Por Rita Coitinho, para Desacato.info.
O discurso “oficial” das forças armadas brasileiras sobre o golpe civil e militar de 1964 é um só: o mundo estava à beira de uma revolução comunista mundial, o Brasil estava um caos e era preciso restabelecer a ordem. O povo pedia por isso, dizem, em referência às marchas da classe média urbana organizadas pela TFP e pelos grandes jornais, que faziam a agitação anticomunista. O “povo”, essa entidade indefinida, estava dividido. De um lado as agitações pelas Reformas de Base, de outro, a defesa da “propriedade privada”. As forças armadas fizeram opção por um dos lados, insubordinaram-se contra o governo democraticamente eleito (João Goulart, vice de Jânio Quadros, que renunciara, fora eleito por maioria dos votos para vice, que naquele tempo eram contabilizados em separado dos votos do titular) e deram um golpe. Ficaram vinte anos no poder sem eleições e este é um fato inquestionável. Já a justificativa, é absolutamente questionável. Qual ameaça comunista? Como é possível que em um país que “beirava a subversão” o maior partido comunista não tenha conseguido, sequer, organizar uma insurreição em alguma cidade importante para resistir ao golpe de Estado?
A verdade é que as reformas de base, ainda que fossem projetos que visavam um aprofundamento democrático dentro dos marcos do capitalismo – reforma agrária, por exemplo, é uma medida típica da maioria das revoluções burguesas e ocorreu nos EUA ainda nos primórdios da sua organização enquanto nação independente – eram temidas pelas classes dominantes brasileiras. Diante do pavor à democratização da sociedade, na qual viam uma ameaça aos seus privilégios, apostaram numa saída autoritária, na qual as Forças Armadas se prestaram ao papel de executoras. Em um mundo dividido pela Guerra Fria, em que os meios de comunicação dedicavam-se a espalhar histórias da carochinha sobre o socialismo na URSS, não havia fantasma melhor para assustar o povo do que o do “comunismo”. Em nome da luta contra a subversão, a classe dominante instrumentalizou as forças armadas para desempenhar o nefasto papel de travar uma luta contra o povo: a parte da população que almejava as reformas e organizava-se em partidos e movimentos sociais. Nos anos que se seguiram, o modelo de crescimento econômico adotado pelo regime contribuiu para a ampliação da concentração de renda, enquanto uma urbanização descontrolada – resultado do crescimento para poucos – acumulou milhões de pessoas nas periferias dos grandes centros urbanos.
É claro que os anos de neoliberalismo aprofundaram o problema, uma vez que o Brasil renunciou a toda sua política industrial e conduziu-se um processo de liquidação do patrimônio nacional. Com a explosão da taxa de desemprego estourou, também, a violência urbana. Mas por pior que seja um governo – como foram Collor e FHC -, não é possível chegar ao ponto se chegou nos anos 1990 em tão pouco tempo. Os vinte anos de ditadura, em que se optou por “crescer o bolo” sem dividi-lo, mais os dez anos de hiperinflação e crise (que já se iniciava no final da ditadura) são parte indissociável dessa história de urbanização desordenada, êxodo rural e crescimento das periferias, onde as populações são submetidas a condições de vida miseráveis e são contidas, em seus anseios e possibilidades de organização política, pela violência organizada.
O crescimento do tráfico e a divisão das comunidades em zonas de controle de quadrilhas e milícias funciona como um verdadeiro cordão de isolamento. Toda iniciativa de organização política dentro das periferias esbarra no controle das quadrilhas. Nada mais funcional à contenção do povo pobre do que a sua manutenção como refém da violência. Também é parte dessa história a organização de uma política de segurança pública baseada na reação e repressão, que tornou as polícias militares máquinas de moer carne humana. Nessa máquina caem, todos os dias, os próprios policiais militares, mal equipados, mal remunerados e mandados às pencas ao confronto inútil.
Chegamos ao ponto em que estamos hoje. Os 13 anos de governos democrático-populares conseguiram ampliar a renda do povo mais pobre e levar alguns serviços básicos às populações das periferias e zonas rurais. O problema, porém, estava ainda muito longe da solução. As mudanças de longo prazo, baseadas em ampliação da renda, geração de empregos, universalização da educação, reforma urbana etc. recém começavam. No plano mais imediato, não se conseguiu aprovar qualquer tipo de mudança relativa à segurança pública e à organização das polícias, com projetos de lei de interesse do governo literalmente empacados no Congresso Nacional. O país, como um todo, seguiu na linha da “reação” ao problema da violência e, com o golpe de Estado de 2015/2016, os projetos em andamento – como os programas de urbanização de bairros e favelas financiados com recursos do PAC – foram todos desmontados. Novamente, os ricos e poderosos organizaram-se para usurpar o poder ao povo, freando as poucas reformas em andamento.
