Por Lizely Borges.
Na tarde de quarta-feira (31), após o encerramento da votação de julgamento do processo de impeachment de Dilma Rousseff, com resultado de afastamento definitivo da presidenta do cargo, movimentos populares, centrais sindicais e organizações de defesa dos direitos humanos manifestaram pesar com a decisão final. Às 13h35, o plenário do Senado aprovou, por 61 votos favoráveis a 20 contrários, após seis dias de julgamento, a destituição da presidenta eleita por 54,5 milhões de votos nas eleições de 2014.
Dilma foi acusada de ter cometido crime de responsabilidade fiscal ao ter assinado, em 2015, três decretos de abertura de créditos suplementares e atraso de pagamento de parcelas ao Banco do Brasil referente à subsídios do Plano Safra, as mencionadas pedaladas. Segundo argumentos da acusação, a presidenta feriu a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei Orçamentária Anual (LOA). A defesa da presidenta sustentou-se no argumento de que ela não aprovou uso de recursos públicos sem a devida aprovação pelo Congresso Nacional e agiu em conformidade com a lei e procedimentos já estabelecidos.
Julgamento político
Em julho de 2016, o Ministério Público Federal (MPF) concluiu que o não pagamento das parcelas não se configuram como operação de crédito, ou seja, não significa um empréstimo não pago e pediu o arquivamento deste processo. Sobre a assinatura dos decretos a defesa da presidenta argumenta que revisão em outubro da prática pelo Tribunal de Contas (TCU) foi realizada posteriormente à data de assinatura dos decretos, nos meses de julho e agosto. Com a manifestação pelo Tribunal o governo passou a adotar outra postura e não emitir mais decretos. A regra do TCU não pode, então, ser aplicada de forma retroativa. A defesa também argumenta que a ação não impactou na meta fiscal porque houve remanejamento de despesas para orçamento já aprovado pelo Congresso. Mesmo com manifestação pelo MPF, por organizamos internacionais, chefes de nação, o processo de impedimento seguiu adiante no Congresso.
Ainda que os movimentos populares reconheçam a arquitetura engendrada para a destituição da presidenta, com a condenação antecipada pelo Congresso Nacional, independentemente da inexistência de fundamentos jurídicos e administrativos, a resultado final do julgamento provocou tristeza e preocupação com a degradação institucional da política brasileira. “Hoje lamentamos porque Dilma foi eleita pela maioria da população e está sendo afastada por uma pequena força de poder que toma a posição, faz o julgamento em nome dos seus representados”, pontua Rafaela Alvez, da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
Para o dirigente do Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM), Tadzio Coelho, a destituição de Dilma visa inaugurar um contexto de superexploração da e do trabalhador, sob argumento de assumir uma perspectiva de desenvolvimento econômico. “A gente lamenta porque percebe a formação de um novo pacto político que consiste em tirar o PT (Partido dos Trabalhadores) do centro do bloco anterior e fragilizar a ideia de esquerda no poder e, ao assumir um governo sem nenhuma identificação com povo, busca tomar conta do poder executivo e inaugurar um novo ciclo de superexploração da força de trabalho”, comenta.
Defesa posicionada
Desde o aceite, em 2/12, pelo então presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha (PMDB) ao pedido de impeachment elaborado pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, os movimentos populares do campo e da cidade construíram espaços unificados de articulação, como as Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, e realizaram ações por todo o país para ampliação do debate sobre o que estava em curso na política brasileira.
Diferente dos argumentos assumidos pela mídia privada e partidos de direita que acusam passividade dos movimentos populares à gestões petistas, os movimentos construíram ações pautados na defesa da democracia e na necessidade de avanço na efetivação da pauta de direitos humanos pelo Executivo federal. Pelos movimentos e organizações há o reconhecimento da não priorização de determinadas pautas pela gestão de Dilma.
A lentidão nos processos de demarcação de terras para povos indígenas, a não realização da Reforma Agrária popular, com ampla destinação de terras para o agricultor campesino e familiar, a frágil proteção dos territórios pelo Estado brasileiro, vulnerabilizando comunidades tradicionais à interesses de latifundiários são algumas das pautas que movimentos e organizações apontam que não obtiveram a devida atenção pelo Estado. Nas atividades realizadas pelas Frentes os movimentos defendiam a permanência de Dilma na presidência orientada pela pauta apresentada e vencedora das eleições de 2014.
Em paralelo à crítica, os movimentos populares também apontam conquistas que, por tensionamento popular da gestão pública, foram efetivadas nos treze anos de governo do PT e mais recentemente na gestão de Rousseff. “Embora com lacunas [no atendimento à demandas dos povos indígenas] tivemos como conquistas recentes a instituição de espaços de representação dos povos indígenas, o Conselho Nacional da Política Indigenista e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). São demandas dos povos indígenas”, aponta o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Cléber Buzzato.
O Conselho Nacional referido por Cléber foi instalado em abril deste ano, anterior ao afastamento de Dilma (11/05) pelo Senado e o PNGATI foi instituído em 2012, com o objetivo de garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígena.
