O CONTEXTO DA PARALISAÇÃO
A Anvisa determinou a interrupção do estudo clínico da vacina CoronaVac. Publicado ontem à noite, o comunicado fala que a decisão foi tomada depois que a agência foi informada sobre a ocorrência de um evento adverso grave. E, sem dar detalhes, lista alguns desses efeitos: mortes, invalidez, etc.
A notícia já chamava atenção por ser a agência reguladora e não a empresa patrocinadora dos testes da vacina a anunciar a interrupção, diferentemente do que aconteceu quando as candidatas da Johnson & Johnson e da AstraZeneca tiveram seus ensaios paralisados. Mas ficou ainda mais estranha quando se soube que o Instituto Butantan, responsável pela CoronaVac no Brasil, sequer foi avisado pela Anvisa.
Em nota, o órgão paulista disse “que foi surpreendido na noite de segunda-feira” pela decisão da agência. Em entrevista à TV Cultura, o diretor do Butantan foi além. Segundo Dimas Covas, “a Anvisa foi notificada de um óbito, não de um efeito adverso”. Ele sustenta que a morte não tem relação com a vacina. “Ou seja, como são mais de dez mil voluntários nesse momento, pode acontecer óbitos. Nesse momento, [o voluntário] pode ter um acidente de trânsito e morrer. Ou seja, é um óbito não relacionado à vacina. É o caso aqui“, disse, defendendo que não há motivo para a interrupção do estudo clínico.
A imprensa apurou que o voluntário morreu no dia 29 de outubro, tinha 33 anos e era morador de São Paulo. Não se sabe ainda se recebeu placebo ou vacina. Ele era monitorado pelo Hospital das Clínicas, um dos 16 centros de pesquisa parceiros do Butantan na realização do ensaio clínico.
A notificação desse óbito teria seguido o trâmite normal. O HC comunicou a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, por meio de um sistema de informação que é alimentado com dados sobre a evolução clínica dos pacientes. E, de acordo com o coordenador da Conep, Jorge Venâncio, coube ao Butantan a tarefa de comunicar a Anvisa.
Ao Estadão, Venâncio reforçou a hipótese de que a morte não está ligada à CoronaVac: “É bastante improvável que o evento que ocorreu tenha qualquer relação com a vacina, mas está sendo investigado. Acredito que rapidamente vai ser esclarecido”. A reportagem explica que mesmo casos como acidentes de trânsito devem ser investigados para apurar se o imunizante causou ou agravou o episódio – uma tontura ao volante, por exemplo.
A investigação, porém, poderia acontecer sem a interrupção dos testes. O UOL lembra que, em 19 de outubro, morreu um voluntário brasileiro que participava dos testes da vacina de Oxford/AstraZeneca, que é a principal aposta do governo federal. Na ocasião, a Anvisa decidiu pelo prosseguimento do estudo, seguindo a sugestão do Comitê Internacional de Avaliação de Segurança.
O estudo patrocinado pela AstraZeneca já foi paralisado sim, mas por conta de outro caso. Aconteceu por decisão da própria farmacêutica em 6 de setembro, depois que uma voluntária do Reino Unido foi diagnosticada com mielite. A investigação feita pelo comitê independente do estudo concluiu que a síndrome inflamatória não tinha a ver com a vacina. No dia 12 daquele mês, a Anvisa deu autorização para que o ensaio prosseguisse por aqui.
A comparação dos casos alimenta o medo de que a Anvisa possa estar usando pesos e medidas diferentes para as duas vacinas que podem estar disponíveis mais rapidamente para a população brasileira – e, não por acaso, foram envolvidas na disputa política entre Jair Bolsonaro e João Doria.
Para integrantes do governo paulista ouvidos pela Folha, houve “boicote” da Anvisa ao fazer a suspensão sem informar o Butantan antes. Isso porque, embora esse aviso não seja uma obrigação, é inédito que a agência tome uma decisão dessa natureza sem consultar o patrocinador de uma vacina, no caso, o centenário instituto de pesquisa.
Como era de se esperar, o caso chama atenção internacional e coloca o Brasil nos holofotes, não só pela expectativa em torno da imunização mas também por se tratar da primeira paralisação nos testes clínicos de uma candidata à vacina chinesa, como destaca a Bloomberg. A Indonésia, um dos países em que a fase 3 da CoronaVac está acontecendo, já se pronunciou sobre o assunto: resolveu não seguir a decisão da Anvisa. Por lá, há 1,6 mil voluntários. Por aqui, são 13.060.
A suspensão será tratada hoje às 11h pelo governo de SP, em uma entrevista coletiva à imprensa que acontece na sede do Butantan.
TIMING
A decisão da Anvisa aconteceu horas depois que o governo de São Paulo chamou toda a imprensa para anunciar o início das obras de ampliação da fábrica do Instituto Butantan e antecipou mais informações sobre o cronograma da CoronaVac. Ontem pela manhã, o governador João Doria (PSDB) participou da cerimônia e divulgou que a reforma vai permitir que a capacidade de produção de vacinas chegue a cem milhões de doses por ano. O tucano também aproveitou para divulgar que São Paulo deve receber no dia 20 de novembro as primeiras 120 mil doses importadas da CoronaVac e que o local desse estoque será mantido em segredo pelas autoridades.
Depois, em entrevista à Rádio Gaúcha, alfinetou o governo federal, afirmando que o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, havia prometido investir R$ 84 milhões nas obras, mas nenhum centavo havia sido depositado até aquele momento.
A agenda do dia, claramente construída para ser politicamente vantajosa para Doria, foi suplantada pelo anúncio de paralisação dos testes clínicos. Aliados do governador chamaram atenção para o timing de divulgação observado pela agência reguladora. Segundo eles, a publicação da nota – às 21h – casou com o horário dos noticiários de televisão.
RESISTÊNCIA ENTRE BOLSONARISTAS
Falamos ontem por aqui da última pesquisa Datafolha que mostrou queda da adesão da população de quatro capitais em se vacinar. Pois bem: a resistência é ainda mais expressiva quando os entrevistados são perguntados se topariam receber um imunizante desenvolvido na China – e a xenofobia é maior entre quem aprova o governo de Jair Bolsonaro. Entre os cariocas, por exemplo, 68% dos apoiadores do presidente recusariam as doses chinesas.
Na população em geral, os índices também são baixos. Em Recife, só 42% tomariam um imunizante criado pelos chineses; mas 65% pretendem se vacinar quando a nacionalidade da vacina não é colocada em pauta. Os índices ficam em 52% contra 73% no Rio; 52% contra 74% em Belo Horizonte; e 57% contra 72% em São Paulo.
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