O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo… Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa.
(João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)
Por Samuel Pantoja Lima.
Em setembro de 2018, a jornalista Lara Lima e eu o acompanhamos para que ele pudesse receber o “Prêmio José Marques de Melo”, em Joinville (SC), onde acontecia o Congresso Nacional da INTERCOM (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação). Nilson Lemos Lage, seguramente o mais notável pesquisador em jornalismo do país, recebia mais um reconhecimento de seus pares, que ele generosamente dedicou ao seu contemporâneo Marques de Melo – de quem estivera distante nos últimos anos da vida.
Dois anos antes, em dezembro de 2016, a gente mobilizou o Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e o Departamento para fazer uma homenagem ao professor Nilson Lage, pela passagem dos seus 80 anos. Como integrante daquela mesa, coube-me fazer uma breve referência de duas obras seminais suas: “Ideologia e técnica da notícia” (lançado originalmente em 1979 e relançado em 2012, pela Editora Insular) e “O controle da opinião pública: um ensaio sobre a verdade conveniente” (1998).
Eu abri minha fala, naquela homenagem, citando trechos de um Prefácio escrito por ele, em outubro de 1992. O livro em questão era “O conhecimento do Jornalismo” e seu autor, Eduardo Meditsch. Cito apenas a parte final desse abre, no qual Nilson dialoga com Adelmo: “Sem dúvida, como diz Adelmo Genro Filho, o jornalismo é uma forma de conhecimento; descende da mais antiga e singela forma de conhecimento – só que, agora, projetada em escala industrial, organizada em sistema, utilizando fantástico aparato tecnológico. Sua tensão permanente com o poder é estrutural, inevitável, por mais submetidos que os jornalistas estejam”.
Uma de suas reflexões teóricas mais fundamentais, a meu juízo, tem a ver com o conceito de notícia. O professor Nilson desenvolve essa categoria em sua primeira grande obra (“Ideologia e Técnica da Notícia), que iria influenciar, decisivamente, o entendimento de outro grande nome da teoria do jornalismo. Falo de Adelmo Genro Filho, que toma para si o conceito de notícia elaborado pelo professor Nilson. Em “O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo”, Adelmo escreve: “Para uma abordagem teórica do jornalismo, é imprescindível delimitar com precisão o conceito de notícia, ao invés de generalizá-lo como fazem a maioria dos autores. Nilson Lage afirma que se considerarmos a “notícia, no sentido mais amplo e desde o tempo mais antigo, tem sido o modo corrente de transmissão da experiência – isto é, a articulação simbólica que transporta a consciência do fato a quem não o presenciou – parecerá estranho que dela não se tenha construído uma teoria” (LAGE, 1979, p. 33).
Outra obra de suma importância, que também citei naquela ocasião, foi “Controle da opinião pública: um ensaio sobre a verdade conveniente”, de 1998. É importante registrar nosso entendimento sobre o “papel cada vez mais sofisticado e potente que os meios de comunicação adquiriram nas sociedades democráticas, onde a formação da opinião pública é um elemento essencial para o exercício do poder”, citando o jornalista e pesquisador espanhol Pascual Serrano. Nesse sentido, se a opinião pública é um insumo estratégico às relações de poder na sociedade contemporânea, os meios de comunicação de massa – e de forma destacada a indústria da informação jornalística – ocupam posição altamente destacada na formação da hegemonia das ideias na complexa sociedade de consumo de massa, em escala global, hoje conectada 24 horas por dia, pelo menos para 40% dos habitantes do planeta.
Nesta direção, escreveu Nilson Lage, discutindo a condução ou formação da opinião pública via sistemas de comunicação: “As estratégias partem da situação vivida pelo público, de suas aspirações difusas (desejos de ascensão social, sentimentos de revolta, estados de solidão, depressão ou entusiasmo) e das representações socialmente existentes. Manobras grosseiras (distorções comprováveis, mentiras e insultos) podem funcionar a curto prazo, em situações peculiares (domínio estatístico de audiência, fontes oficiais, clima de tensão). Mas o que é eficiente em condições normais e períodos mais longos é um conjunto de estratégias sutis que envolve formas de coerção – como políticas salariais e de mercado – além do alcance da mídia e de seus funcionários; alinhamentos traçados por especialistas em marketing, economistas, cientistas sociais e psicólogos situados nos centros de poder”. Nada mais atual e profético, ainda que escrito há mais de duas décadas…
Foi a meu convite que ele escreveu, no começo de julho de 2020, o Posfácio intitulado “No grau zero de um mundo futurista ou de um passado tenebroso”, no livro que organizamos com artigos de pesquisadoras/es da Rede de Estudos sobre Trabalho e Identidade dos Jornalistas (RETIJ), ligada à Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJOR). Em oito páginas, o mestre examina o conjunto dos textos que compõe os “Novos olhares sobre o trabalho no jornalismo brasileiro”, publicado no 2º semestre de 2020, em plena pandemia, mas centra seu foco – no longo ciclo histórico, “do bardo ao blog”, desde o final do século XV às primeiras décadas do século XXI –, na “ascensão e declínio da verdade”. Olhando o cenário brasileiro (e internacional, certamente), Nilson argumenta: “Sem o paradigma da verdade ancorada em evidências, qualquer afirmação vale tanto quanto outra; dispensa e rejeita argumentação em contrário. A Terra é plana, Gaia vinga-se do desprezo dos homens pela natureza, a Estação Espacial Internacional fica em um estúdio da Nasa, políticos receitam medicamentos eficazes etc. Trata-se de uma nova mística, fundada no poder que alguns homens têm de impor aos outros verdades de sua eleição, como escreveu Martin Heidegger em “Sobre o conceito de verdade” (1932-1941)”. Ele finaliza discutindo a “putrefação da democracia”, abatida pelo delírio neoliberal planetário, e propõe uma saída para nós, a tribo dos/das jornalistas: “[Nós, jornalistas] armados de ceticismo, teremos que reconhecer os limites de nosso poder como fiscais ou ditadores da verdade; será melhor nos reservar a condição de intérpretes, observadores e críticos vulneráveis, com poucas certezas; e, como os malabaristas, artistas de teatro e professores primários, assumir a condição de servidores públicos, entre os estafetas e os faxineiros de ideias”.
