Por Raquel Moysés.
O gurizinho avança o sinal. Está verde para os carros, mas ele segue, sem vacilar, pela faixa de pedestres, enquanto me lança um olhar de quem confia. Parece saber que pode contar com o meu cuidado. Apreensiva, fico vigiando, com medo de que o motorista que vem pelo outro lado da faixa não pare. Isso acontece com frequência, sendo um dos motivos de atropelamento nas ruas povoadas de gente e atoladas de carros.
Assim que o menino passa, sigo adiante, mas algo me mantém ligada à figurinha que segue, com passos firmes, em meio às estranhas colunas erguidas no centro da cidade para homenagear o extinto Miramar, inaugurado em 1928 e demolido em 1974, quando estavam em andamento as obras de aterro da Baía Sul. Sempre me intrigam aqueles pilares, fincados na Praça Fernando Machado para lembrar o trapiche municipal e o pavilhão anexo, onde existia o pitoresco café Miramar, ponto de encontro da elite intelectual de Desterro. O que dizem agora para a população de Florianópolis essas pilastras escurecidas de fuligem e mofo?
Pensamento imerso na vida da cidade desaparecida, minha vista ainda enquadra a imagem do gurizinho que caminha, a passo de moleque, pleno da força dos seus verdes anos, que parecem somar, no máximo, uns oito. Mochila pesada às costas, bonezinho na cabeça, vestido com agasalho escolar, ele percebe minha insistência em segui-lo e me devolve um último olhar, esperto, vivaz.
Ao dobrar a esquina, já sem conseguir focar sua imagem, sigo em frente, ainda tomada pela presença daquele ser que me despertou poderoso sentido de cuidado. Atenta, pelas ruas trafegadas e encharcadas, rumo ao campus da UFSC, sinto-me vigiada por seu olhar de infância, curioso, irrequieto, sobretudo confiante. Reflito sobre o diálogo silencioso que travamos na geografia das ruas do centro, já superando, a essa altura, o túnel da Via Expressa Sul. A galeria, que corta o bairro Saco dos Limões, leva o nome de Antonieta de Barros, jornalista e política brasileira, primeira mulher eleita deputada estadual em Santa Catarina. Quem se lembra?
Ao descer, no campus da Trindade, a manhã gelada e úmida parece penetrar nos ossos, mas me aquece a lembrança do gurizinho. E logo sua imagem se entrelaça com a recordação de outra que, dias atrás, dominava o cenário da Praça da Cidadania, na UFSC. Pneus empilhados à entrada do prédio da reitoria assinalavam a ocupação levada a cabo por estudantes que também avançaram o sinal, em luta por condições dignas de estudo e permanência na universidade pública.
Transformado em trincheira de luta, o saguão do prédio reitoral vestiu-se da ousadia juvenil: barracas, cobertas, toalhas estendidas, faixas, cartazes, cronogramas da agenda de organização dos insurgentes, que exigiam reajuste das bolsas de estudo, moradia estudantil, restaurante universitário, bibliotecas atualizadas, condições de ensino, concursos públicos e salários dignos para os trabalhadores em educação.
Então, as imagens mescladas que dominam minhas emoções nesta manhã, me fazem lembrar a epígrafe que abre o belo “O livro dos abraços”, do escritor uruguaio Eduardo Galeano: “Recordar, do latim re-cordis), tornar a passar pelo coração.”
Recordando as duas cenas, que voltam a passar pelo meu coração, ponho-me a refletir sobre lutas que moveram estudantes e trabalhadores na universidade. Será que os meninos e meninas que avançaram o sinal e ocuparam a reitoria da UFSC também tomaram a decisão com a segurança de quem confia? Afinal, sabiam que poderiam ficar sozinhos, como aconteceu com estudantes que, em 2005, também batalharam pela mudança nas regras e pelo reajuste das bolsas de estudo? Vários deles (assim como alguns trabalhadores) sofreram processos administrativos na UFSC, e ainda enfrentam processos criminais na justiça federal.
Como aquele gurizinho, que atravessou a rua com o sinal aberto para os carros, os estudantes de ontem e os de hoje seguiram adiante. Contando apenas em eles mesmos, fazendo caminho ao andar.
A eles, e a todos os caminhantes que sopram brisa fresca e banham de orvalho o chão duro da vida, ofereço o canto do poeta sevilhano Antonio Machado:
Caminante, son tus huellas el camino, y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante, no hay camino, sino estelas en la mar. |
Caminhante, são teus rastos o caminho, e nada mais; caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. Ao andar faz-se o caminho, e ao olhar-se para trás vê-se a senda que jamais se há de voltar a pisar. Caminhante, não há caminho, somente sulcos no mar. |
Crédito da foto da capa: Débora Klempous/ND