Antídotos contra o assédio

Universidades brasileiras criam políticas de combate à importunação e à violência sexual

Matthew Lloyd?/?Getty Images

Casos recentes de professores e pesquisadores acusados de assédio sexual reacenderam a discussão sobre o papel das universidades no enfrentamento desse crime no ambiente acadêmico. Embora muitas instituições brasileiras ainda careçam de políticas e procedimentos específicos para lidar com esse problema, algumas estão investindo na elaboração e implementação de iniciativas para combater novos casos em seus campi.

Em 2017, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criou um grupo de trabalho para pensar políticas mais efetivas de combate à violência e ao assédio sexual. “Havia a percepção de que a universidade não dispunha de instrumentos adequados para processar as denúncias e, portanto, não levava esse assunto a sério”, diz Ana Maria Fonseca de Almeida, da Faculdade de Educação, que presidiu o grupo de trabalho à época.

A universidade promoveu várias discussões com estudantes, professores e funcionários, as quais resultaram em uma proposta de política institucional baseada na não tolerância ao assédio sexual, na definição de um protocolo de acolhimento multidisciplinar de queixas e de encaminhamento de denúncias, e no desenvolvimento de programas de conscientização, educação e treinamento de toda a comunidade universitária.

O documento foi submetido ao Conselho Universitário em 2019, e aprovado. Uma das principais medidas envolvia a criação do Serviço de Atenção à Violência Sexual (Savs), responsável por acionar setores especializados da Unicamp e, de acordo com as especificidades de cada caso, oferecer orientação e acolhimento às vítimas. “Nossa política não exigiu grandes investimentos”, comenta Fonseca de Almeida. “Criamos uma estrutura baseada em serviços que já existiam, ligados à saúde da mulher e à assistência psicológica e psiquiátrica.” A ideia é que o Savs centralize as queixas e mobilize essas estruturas. “Procuramos acolher, orientar, apresentar opções, oferecer acomodações e fazer a mediação com os serviços disponíveis”, explica a professora, ressaltando que a investigação e o julgamento dos casos ficam a cargo de comissões de apuração instituídas pela universidade.

Desde que foi lançado, o serviço já recebeu 60 queixas individuais. Nem todas se transformaram em denúncias. “As vítimas se sentem fragilizadas e culpadas pelo que aconteceu”, diz. “Muitas desistem do processo por receio de que ele se torne público e isso comprometa suas atividades de trabalho, estudo e pesquisa.” A estratégia, segundo Fonseca de Almeida, é tentar garantir que a vítima tenha total controle sobre o que será feito. “Nosso acolhimento se propõe a fazer com que ela reflita sobre os acontecimentos e se fortaleça psicologicamente, ficando a seu critério decidir se e quando apresentará a denúncia.” Quando isso acontece, o Savs reúne as evidências, monta o processo e o envia ao gabinete do reitor, que o encaminha à procuradoria-geral para avaliação e abertura de sindicância. A maioria dos casos ainda está sob investigação. Envolvem estudantes, professores, pesquisadores e funcionários técnico-administrativos. “Alguns já resultaram em advertências e suspensões não remuneradas”, afirma Fonseca de Almeida.

A Universidade Estadual Paulista (Unesp) também tem trabalhado em estratégias de enfrentamento de casos de má conduta sexual. As vítimas hoje são orientadas a fazer a queixa nas ouvidorias de seus campi. “Muitos casos também chegam até nós por meio dos centros acadêmicos, formados por estudantes”, explica Claudia Maria de Lima, ouvidora-geral da Unesp. “Ao receber a queixa, entramos em contato com a vítima para saber como podemos ajudá-la, evitando fazer com que ela tenha de recontar seu caso e reviver a experiência.” Assim como acontece na Unicamp, a universidade encaminha as vítimas para serviços de sua própria estrutura, a depender de cada caso. Ocorre muitas vezes de um campus não ter o serviço apropriado – a Unesp tem 24 campi espalhados pelo estado. “Procuramos manter um diálogo com instituições de saúde e grupos de apoio locais para garantir que as vítimas tenham um suporte adequado.”

Quando a vítima opta por seguir adiante com a denúncia – e se o caso tiver ocorrido nas dependências dos campi –, instaura-se uma comissão de apuração para avaliar o caso. Para evitar que o processo comprometa sua permanência na universidade, a Unesp, por meio da Comissão de Prevenção à Violência, aprovou uma resolução que oferece a possibilidade de transferência de unidade, independentemente da disponibilidade de vaga – o que já foi preciso fazer, a pedido de uma vítima de estupro. Lima explica que as comissões de apuração são formadas por três servidores, em geral pesquisadoras envolvidas em trabalhos sobre violência de gênero e direitos humanos. Muitos dos casos que chegam à ouvidoria se dão em festas em repúblicas e envolvem apenas estudantes. “Infelizmente, o máximo que podemos fazer nesses casos é promover o acolhimento, já que a universidade não tem autoridade para investigá-los, a menos que o caso envolva um funcionário ou servidor.”