Às margens da BR-101, sentido Sul, num crematório localizado na Palhoça/SC, nos despedimos desse ser de alma leve, complexo em suas digressões, firme e contundente em suas intervenções nos espaços da pesquisa em jornalismo, nas salas de aulas, congressos científicos, rodas de conversa, redações e espaços no mercado de trabalho, e nas confrarias dos cafés e botecos da vida. O professor Nilson Lage formou algumas dezenas de diferentes gerações de jornalistas, em sua longeva carreira de mais de 50 anos em três universidades públicas de ponta: a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Federal Fluminense (UFF) e, por último, na Federal de Santa Catarina, na qual se aposentou compulsoriamente em 2006, quando completou 70 anos.
Convivi com ele nos últimos 21 anos, desde o começo do doutorado, sob sua orientação, no Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção (Mídia e Teoria do Conhecimento), em setembro de 2000. Mentor, amigo, companheiro, professor, mestre e eterno orientador: minha carreira docente não teria existido sem a presença inspiradora de Nilson Lage. Não existe nenhuma palavra que possa expressar toda minha gratidão a ele; restam minhas lágrimas, afeto e reverência. A jornalista Lara Lima, o professor Eduardo Meditsch, o jornalista Carlos Henrique Guião e eu começamos, em 2017, a gravar um material em vídeo (cobrindo algumas palestras com o mesmo fim) para um documentário sobre sua vida e obra; vamos concluir em breve, como tributo afetuoso ao mestre Nilson.
Resgato, para fechar essa singela homenagem, alguns trechos de um post que o professor Nilson Lage publicou, em sua página no Facebook, em 21 de novembro de 2016, ao completar 80 anos. O texto é uma perfeita tradução de sua fina ironia, sensibilidade e capacidade de provocar risos no leitor e, ato contínuo, a mais vertical reflexão. Vejamos o começo: “Completo hoje, segunda-feira, 80 anos. Não imaginava durar tanto. Tirando o que o tempo estragou – dois terços das funções pulmonares, um olho, a cabeleira, os dentes – a saúde é ótima, diz-me a jovem médica, mentindo como de praxe. Mas a pressão arterial é 8×12 e o colesterol HDL, alto como raramente se vê. Minha vida se passou entre mulheres: mãe, esposas, quatro filhas, netas (depois de meu pai, nenhum homem nesse círculo íntimo). As que sobrevivem estão bem: ninguém depende de mim – meta alcançada. Amigos, tive raros, mas queridos; morri um tanto com cada um dos que morreram. Alunos, muitos, depois colegas. Quanto à carreira, nada foi planejado”.
Sobre a vida, ele compartilhou, generoso: “Viver tem sido experiência fascinante. Vivendo, aprendi que o que merece ser dito não pode ser dito, frase que copio de Wittgenstein: experiências têm um aqui-e-agora que não se transmite. Descobri que a memória é como um dicionário de conceitos acoplado a cenas marcantes em que alguns detalhes são preservados e outros se perdem: assim o passado repassa-me em fragmentos de ação e emoção. Revendo os personagens, concluo que tanto os justos quanto os canalhas me foram úteis; fico devendo, a uns pelo que me iluminaram e a outros pelo que me tornaram mais forte. Aí entra o que mais me orgulha: nunca fiz mal a ninguém, nunca explorei ninguém, nunca cedi além do que devia. Paguei caro por isso, mas valeu a pena”.
E fechava aquele post inesquecível, reafirmando a defesa da educação pública, em tom quase profético: “Devo muito ao excelente colégio público em que estudei, às universidades públicas que cursei sem pagar um centavo por isso – coisa linda do Brasil. Ficaram-me dois compromissos que procuro honrar: com minha classe de origem e com o país que me deu tudo isso. O último capítulo de minha história começa agora”. Nilson Lemos Lage se encantou, na noite veloz de 23 de agosto de 2021, em Florianópolis, outrora chamada Nossa Senhora do Desterro…