Na pauta agrária os movimentos campesinos destacam como avanços na gestão de Dilma os Programas de Aquisição de Alimentos (PAA), a destinação de recursos para pequenos agricultores pelo Plano Safra, a reserva de moradias para agricultores pelo Programa Minha Casa, Minha Vida e programas de assistência técnica: “Imagine o que é uma família camponesa que não tinha casa e passa a ter, mudou a cara no campo. O PAA também garantiu que famílias possam produzir e comercializar alimentos. O Safra garantiu a projeção de recursos para a agricultura familiar, com a estruturação da cadeia produtiva. Com o golpe, o que está em jogo são as conquistas que para nós é insuficiente mas para as elites são demais”, destaca Rafaela.
O coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), Alexandre Conceição, destaca que a posse de Michel Temer (PMDB) cria obstáculos ao avanço da pauta agrária. “Mesmo com críticas ao governo de Dilma na questão agrária, com a votação de hoje nós tivemos a construção de um projeto de governo que interrompe qualquer distribuição de renda e riqueza no campo”, diz.
Retrocessos sociais e resistência a ilegitimidade do governo
As medidas adotadas por Temer durante os mais de 100 dias à frente do governo interino são sinalizadoras aos movimentos e organizações sobre qual é o lugar que o Estado deve assumir na efetivação de direitos. Sob argumento de enfrentamento do déficit econômico, o governo extingiu ministérios, como do Desenvolvimento Agrário e das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, e aglutinou outros como o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, que abarca parte das competências da Controladoria-Geral da União (CGU), também extinta. Na contramão aprovou reajuste de servidores públicos, ação que custará ao governo R$ 68 bilhões até 2019.
Nos programas sociais voltados para o campo extinguiu a faixa 1 do Programa Minha Casa, Minha Vida, desfazendo o planejamento de 40 mil moradias para o agricultor previstas para este ano. O orçamento de R$540 milhões para o PAA foi bloqueado após decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) e a política de assistência técnica foi fragilizada com a paralização do Plano Safra e desmonte da Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). Veja aqui. Assim, a produção de alimentos consumidos pela população brasileira, vindo da agricultura familiar, é duramente afetado. Segundo dados do extinto Ministério do Desenvolvimento Social, é esta agricultura que produz 70% do que o brasileiro consume.
Alexandre cita como medidas que fragilizam os direitos da classe trabalhadora as anunciadas reformas da previdência social e trabalhista, uma das prioridades de Temer e fim das políticas de educação, como FIES, Pronera e Ciência sem Fronteiras. “Além da Constituição Federal ser rasgada estão em curso uma pauta que foi rejeitada nas urnas desde 2002. Neoliberal e de retirada de direitos da classe trabalhadora”, diz. Temer também anunciou a intenção de privatização das universidades, presídios e hospitais.
Cléber também destaca a intensificação de processos de criminalização de movimentos e lideranças com o ascendo ao poder por Temer. “A perspectiva de confirmação do golpe é o agravamento da criminalização de povos, lideranças e organizações aliadas aos direitos. Há também a perspectiva de aumento da violência no campo e na floresta e a negação do direito dos povos à demarcação de terras”, enfatiza.
A composição do Congresso, Câmara e Senado, julgadores do processo de impeachment de Dilma, é sinalizadora do cenário de recrudescimento na disputa de forças e de retrocessos sociais. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) possui forte incidência nas decisões tomadas pelo Executivo. Como aponta a Agência A Pública, do total de 513 deputados federais, 207 são da bancada ruralista. No Senado o contexto é semelhante, dos 81 senadores cerca de 32 possuem estreitos vínculos com interesses do agronegócio.
Diante deste contexto os movimentos populares reafirmam o enfrentamento ao governo não legitimado pelas urnas e a defesa permanente de direitos e da democracia. Rafaela aponta que cabe aos movimentos reconhecer a luta histórica da classe trabalhadora, construir unidade entre os diversos setores da esquerda, insistir na pauta da reforma política, definir uma pauta nacional de mobilização e compreender as mulheres e jovens como centrais na luta. “Precisamos olhá-los como sujeitos estratégicos que são e foram para a história, para as mudanças que a gente quer”, diz.
A militante do Levante Popular da Juventude, Laura Lyrio Juanita, destaca a contribuição da juventude na organização da luta e na provocação da sociedade para a pauta dos direitos. “Os jovens cumprem o papel de rejunte da sociedade, de diálogo entre campo e cidade. Vamos para as ruas com faixas, com teatro, com estratégias criativas de visibilidade da luta”. Ela destaca que é importante, ainda mais neste período, combater as forças que afastam a juventude do debate e exercício da política “Não podemos deixar que um golpe, como foi em 1964, mais uma vez desestimule a juventude a participar da política. Por isso temos como nosso lema do encontro nacional Nossa rebeldia é a juventude no poder”. O Levante Nacional realiza, em Belo Horizonte-MG, em setembro, seu encontro nacional com participação de jovens de todo pais.
“Aos movimentos populares sempre coube a luta por direitos. Para os movimentos do campo inicia nos próximos dia, de forma unitária, grandes ocupações de latifúndios e atos políticos nas cidades reivindicando a pauta da classe trabalhadora”, finaliza Alexandre.
Fonte: MST..