Por Luís Eduardo Gomes.
A semelhança física impressiona. É impossível olhar para ela e não lembrar imediatamente da irmã. Quatro anos mais nova, Anielle Franco, 35, está começando a trilhar a mesma trajetória interrompida brutalmente em 14 de março de 2018. Em 2020, ela deve concorrer a uma vaga à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, que hoje deveria ter uma de suas cadeiras ocupadas por Marielle Franco.
Professora na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, escritora — o livro “Cartas para Marielle” será lançado em julho na Feira Literária Internacional de Parati (Flip) — e responsável pelo Instituto Marielle Franco, Anielle deve acentuar a partir do segundo semestre um ciclo de atividades no Brasil e no exterior. Já tem duas viagens marcadas aos Estados Unidos para participar de encontros com ativistas negros. Por aqui, tem participado como convidada de debates e promovido o Papo Franco, que são palestras de formação política por meio do legado e da memória da irmã.
Na última sexta-feira (28), esteve em Porto Alegre para participar de uma aula pública do Curso Dandaras, promovido pelo Akanni – Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Raça, Gênero e Etnias. O tema do curso: Construindo o Pensamento Crítico e Formação Política com Mulheres Negras no RS. Em entrevista do Sul21, Anielle fala justamente da ocupação de espaços na política por mulheres negras, do espaço que pretende ocupar, do legado e do uso da imagem de sua irmã e de como a família ainda aguarda por uma resolução para o assassinato. Confira a íntegra a seguir.
Sul21 – A gente tem visto um movimento crescente de participação de mulheres negras na política. Infelizmente, dá para se atribuir, ao menos em parte, como resultado da morte da Marielle. Como tu vê esse movimento e o impacto que ele pode ter na sociedade?
Anielle Franco: Eu sempre digo que tem dois lados. Quando a gente foi participar da campanha eleitoral de várias pessoas em 2018, foi muito doloroso. Primeiro, porque tinha muita imagem, tinha muita coisa da Mari. Segundo, porque a gente tinha acabado de fazer uma campanha para ela, em 2016, e olhar para aquilo ali e pensar que ela poderia estar ali e não está mais. Esse é um lado pessoal que a gente sente muito. Mas, pelo outro lado, ver a ascensão dessas mulheres negras ao poder, por exemplo, no Rio de Janeiro foram quatro, três estaduais e a Talíria [Perrone, PSOL] para federal, nos deixa muito felizes, porque era isso que ela queria. Ela dizia que tinha um sonho de ver 50% da política sendo feita por mulheres e negras. Ela falava muito isso na brincadeira, mas hoje a gente entende o porquê. Estando dentro da política, a gente entende o quanto isso era importante. Eu confesso que é difícil olhar e não vê-la. É difícil olhar para o quadro que a gente tem hoje e pensar: ‘Nossa, ela era tão boa no que ela fazia, isso era para ela’. Não tê-la, dói demais. Mas a gente entende o quanto isso é importante. Pega o curso [Dandaras], são 200 mulheres negras estudando, querendo conquistar lugares melhores para elas, salários melhores, porque a gente ainda está no fundo da pirâmide, a gente não consegue subir. Por quê? Como que a gente muda isso? Então, é importante tê-las lá.
Sul21 – Qual é a importância dessa representatividade na política e de que as gerações mais jovens de mulheres negras tenham esses exemplos?
Anielle Franco: Eu acho que isso é fundamental demais. Quando você liga a televisão e vê uma coisa em que você não se vê, é muito ruim, dói demais. A gente costumava dizer que a Marielle representava várias vertentes, várias minorias que na verdade são maiorias. Quando você tem alguém com quem você tem identificação, você pensa: ‘Agora a gente tem alguém que fala por nós’. E quando tiram a Marielle desse lugar, quando matam ela, estão assassinando um pouquinho de cada uma de nós. Aí vem essas mulheres negras que aceitam o desafio de tentarem se candidatar e são eleitas. Mas eu não consigo separar uma coisa da outra, tanto a política, quanto você chegar num lugar e ter uma professora negra, quando a gente chega num jornal e ter um jornalista negro. Tem gente que não entende isso, mas para nós é muito importante. É uma luta que vem de muitos e muitos anos. Nossos ancestrais morreram para que hoje a gente esteja aqui dando voz, como foi o caso da Marielle. Eu não consigo ver como pouco, eu vejo isso como uma luta muito grande.
Sul21 – Tu decidiu se candidatar a vereadora pelo Rio de Janeiro no ano que vem. O que te influenciou nessa decisão?
