
A Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, no Pará, foi a unidade de conservação (UC) federal mais desmatada em março e no primeiro trimestre deste ano, segundo os dados do Deter, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que faz um levantamento rápido com alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia. A UC do Pará também foi a que teve a maior área desmatada de janeiro a dezembro de 2022, com 101 km² sob alerta.
Nos três primeiros meses deste ano, o desmatamento em toda a Amazônia Legal caiu 10%, na comparação com os três primeiros meses do ano passado, de acordo com os dados do Deter. No entanto, o indicador deste primeiro trimestre é o segundo maior da série histórica, com 845 km² em alerta.
A região da APA do Tapajós é, há anos, uma das mais pressionadas pelo desmatamento ilegal na Amazônia: desde 2015, quando começaram os levantamentos do Deter, a unidade de conservação figura entre as duas mais críticas no sistema, ao lado da vizinha Floresta Nacional do Jamanxim.
A maioria dos alertas na unidade não é ligada a nenhuma atividade específica, mas é registrada apenas como “desmatamento com solo exposto
”. Mas, de acordo com os dados do Inpe, 28% do desmatamento registrado desde janeiro de 2022 na APA do Tapajós estão ligados à prática de mineração.
O garimpo não é, necessariamente, proibido em todas as unidades de conservação brasileiras. No caso das APAs, as atividades econômicas podem ocorrer, mas devem seguir regras estabelecidas pelo plano de manejo. No entanto, a APA do Tapajós não tem um plano deste tipo até hoje, apesar de ter sido criada há mais de 17 anos (leia mais detalhes abaixo).
APA nunca saiu do papel
Além de ser líder do desmatamento no primeiro trimestre de 2023, a APA do Tapajós também foi a unidade de conservação federal mais devastada no ano passado. Entre janeiro e dezembro, foram 101,2 km² desmatados em 2022, segundo o Deter.
Apesar de ter sido criada em 2006, até hoje a APA não foi demarcada e não tem um plano de manejo, o que é apontado como um dos principais entraves para o combate ao desmatamento na região.
Desmatamento e mineração
Do início de 2022 até março de 2023, 72% dos alertas de desmatamento na APA do Tapajós não estão ligados a nenhuma atividade específica, são 79,3 km² registrados apenas como desmatamento com solo exposto nos dados do Inpe. Os outros 28% de desmatamento registrados nesse período (31,3 km²) estão ligados à prática de mineração.
“Não são garimpeiros artesanais: eles colocam máquinas grandes, e essas máquinas entram na floresta e destroem tudo que tem no caminho”, explica o líder comunitário Cleudivaldo Karo Munduruku.
Desmatamento na Amazônia Legal
Ao ampliar para toda a Amazônia Legal, os alertas de desmatamento nos três primeiros meses de 2023 (895 km²) na Amazônia Legal caíram 10% na comparação com o primeiro trimestre de 2022 (941 km²). Nesse período, 95% da devastação na região está categorizada como “desmatamento com solo exposto” (809,76 km²).
Campeã na extração de ouro
A pressão da mineração é confirmada por pesquisas científicas: um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), feito em parceria com o Ministério Público Federal, mostrou que a APA do Tapajós teve o maior volume de ouro extraído de forma irregular entre 2019 e 2020 dentre todas as unidades de conservação do país: a área teve uma produção total de 14,9 toneladas de ouro nesses dois anos e, dentro disso, 9 toneladas foram retiradas de maneira ilegal.
Além do desmatamento verificado pelos dados do Inpe, o garimpo ilegal também causa outros dois grandes problemas na região: o assoreamento de cursos d’água e a contaminação por mercúrio de diversos rios. Esses problemas são antigos para os indígenas do povo Munduruku: uma pesquisa da Fiocruz concluída no final de 2020 mostrou que, de cada dez participantes, seis apresentaram níveis de mercúrio acima de limites seguros.
A pesquisa foi feita em parceria com a Associação Indígena Pariri, que representa doze aldeias Munduruku do Médio Tapajós. A associação demonstrou preocupação com os resultados do estudo.