Nos últimos dois anos, a Unesp recebeu 15 registros, todos de assédio sexual. Dois se transformaram em denúncias formais – ainda em processo de apuração. Paralelamente, a universidade trabalha em outras ações. Desde 2015 conta com um grupo de trabalho de prevenção à violência e, em dezembro de 2021, criou a Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade, que promove práticas e políticas de combate ao assédio e à violência sexual e de gênero na instituição. “Realizamos fóruns de debate para dar visibilidade ao tema e conscientizar a comunidade acadêmica”, conta Leonardo Lemos de Souza, que está à frente da coordenadoria da Unesp. “Também lançamos um guia com orientações sobre como identificar e lidar com esse problema, além de treinamentos dos ouvidores que fazem o primeiro contato com as vítimas.”

As iniciativas da Unicamp e Unesp se somam às de outras instituições. Desde 2016 a Universidade de São Paulo (USP) conta com o Escritório USP Mulheres, que trabalha na elaboração e implementação de iniciativas de promoção da igualdade de gênero em seus sete campi. Em 2020, o escritório lançou, em parceria com a Superintendência de Assistência Social, um protocolo de atendimento para casos de violência e assédio sexual na universidade, com orientações sobre acolhimento, encaminhamento e acompanhamento das vítimas por meio de serviços de saúde e psicossociais.

Hoje, as vítimas de violência e assédio sexual na USP podem levar o caso à ouvidoria ou às comissões de direitos humanos. Esses órgãos são responsáveis por reunir as denúncias e encaminhá-las ao diretor responsável, que analisa os casos e instaura as sindicâncias. Estas podem resultar em um processo administrativo contra o agressor. No entanto, esse caminho ainda tem sido pouco efetivo. “A vítima precisa fazer a queixa, depor na sindicância, depois depor no processo administrativo, não raro na presença do agressor”, esclarece a socióloga Heloisa Buarque de Almeida, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Muitas desistem no meio do caminho. Outras seguem em frente, mas abandonam o curso.”

A maioria das universidades brasileiras carece de estruturas e políticas de combate à violência e ao assédio sexual

Buarque de Almeida é uma das coordenadoras da Rede Não Cala! USP, movimento de professoras que cobra da instituição políticas mais efetivas de combate à violência e ao assédio sexual. A rede se formou em 2015, em virtude do caso de um estudante da Faculdade de Medicina acusado de ter dopado e estuprado pelo menos seis colegas. “A ideia era criar uma rede de acolhimento, em que professoras de diferentes institutos se oferecem para receber e escutar as vítimas e orientá-las sobre como prosseguir, sempre tentando explorar ao máximo os mecanismos institucionais de que dispomos na universidade”, diz. A partir dessas experiências, a rede elaborou um projeto propondo a formação de um centro de referência de acolhimento, mudanças no regimento da universidade para aprimorar as sindicâncias e a criação de um lugar de encaminhamento jurídico interno mais independente de cada unidade. “Entregamos o projeto à universidade em 2017, mas nada foi feito”, destaca. “Restabelecemos as conversas com a atual coordenadora do escritório, que se mostrou disposta a tentar implementar essas ideias.”

As falhas apontadas por Buarque de Almeida colocam ainda mais em evidência a importância de redes de acolhimento e coletivos feministas. “Eles atuam na articulação de denúncias coletivas”, ela diz. Esse é um dos principais mecanismos usados pelas vítimas para dar força às queixas. A estratégia resultou, em dezembro de 2021, na demissão do engenheiro industrial químico Cláudio Lima de Aguiar, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. Em 2019, oito alunas de pós-graduação e outras cinco testemunhas que conviviam com o pesquisador o acusaram de assédio sexual e moral. A USP instaurou um processo administrativo contra Aguiar, que em março de 2020 foi forçado a pedir afastamento da instituição após abaixo-assinado da comunidade acadêmica. Em dezembro de 2021, o então reitor Vahan Agopyan assinou sua exoneração.

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) também se movimenta nesse sentido. “Temos um longo histórico de projetos de ensino, pesquisa e extensão relacionados a questões de gênero na ciência, mas as discussões sobre violência e assédio sexual ainda não se davam em nível institucional”, comenta a física Daniela Borges Pavani, do Instituto de Física da UFRGS. Segundo ela, isso começou a mudar em 2017, quando a instituição passou a integrar o comitê gaúcho impulsor do movimento HeForShe, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para estimular a discussão de estratégias e ações de promoção da igualdade de gênero na sociedade.

Pavani preside o comitê da UFRGS e conta que uma de suas primeiras ações foi a realização de uma pesquisa sobre a percepção de assédio moral e sexual na universidade. O levantamento ouviu pouco mais de 6 mil pessoas, homens e mulheres, e verificou que 10,4% dos docentes, 13,4% dos técnico-administrativos e 11,8% dos estudantes já haviam sofrido assédio sexual na universidade. A maioria absoluta das vítimas era mulher. “Muitas não denunciam por achar que não têm provas ou testemunhas suficientes”, diz.