Anielle Franco: A gente nasceu com aquela vontade de mudar o mundo. A gente sabe que não consegue mudar muita coisa, mas começa por nós. Eu sou professora no Rio, escritora também agora, estou tocando o Instituto Marielle Franco e o Papo Franco. Eu acho que a gente não consegue mais voltar atrás. Eu estou pensando muito hoje na Favela Maré. A gente se sente abandonado. É óbvio que eu preferia não estar hoje pensando em me candidatar e ter a minha irmã ali. Mas é como se fosse uma afronta, a gente batalhar tanto para que ela conseguisse chegar ali e do nada ser executada a sangue frio como foi, em um plano arquitetado, e ficar parada assistindo. Eu costumo dizer que acho que não tenho nenhum um terço da capacidade política que ela tinha, mas a gente tem muita vontade e gana de fazer melhor pro nosso povo.
A minha pauta principal, embora a gente ainda esteja engatinhando nisso, são as mulheres negras da favela. As mulheres negras que estão ali sendo estupradas, sendo violentadas, com salários menores. A gente quer muito fazer projetos para essa população, que é a nossa população, e é a mesma pauta da Mari quando se candidatou. A pauta dela era ‘eu sou negra, mãe, da favela’. A gente quer muito tocar e também poder, através do Instituto Marielle Franco, fazer um trabalho que ajude a influenciar e aumentar a autoestima dessas meninas que hoje estão lá achando que ‘ser mulher de bandido é ok, é o melhor para mim’. Quero falar de educação, falar de esporte. Eu sou atleta desde os meus 8 anos. Falar como isso mudou a minha vida. Também como a gente começa a se aceitar como mulher negra, o que não é um processo fácil. Então, misturar tudo e dizer que a gente ainda tem voz, não vai se calar e vai permanecer na luta enquanto puder.
Sul21 – E como fazer política no Brasil carregando essas bandeiras durante a essa onda conservadora na qual vivemos? Tu vê possibilidade de disputa nas favelas do Rio?
Anielle Franco: Eu vejo possibilidade de disputa porque a Marielle hoje se tornou um símbolo mundial. Quando a gente fala dela, não temos como citar todos os grupos que são atingidos por preconceito, por ódio e tal. É óbvio que dá um medo, a gente não sabe até agora quem mandou matar Marielle, é óbvio que a gente não se sente muito segura em alguns lugares, não tem como negar isso. Ao mesmo tempo, a gente perdeu um pouco do medo para outras coisas. Sabe que tem o risco, mas também não consegue ficar assistindo todo o retrocesso que está acontecendo no quadro político brasileiro, que no Rio, então, é em todas as esferas. A gente tem o prefeito, o governador e o presidente. Ficaram muito comuns lá os discursos de ódio contra a gente. Eu, por exemplo, fui cuspida na época da eleição com a minha filha de três anos no colo por ser a irmã da Marielle. Estava só com um broche e fui cuspida na cara com uma criança. Então, a gente não consegue mais aceitar isso calada, a gente não aguenta olhar falarem ‘porque você é negra tem que morrer’, ‘macaca’ ou ‘cabelo duro’, como nos chamam o tempo inteiro e como chamavam ela também. Não vai ser um quadro fácil, tenho certeza que não. Não é uma situação favorável para a gente, mas assistir todo esse fascismo tomando conta, sobrepondo as nossas causas, tentando nos calar, também não é uma opção, então a gente acaba indo para o embate.
Su21 – Tu tem medo de algo que pode acontecer contigo ao entrar na política? Tu já foi ameaçada por milicianos, por exemplo?
Anielle Franco: Medo a gente sempre tem, ainda mais na escura, quando a gente não sabe o que aconteceu. Mas, eu, particularmente, nunca tive uma ameaça concreta daquelas ‘vou te matar’, de se sentir perseguida. Tem muito discurso de ódio. É impressionante. Por baixo, acho que já recebi pelo menos umas mil mensagens de ‘bem feito’, ‘cala a boca’, ‘tá falando de mais’, de seguidores que estão ali para incomodar mesmo, para falar mal de tudo que é contrário ao que hoje eles defendem. Mas, graças a Deus, não tivemos ameaças concretas e acho que a gente está aprendendo aos poucos a conviver e caminhar com o medo, porque não temos escolhas. Não temos outra escolha a não ser de seguir, não tem como ficar paralisada, então o medo a gente tenta controlar e tocar.
Sul21 – Tem alguma novidade nas investigações ou as informações que a família têm também pararam nas prisões realizadas em março?