“Com todas essas preocupações, o povo Munduruku vê como única solução fiscalizar o território. O peixe está contaminado com mercúrio, e o nosso corpo também. A fonte da alimentação está doente, [é preciso] responsabilizar o Estado por negligência [porque] não fazem nada para defender os rios e a floresta”, afirma a AI Pariri.
Com todas essas preocupações, o povo Munduruku vê como única solução fiscalizar o território. O peixe está contaminado com mercúrio, e o nosso corpo também.
Associação Indígena Pariri
O líder comunitário Cleudivaldo Karo Munduruku é um dos membros da associação, que também recolhe doações para organizar projetos em apoio às comunidades locais.
“Quando os garimpeiros entram no nosso território, a gente já sabe que eles vão em busca do recurso, da riqueza que a gente tem na nossa terra. Quem sai ganhando são eles, mas nós que estamos aqui, na linha de frente, saímos perdendo”, afirma Cleudivaldo.
Quando os garimpeiros entram no nosso território, a gente já sabe que eles vão em busca do recurso, da riqueza que a gente tem na nossa terra. Quem sai ganhando são eles, mas nós que estamos aqui, na linha de frente, saímos perdendo.
Cleudivaldo Karo Munduruku, líder comunitário
“Não são garimpeiros artesanais: eles colocam máquinas grandes, e essas máquinas entram na floresta e destroem tudo que tem no caminho. Destrói tudo que tá pela frente, e não deixa nada vivo”, completa.
Para resolver pelo menos em parte os problemas do dia a dia, as comunidades optam por soluções junto a organizações não-governamentais, muitas vezes. No Médio Tapajós, que abrange a APA do Tapajós e seu entorno, o Projeto Saúde & Alegria traçou uma estratégia para levar saneamento básico às comunidades ribeirinhas. A ideia é que os moradores não dependam apenas da água dos rios, que é frequentemente contaminada pelo mercúrio usado em atividades de garimpo.
“A gente começou um trabalho nas aldeias do Médio Tapajós em plena pandemia, e já conseguimos viabilizar 100% das famílias das aldeias ribeirinhas, da zona rural, com banheiro e água. O principal objetivo é reduzir a dependência das águas contaminadas do garimpo, porque boa parte das doenças são transmitidas pela água”, explica Caetano Scannavino, empreendedor social e coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria.
O principal objetivo é reduzir a dependência das águas contaminadas do garimpo, porque boa parte das doenças são transmitidas pela água.
Caetano Scannavino, empreendedor social
Além do projeto de saneamento básico, a ONG também tem barcos-hospitais que circulam pelo rio Tapajós e atendem moradores da APA e do seu entorno, especialmente do povo Munduruku. Os principais sintomas do excesso de mercúrio no organismo de jovens e adultos são dor de cabeça, alterações no sono, além de impactos na coordenação motora e até perda de audição.
APA nunca saiu do papel
Até hoje, a APA do Tapajós não tem um plano de manejo. O garimpo de pequena escala precisa ser autorizado pela Agência Nacional de Mineração (ANM) por meio de uma permissão de lavra garimpeira (PLG). Esse documento pode ser solicitado após a apresentação de uma licença de operação (LO), que é emitida pelo estado ou pelo município.
Apesar disso, a prefeitura do município de Itaituba, onde está 85% do território de 2 milhões de hectares da APA do Tapajós, já concedeu centenas de licenças do tipo nos últimos anos. No entanto, como a unidade de conservação é de administração federal, a prefeitura deveria solicitar uma análise do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) antes de aprovar as licenças.
Reportagem da Agência Pública publicada em maio do ano passado mostrou que o ICMBio nunca liberou nenhuma Autorização para o Licenciamento Ambiental (ALA) para atividades de garimpo dentro da APA do Tapajós – ou seja, as licenças emitidas pela prefeitura para terrenos dentro da unidade foram distribuídas sem qualquer avaliação do órgão ambiental, o que é ilegal.
