluminamos nossa costa.
Desde 2007, com a descoberta de que a luz do luar influencia a liberação em massa de óvulos e espermatozoides de corais, em eventos anuais, já se suspeitava de que a poluição luminosa era deletéria à reprodução desses animais. Isso foi comprovado com estudos na Grande Barreira de Corais, no Mar Vermelho e nas Filipinas, em que os corais expostos à luz artificial apresentaram um desencontro na liberação dos gametas masculinos e femininos na água, ou simplesmente pararam de desovar em pouco tempo de exposição ao uso de LAN.
Conclusão semelhante foi encontrada no estudo realizado com o peixe-palhaço laranja – famoso pelo filme Procurando Nemo –, no qual casais da espécie foram divididos em dois grupos. O primeiro grupo foi exposto a 12 horas de luz solar habitual e 12 horas de escuridão. O outro grupo experimentou um baixo nível de luz artificial à noite, imitando a poluição luminosa existente em uma cidade costeira. Mesmo tendo alguns ovos fertilizados, não houve nascimentos no grupo exposto ao uso de LAN. Nesse último caso, os ovos prateados e translúcidos do peixe palhaço simplesmente mudaram de cor, até assumirem um aspecto completamente opaco. Assim, nenhum ovo eclodiu no segundo grupo, com zero sobrevivência da prole. Na conclusão do estudo, os pesquisadores apontaram que esse mesmo resultado pode se repetir com qualquer peixe que deposite seus ovos no substrato ou em estruturas que recebam luz artificial, o que pode impactar de forma significativa a população de peixes em habitats próximos à costa.
Outros estudos avaliaram a interferência da luz artificial na desova e sobrevida dos filhotes de tartarugas marinhas. Em condições naturais, a maioria dos filhotes eclodem à noite. Logo após a ruptura do ovo, eles se desvencilham da cova de areia feita pela mãe e se movem ao longo da praia em direção ao oceano. Através de um campo de visão ainda limitado, eles se orientam para o horizonte mais baixo e seguem o brilho do mar que reflete a lua. Em dias mais nublados, a luz artificial interfere na orientação, causando a morte precoce de muitos espécimes.
Até os invertebrados marinhos menos famosos – como ascídias, esponjas, poríferos e hidrozoários – são influenciados pela luz solar, desde a fase inicial de vida, quando são apenas minúsculas larvas, mas já possuem células sensíveis à luz e manchas oculares ou olhos simples. A luminosidade influencia esses animais no nascimento, no seu deslocamento pela coluna d’água e na escolha do melhor lugar para assentar, buscando ambientes mais abrigados, como fendas e face inferior de rochas, onde também a competição com algas e a predação tendem a ser menores, seja em estruturas naturais ou artificiais como plataformas, marinas e pontes. A vida adulta desses animais também é influenciada pela luminosidade, a exemplo de seus predadores, que escolhem um período específico do dia para se alimentarem. Assim, a fotopoluição noturna pode afetar até esses animais desprovidos de ossos e outros órgãos, mas ainda existem poucos estudos que abordam esses processos negativos.
Gerar informações sobre como a luz artificial afeta a comunidade de invertebrados em estruturas artificiais foi o objetivo da pesquisadora Isadora Rodrigues, na sua Dissertação de Mestrado pela Universidade Federal do ABC, projeto este financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Ela escolheu o Yacht Club de Ilhabela para sua pesquisa, uma marina que possui plataformas com diferentes formas de iluminação artificial e com uma comunidade de espécies sésseis se desenvolvendo em suas laterais, o que atrai e sustenta uma diversa comunidade de peixes e outros vertebrados.
O primeiro desafio da pesquisadora foi instalar uma nova iluminação embaixo da linha d’água, ou pelo menos próximo à superfície, e fazer com que essa fonte luminosa durasse às intempéries por no mínimo três meses. Foram diversas tentativas, com avaliações e manutenções semanais. Além disso, a pandemia do novo coronavírus atrasou toda a programação do estudo. Em Ilhabela, o isolamento social devido à pandemia iniciou-se um dia após a instalação completa do experimento. Foram meses sem informações do equipamento instalado. O objetivo final do estudo era avaliar as comunidades de invertebrados já existentes nas plataformas expostas à luz artificial da própria marina e analisar o surgimento de novas colônias expostas à luz preparada no estudo.
As comunidades já existentes antes da pesquisa e não expostas à fotopoluição possuíam diferenças populacionais entre as profundidades de um e meio metro, principalmente espécies de esponjas, ascídias e poríferas. A luz noturna artificial da marina diminuiu essas diferenças e aumentou a quantidade de comunidades de bactérias em quase doze vezes, a um metro de profundidade. Por um outro lado, ocorreu uma redução expressiva da comunidade de coral sol, uma espécie invasora originária dos oceanos Pacífico e Índico e responsável por grandes impactos à biodiversidade nativa.
Na análise das novas comunidades de invertebrados que surgiram durante o estudo e sob efeito das luzes artificiais instaladas no projeto, houve o aumento de uma espécie de poliqueta, um tipo de verme aquático, bem como a diminuição do número de hidrozoários e ascídias. Quanto à análise dos predadores, o estudo não observou mudanças na identidade desses e na pressão de predação na presença do uso de LAN. Porém, ao final, foi possível registar alterações na abundância dos organismos, o que indicaria um aumento da ação dos predadores, mesmo que de forma indireta.
A pesquisadora também aferiu o grau de luminosidade noturna em cinco cidades do litoral paulista: Ubatuba, Ilhabela, São Sebastião, Guarujá e Santos. Ela descobriu que existem poucos, ou nenhum local que não esteja sujeito a poluição luminosa direta, mesmo quando longe de fontes de LAN. Isso ocorre por conta do longo alcance das luzes, que alteram o brilho do céu noturno, pois a LAN é refletida para cima e espalhada em todas as direções por moléculas de água, poeira e gás na atmosfera. Como resultado, a luminosidade em uma noite nublada na área urbana é igual ou maior do que em noites de lua cheia, o que prejudica todos os fenômenos naturais marinhos que são orientados pelos regimes lunares.
Em resumo, a Dissertação aponta para uma influência da luz artificial noturna na formação das comunidades de invertebrados incrustados, importante elo da teia dos ecossistemas marinhos. Dado que diversos estudos trazem dados alarmantes e considerando que grande parte da população mundial vive no litoral e sob os efeitos do uso de LAN, é fundamental aumentar os esforços para se entender seus efeitos sobre os ecossistemas costeiros e planejar estratégias para minimizar essa fonte de poluição.
PARA SABER MAIS:
1 – Associações sazonais com tendências de poluição luminosa para populações de aves migratórias noturnas – http://dx.doi.org/10.1002/ecs2.3994
2- Luz artificial à noite: estudos até em 2022 – International Dark-Sky Association – https://www.darksky.org/wp-content/uploads/2022/06/IDA-State-of-the-Science-2022-EN.pdf
3- Efeitos da luz artificial na desova dos corais – Signaling cascades and the importance of moonlight in coral broadcast mass spawning – http://dx.doi.org/10.7554/eLife.09991 // Signaling cascades and the importance of moonlight in coral broadcast mass spawning – https://doi.org/10.7554/eLife.09991
Gualter Santana Pedrini é professor universitário, escritor, fotógrafo e mergulhador. Fundador do Projeto Antrópica, que divulga ONGs e pesquisas em prol dos oceanos.
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