Os versos irônicos de “Deus lhe pague” abrem o disco Construção, lançado por Chico Buarque em 1971 e considerado uma obra-prima da música brasileira. É um disco curto, com pouco mais de trinta minutos de duração. Mas cinquenta anos depois, ele continua sendo estudado, debatido e admirado.
A jornalista Miriam Bevilacqua fez sua tese de doutorado sobre Chico Buarque. Ela aponta que mais da metade das composições do artista tem como tema o dia a dia. São como crônicas em forma de música. É o caso da faixa-título do disco, que narra o que seria um dia comum na vida de um operário da construção civil, mas que acaba de modo trágico.
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
“O Brasil vivia um contexto de construção civil aquecido. Esses migrantes vinham para o Sudeste, para os grandes centros, São Paulo e Rio de Janeiro, trabalhar nessa construção civil. Então se você pegar a galeria buarqueana de personagens, o pedreiro é justamente o primeiro personagem buarqueano, que apareceu lá em 1965, em ‘Pedro Pedreiro’, e que volta a aparecer em ‘Construção’”, destaca.
Miriam defende que o disco Construção não representa uma quebra em relação à temática, já que desde a adolescência Chico escrevia crônicas e tinha um olhar para as questões sociais. O que faz o disco ser um marco na carreira do artista é a complexidade. Isso aparece principalmente na faixa-título, que é, ela própria, uma construção.
“Ele vai jogando os adjetivos, então às vezes a parede é sólida, às vezes a parede é flácida. Tudo ali tem a ideia… e o ritmo, que é um ritmo arrastado… Ele vai fazendo como se fosse colocando tijolos”, analisa.
Subiu a construção como se fosse sólido,
ergueu no patamar quatro paredes mágicas
O professor Pasquale Cipro Neto enxerga uma influência de Vinícius de Moraes nessa música.
“O Vinícius escreveu um texto antológico chamado ‘O operário em construção’, que é um texto absurdo, um poema lindíssimo: ‘E o operário disse: Não!’. É um texto absolutamente comunista, maravilhosamente comunista. E isso deve ter dormido na cabeça do Chico, a temática. E o Chico faz aquela maravilha”, analisa.
Para a cantora e pesquisadora musical Naira Marcatto, a canção “Construção” está ligada a uma memória de infância. Ela tinha 10, 11 anos e usou a música em um trabalho em grupo da escola.
“Eu fiquei emocionada com a história daquele homem, que trabalhava, trabalhava, trabalhava, e morreu na contramão atrapalhando o sábado. E eu fui contar essa história. Na hora de apresentar o trabalho, quando eu terminei de contar a história, eu caí no choro”, lembra.
Ela destaca os arranjos feitos por Rogério Duprat, o maestro da Tropicália.
“O Duprat faz picaretas batendo, aquela metaleira toda é o trânsito, a gente consegue visualizar esse ambiente. Ele constrói essa ambientação, e não com ruído, com sonoplastia. É com música. Tem um elemento narrativo que faz parte de ‘Construção’ e que passa a existir dessa forma no tropicalismo”, afirma.
Outras faixas
Mas não é só na faixa-título que aparece essa união entre forma e conteúdo. “Cotidiano”, por exemplo, narra o dia a dia repetitivo de um casal, e a própria música tem uma estrutura circular, repetitiva, arrastada.
Todo dia ela faz tudo sempre igual
me sacode às seis horas da manhã
me sorri um sorriso pontual
e me beija com a boca de hortelã
O disco também traz faixas que tratam da questão da ditadura. É importante lembrar que no começo de 1969, pouco tempo depois da promulgação do AI-5, Chico se autoexila na Itália, onde fica catorze meses. De volta ao Brasil, teve problemas com a censura por causa da música “Apesar de Você”. É nesse contexto que nascem canções como “Cordão”, “Deus lhe pague” e “Samba de Orly”, uma música sobre exílio feita em parceria com Toquinho e Vinícius de Moraes.
Vai, meu irmão
pegue esse avião
você tem razão
de correr assim desse frio
mas beije o meu Rio de Janeiro
antes que um aventureiro lance mão
Uma curiosidade: “Samba de Orly” foi a única faixa do disco que sofreu censura, e justamente no trechinho da letra que foi ideia do Vinícius de Moraes. O verso original era “Pede perdão pela omissão um tanto forçada”, mas acabou trocado por “Pede perdão pela duração dessa temporada”.
Mas a parceria entre Chico e Vinícius rendeu outros frutos, como “Valsinha”, que também integra Construção.
Um dia ele chegou tão diferente
do seu jeito de sempre chegar
olhou-a de um jeito muito mais quente
do que sempre costumava olhar
Estudos
Misturando lirismo, crítica social, cenas do dia a dia e rigor formal, Construção é um marco da nossa música. Para Pasquale, o disco deveria ser estudado nas escolas.
“Seria objeto de estudo interdisciplinar, porque é um disco que vale como história, vale como língua, vale como literatura”.
Enquanto eu puder cantar
enquanto eu puder seguir
enquanto eu puder cantar
enquanto eu puder sorrir
enquanto eu puder…
Edição: Daniel Lamir e Douglas Matos.
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