Enquanto ainda tentamos entender o que houve (porque ao contrário do que diz a propaganda anticomunista démodé de certas páginas da internet, não havia uma revolução comuno-bolivariana em andamento e nem exércitos de médicos cubanos prontos para tomar o poder) fomos surpreendidos com uma “intervenção militar” para solucionar o problema da segurança pública no Rio de Janeiro. O decreto que a autoriza deve ser votado hoje no Congresso. Analistas que observam o comportamento da mídia corporativa dão conta de que, durante o Carnaval, a rede Globo direcionou sua cobertura “jornalística” (ponho entre aspas porque a Globo faz qualquer coisa, menos jornalismo) a alguns casos de violência e carregou nas tintas, dando a entender que o Rio de Janeiro estaria tomado pelo crime organizado e pela violência desenfreada. Cariocas que pularam o carnaval, no entanto, afirmam a esta colunista que o Rio estava como sempre, nem mais, nem menos. Hildegard Angel observou[1], a propósito, que a cobertura da rede Globo à “violência no Rio” nas últimas semanas é muito parecida, no tom, com a cobertura que fazia durante o governo Brizola, com o objetivo de desmoralizá-lo. Tudo indica que esse conglomerado pouco afeito às pautas democráticas estaria apoiando – ou melhor, clamando – a “solução” militar. Mas que solução é essa?
O que pode fazer o exército brasileiro para solucionar a violência? Adentrar às favelas com meninos/soldados de 18 a 20 anos, armados de fuzis para intimidar outros meninos de 18 a 20 anos? Colocar tanques de guerra nas ruas do Rio de Janeiro? Irá se ater ao Rio de Janeiro? É só lá que há violência urbana? E no que isso vai resultar, além de amedrontar quem já vive com medo, o povo trabalhador refém do tráfico, das milícias e da polícia, nas comunidades mais pobres? Será que o exército vai solucionar o problema do tráfico de armas que abastece as quadrilhas? O exército vai interromper o fluxo do fornecimento de cocaína e outras drogas? Em um passe de mágica? Ou o exército vai apenas se prestar ao policiamento ostensivo, nome técnico para intimidação, apenas para dar uma impressão de segurança à população que tem medo da violência e clama por sangue? Ao que parece, é essa última opção que vai se materializar se o decreto for aprovado hoje.
A política de “guerra às drogas”, depois do fim da guerra fria, tornou-se o principal discurso justificador da violência contra o povo. O México iniciou em 2006 uma “guerra às drogas” que mobilizou as forças armadas, as polícias e o ministério público do país. A política iniciada pelo presidente Calderón em seu Estado de origem, Michoacán, que tinha uma alta taxa de criminalidade, espalhou-se para todo o país. Na época, o México não contava com altas taxas de violência. O país registrara 8.867 assassinatos em 2007, o que não é uma taxa alta para um país latinoamericano com uma população numerosa. Depois do início da “guerra às drogas”, a violência alastrou-se ao ponto de em 2017 o número de assassinatos chegar a 130.000 por ano[2]. Desde que a “guerra” começou, os índices de violência no país cresceram exponencialmente, ao mesmo tempo em que o tráfico logrou penetrar nas polícias, nas forças armadas e no judiciário mexicano, transformando-o em um narcoestado. Os desaparecimentos de ativistas e jornalistas são constantes, e a repressão aos movimentos sociais segue a lógica de uma guerra suja, onde é possível que “desapareça” um ônibus inteiro com 43 estudantes depois de uma manifestação[3]. Sabe-se que os estudantes foram torturados e assassinados, em uma ação de que mesclou policiais, agentes públicos e traficantes.
Também na Colômbia a Guerra às Drogas foi adotada, já nos anos 1990, com recursos e treinamento a cargo dos Estados Unidos. O Plano Colômbia[4], anunciado com uma grande ação de repressão ao narcotráfico, teve como efeito apenas a consolidação da presença militar estadunidense na América do Sul, por meio da fixação de bases militares na própria Colômbia, mas também no Equador e no Caribe próximo (Aruba e Curaçao), a intensificação do comércio de armas e a repressão às guerrilhas e movimentos de esquerda. A identificação das guerrilhas colombianas com o tráfico de drogas, aliás, foi a melhor arma de propaganda já inventada, para a qual criou-se até um termo novo: narcoguerrilhas. A guerra “contra a subversão” dos anos 1960/70, que mobilizara efetivos, permitira acordos de cooperação militar entre os países latinoamericanos e os EUA e justificara a instauração de ditaduras transmutou-se, com o fim da guerra fria, em guerra contra o narcotráfico. Assim, o fluxo de armas e munições – um dos ramos mais rentáveis da economia estadunidense – não precisou ser interrompido e as políticas repressivas ganharam nova justificativa.