Os resultados desse estudo serviram de base para uma reunião, promovida no início de 2020 com vários setores da universidade, na qual foram discutidas medidas para lidar com o problema, como a criação de um grupo de trabalho permanente focado na elaboração de protocolos e ações contra violência e assédio sexual na universidade, o estabelecimento de espaço de acolhimento e recebimento de denúncias – o principal canal disponível hoje na universidade é o da ouvidoria –, a elaboração de um guia de boas práticas, palestras e cursos obrigatórios sobre o tema para professores, estudantes e técnico-administrativos recém-admitidos, além da realização periódica de estudos sobre má conduta sexual. “Com a pandemia, porém, a UFRGS suspendeu todas as articulações institucionais para levar essas ações adiante”, diz Pavani. As discussões foram retomadas em 2021. “Recentemente, enviamos ao Conselho Universitário uma proposta de resolução normativa de prevenção e enfrentamento do assédio.”

Em 2016, a Universidade de Brasília (UnB), por meio de seu Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (Nepem), promoveu com o Ministério Público do Distrito Federal (MP-DF) uma audiência pública com representantes de várias instituições de ensino e pesquisa da região para discutir o enfrentamento desse problema no ambiente universitário. “Reservamos uma sala para que o MP-DF pudesse coletar novas denúncias”, conta a socióloga Tânia Mara Campos de Almeida, do Departamento de Sociologia da UnB, uma das integrantes do Nepem. A partir disso, o órgão fez uma série de recomendações à reitoria, que passou a trabalhar no fortalecimento da Coordenadoria da Mulher, “que hoje atua no atendimento psicossocial das vítimas e seu encaminhamento para os serviços pertinentes, além de se articular com a ouvidoria da UnB e membros do Poder Judiciário para aprimorar as estratégias de combate à violência e ao assédio na instituição”.

As especialistas ouvidas pela reportagem concordam que essas iniciativas são importantes, mas destacam que elas ainda estão concentradas em poucas instituições e não tiveram tempo de se provarem efetivas. “A maioria das universidades brasileiras carece de estruturas ou políticas específicas para lidar com esse problema”, afirma Buarque de Almeida. “Quase sempre, o máximo que fazem são campanhas de conscientização com cartilhas e cartazes espalhados pelos campi.”

A Universidade Federal do ABC (UFABC) tenta dar um passo além. Criou recentemente um grupo de trabalho com representantes discentes, docentes e técnico-administrativos para discutir políticas de combate à violência e ao assédio sexual. “Elaboramos uma resolução com várias medidas e a submeteremos ao Conselho Universitário em breve”, diz Acácio Santos, pró-reitor de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da UFABC, cuja ouvidoria diz ter recebido seis denúncias nos últimos três anos, todas em andamento.

Um dos principais resultados da falta de políticas e fluxos adequados de processamento das queixas é o deserto de dados que se forma em relação à incidência desse problema nas instituições. Em 2015, um levantamento feito pelo Instituto Avon com 1.823 estudantes de graduação e pós-graduação do Brasil jogou um pouco de luz sobre isso: 56% das mulheres relataram ter sofrido assédio sexual na universidade. “Nota-se que esse problema é muito subnotificado”, destaca Fonseca de Almeida, da Unicamp.

Os motivos para isso são variados, mas, em sua maioria, estão associados à posição vulnerável na qual as vítimas se encontram em relação aos agressores e à falta de confiança na capacidade das instituições de lidar com as denúncias. “Elas têm medo das implicações que o processo pode ter na sua carreira e preferem ficar caladas”, destaca Buarque de Almeida. Esse problema não se restringe ao Brasil. No Reino Unido, um em cada 10 funcionários de faculdades e universidades diz ter sido vítima de violência ou assédio sexual nos últimos cinco anos, segundo estudo do sindicato de professores de ensino superior daquele país envolvendo quase 4 mil funcionários. Mais da metade (52%) não deu queixa.

Para tentar enfrentar esse problema, nos Estados Unidos e no Canadá, as 66 instituições que integram a Associação de Universidades Americanas (AAU) adotaram oito princípios (ver box) para prevenir a violência e o assédio sexual no meio acadêmico. Um deles é o compartilhamento de dados de casos de má conduta sexual envolvendo professores e pesquisadores quando solicitados por outras instituições empregadoras. A ideia é garantir que os casos não sejam encerrados quando o acusado deixa sua instituição atual, mas detalhá-los em registros que possam ser divulgados e compartilhados entre as universidades quando da contratação. “A luta contra a violência e o assédio sexual na sociedade como um todo e no ambiente universitário, em particular, precisa ser constante, e, quanto mais canais as instituições tiverem à disposição, mais as vítimas se sentirão confortáveis para denunciar”, afirma Lima, da Unesp.

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