Em julho do ano passado, a Justiça Federal também condenou o ICMBio a elaborar um plano de manejo para a APA do Tapajós, que foi criada em 2006 e nunca saiu do papel. A União, que também é ré no processo, foi condenada a fornecer os recursos necessários para o cumprimento da sentença.
Na decisão, o juiz deu um prazo de 18 meses para que o ICMBio faça “o plano de manejo, o levantamento ocupacional, a demarcação topográfica e a sinalização da APA do Tapajós”.
Além disso, a sentença deu ao ICMBio um prazo de três meses para apresentar à Justiça um cronograma de trabalho completo das tarefas a serem executadas na região, e também determinou que o órgão apresente relatórios trimestrais sobre o andamento dos trabalhos.
A InfoAmazonia solicitou este cronograma e também os relatórios periódicos ao ICMBio. Em nota, a assessoria de imprensa do órgão não apresentou os documentos e informou que “a unidade está implementada, com equipe de servidores em atuação e conselho consultivo em funcionamento” e que o plano de manejo está “em elaboração e processos de licenciamento”. O ICMBio disse, ainda, que está cumprindo a decisão judicial, e que mantém diálogo com as comunidades locais.
“O ICMBio jamais deixou de fiscalizar a região, e intensificou ainda mais nos últimos meses, visando combater garimpos e desmatamento ilegais. Logo, o ICMBio informa que está cumprindo as ações impostas judicialmente”, afirma, em nota à InfoAmazonia.
Segundo a pesquisadora Ane Alencar, diretora científica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o desenvolvimento de um plano de manejo é fundamental para aliviar os conflitos na região.
“A APA é uma categoria de reserva que é pouco restritiva, justamente porque ela permite alguns usos da terra, mas é importante ter esse plano de manejo para entender quais áreas serão conservadas e quais serão liberadas para uso garimpeiro. É essencial ter esses limites, e quanto mais cedo isso for feito, melhor, porque acaba impedindo que a degradação avance”, explica Alencar.
A APA é uma categoria de reserva que é pouco restritiva, justamente porque ela permite alguns usos da terra, mas é importante ter esse plano de manejo para entender quais áreas serão conservadas e quais serão liberadas para uso garimpeiro. É essencial ter esses limites, e quanto mais cedo isso for feito, melhor, porque acaba impedindo que a degradação avance.
Ane Alencar, diretora científica do Ipam
Pressão do garimpo
A pressão do desmatamento motivado pelo garimpo não está restrita à área da APA do Tapajós, mas se estende por todo seu entorno: uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2022 mostrou que houve um aumento de mais de 200% nas atividades de mineração da Bacia do Tapajós em apenas 10 anos. Os garimpos ocupavam, em 2010, uma área de pouco mais de 21 mil hectares na região. Em 2020, esse número saltou para mais de 68 mil hectares, segundo a pesquisa da UFPA .

A cidade de Itaituba, que concentra mais de 85% da área da APA e que ficou conhecida na região como “Cidade Pepita”, é o epicentro deste avanço: quase metade do território ocupado pela atividade de garimpo no país está no município, segundo dados das permissões de exploração da Agência Nacional de Mineração (ANM).
Para além do ouro extraído dentro dos limites de Itaituba, a cidade é usada ainda para “lavar” o minério garimpado, de forma ilegal, em outros locais. Garimpeiros se aproveitam das licenças concedidas no município e alegam que a extração feita em outros locais, inclusive em terras indígenas, ocorreu dentro das áreas licenciadas em Itaituba.
“O esquema funciona de uma maneira parecida com a ‘lavagem’ de madeira extraída ilegalmente, e registrada como sendo de uma área licenciada. Mas, no caso do ouro, é um pouco pior porque ninguém sabe a quantidade de ouro que existe em uma área licenciada”, explica Ane Alencar, do IPAM.
“Não tem um inventário preciso, então as pessoas que têm a licença para garimpar podem dizer que tudo está saindo da área delas, mesmo que não esteja”, completa.