O tráfico de drogas movimenta, no Brasil, em torno de R$ 15,5 bilhões ao ano, de acordo com levantamento da Consultoria Legislativa da Câmara de Deputados, realizado em agosto de 2016[5]. O comércio ilegal de armas movimenta 290 bilhões de dólares todos os anos e 35% dessas movimentações são feitas por uma criminalidade organizada[6]. O restante é feito pelos governos, envolvidos ou não em guerras. No Brasil, assim como no México, na Colômbia ou qualquer outro lugar, o negócio de armas caminha junto com o tráfico de drogas. Qualquer ação séria de combate às quadrilhas ligadas ao narcotráfico deveria, de início, cortar a possibilidade de comércio ilegal de armas, o que implica em monitoramento de fronteiras, de embarcações e aeronaves e, o que é fundamental: disposição de enfrentar os interesses da maior economia do planeta. Para além disso, seria preciso encarar com seriedade o debate sobre a legalização de alguns tipos de drogas, de modo a “quebrar a espinha dorsal” do negócio ilegal. Sairia mais barato fazer campanhas de prevenção e conscientização, como se faz hoje em dia com grande sucesso em relação aos cigarros do que toda a parafernália envolvida na “guerra” ineficaz às drogas.
Mas esse debate não interessa a quem está no poder. Esse debate não traz votos, nem apoio popular, pois esbarra em tradições, preconceitos e convicções de ordem moral. Ao mesmo tempo, a guerra às drogas é necessária, pois movimenta os negócios e possibilita a manutenção do povo como refém da violência. Quem vai pensar em organizar um protesto contra a falta de energia elétrica, por exemplo, como ocorreu no Rio de Janeiro durante o carnaval, com as ruas ocupadas por tanques e soldados? A maior parte dos moradores das comunidades onde o tráfico fixa suas bases de operação não tem nenhuma ligação com a venda de drogas. São trabalhadores, reféns de uma situação calamitosa de violência urbana. Os grandes clientes do narcotráfico não vivem nas comunidades que sofrem intervenções da polícia e, agora, do exército. Vivem nos bairros nobres, viajam de avião e helicóptero e não serão atingidos pela guerra aberta, nem deixarão de comprar a mercadoria, como mostra o exemplo da “guerra às drogas” na Colômbia e no México: o fluxo de drogas destinadas aos EUA não se reduziu, depois de quase 20 anos de repressão, enquanto que se ampliaram os números da violência no campo e na cidade. Ao escolher o caminho da intervenção, o governo ilegítimo mostra a que veio: fazer a guerra à população mais pobre, mantê-la sob controle e, de quebra, melhorar sua popularidade ao demonstrar “firmeza” com a criminalidade. Já as forças armadas, se embarcarem nessa, farão uma vez mais o papel de executoras de uma guerra contra o seu próprio povo e sairão dela, sabe-se lá quando, carregando todos os custos do fracasso dessa estratégia.
[1] Em seu blog, dia 16/02/2018 – http://www.hildegardangel.com.br/
[2] Mais detalhes em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/03/internacional/1483401240_525095.html
[3] http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2014/11/entenda-o-caso-dos-43-estudantes-mexicanos-desaparecidos
[4] http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/p/plano-colombia
[5] Dados divulgados em http://hojeemdia.com.br/primeiro-plano/narcotr%C3%A1fico-no-brasil-movimenta-r-15-5-bilh%C3%B5es-por-ano-cifra-%C3%A9-o-piv%C3%B4-de-massacres-1.438397
[6] Conforme o jurista Walter Maierovich, jurista e especialista em crime organizado internacional. Entrevista à Carta Capital 06/04/2011 – https://www.cartacapital.com.br/politica/walter-maierovitch-o-brasil-e-protagonista-no-trafico-internacional-de-armas
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Rita Coitinho é socióloga, doutoranda em geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.
Rita Coitinho queria escrever um pouco em sua página. Vejo seus artigos no Portal Vermelho e gosto muito. Sou apaixonado pelo Partido Comunista do Brasil. Amo as feministas e a meiguice que vocês representam e o que significa a pré-candidatura da Munuela d’Ávila para a presidência da república. Não quero lhe falar sobre seus lindos olhos azuis. Mas do que você representa nos textos que você escreve no Portal Vermelho. Fico muito feliz de poder escrever em sua página e de poder lhe falar de minha admiração, admiração profunda, pode acreditar. Saiba que sua luta não é apenas sua luta, mas a nossa luta, a luta daqueles que sonham com justiça social. Não quero estender muito, só quero lhe dizer “Parabéns pelo seu trabalho, é maravilhoso!”. Desculpa pelo desabafo e obrigado pelo espaço.