Anielle Franco: A gente não tem tido acesso. Eles têm evitado falar. Principalmente após a prisão deles, a gente não está sabendo de muita coisa. Até ficava sabendo antes da prisão. As promotoras ligavam e falavam. Inclusive, no dia da prisão, uma promotora ligou e falou: ‘Olha, prendemos os caras’. Cinco horas da manhã. Depois disso, a gente não teve mais acesso a nada. Só sabemos o que sai na mídia. A gente sabe que há duas ou três semanas já teve um julgamento prévio, meus pais participaram na condição de que não poderiam falar nada que tinham escutado ali e tal, super sigiloso. As investigações continuam, mas não temos detalhes.
Sul21 – Mas ainda não há um sentimento de conclusão, não é?
Anielle Franco: Não, não. Vai ter se a gente descobrir quem mandou matar. A gente sabe que tem muita coisa ainda até chegar em quem mandou matar. É o que eu acho.
Sul21 – Eu queria voltar a algo que tu falou no início da conversa. Tu falou que tem participado de eventos políticos e tem sido doloroso lidar com o uso da imagem da Marielle. De alguma forma, a imagem dela também tem sido usada de forma comercial, teve até o desfile de moda do Ronaldo Fraga que gerou polêmica na internet. Como tu vê esse uso da imagem dela?
Anielle Franco: Para a gente é muito difícil. Eu te confesso que a primeira vez que eu fui fazer uma mensagem no meu Instagram sobre isso muita gente me chamou de raivosa, mas é porque para a gente é complicado diferenciar e dividir o comércio, o oportunismo que as pessoas têm, de uma pessoa que era a minha irmã. Sangue do meu sangue. Era muito difícil. Eu entendo que a Marielle hoje já não é mais nossa, ela é do mundo. Então, quando você vê pessoas como Spike Lee [cineasta norte-americano] e Viola Davis [atriz norte-americana] fazendo menções a ela e falando da luta, a gente sabe que ela ganhou o mundo. Mas, ao mesmo tempo, quando você está aqui vivendo e sabendo que tem pessoas que usam a imagem, que promovem ou que vendem aquilo ali sem autorização nenhuma da família, dói demais. Incomoda. A gente não tem muito o que fazer além de acionar a Justiça ou tentar confrontar a pessoa diretamente dizendo: ‘Olha, não é assim, vamos conversar’. Mas é uma coisa que hoje a gente não consegue controlar mais. Fugiu um pouco das nossas mãos.
Sul21 – Do ponto de vista político, tem essa dupla face, de um lado um uso político do episódio e de outro de fato ele foi uma inspiração. O Spike Lee provavelmente não conhecia a Marielle em vida, veio a conhecer a história. Como tu vê essa questão do uso político da imagem dela?
Anielle Franco: Acho que, sim, tem os dois lados mesmo. Se você pegar o Rodrigo Amorim (PSL), que foi eleito o deputado estadual mais votado do Rio de Janeiro, um cara que quebra a placa da minha irmã e depois pendura metade da placa no gabinete dele. Que povo é esse que vota num homem desse e acha que está ok? E, ao mesmo tempo, você pega as meninas que foram eleitas. A Talíria recebeu 107 mil votos. Então, acho que tem os dois lados da coisa, não tem como negar. Não só do ponto de vista político, como você perguntou, em outras esferas também. Mas, na política, está muito dividido. É aquela coisa, ou você ama ou você odeia. Eu percebo isso por se parecida com a Marielle, por usar uma bolsa, por usar um broche. Tem pessoas que olham e viram a cara. Outras que chegam e dão um abraço, se solidarizam. Mas tem uma questão que eu gosto sempre de falar é que as pessoas confundem muito a ideologia política com o valor humano. Não importa se você votou no Bolsonaro e que eu tenha votado, sei lá, no Freixo — eles não se candidataram para a mesma coisa, só estou dando exemplo de pessoas de direita e esquerda –, não interessa, foi uma vida ceifada, uma vida executada. Foram 13 tiros no carro. Quatorze na cabeça. Não era qualquer coisa. Não era qualquer pessoa que estava fazendo aquilo ali, entendeu. Tem um crime político? Tem. Mas tem um crime de ódio por trás também. Tem um crime contra uma mulher que é assumidamente bissexual, que era negra, da favela. Então, incomoda, ao mesmo tempo que eles olham e dizem: ‘O que essa macaca’ — como falaram para mim — ‘agora virou símbolo de quê? Para’. Aí outro lado fala: ‘Nossa, meus pêsames’. Então, tem os dois lados. O ódio é propagado de uma maneira muito grande no nosso País, isso todo mundo vê e sabe, basta abrir o jornal ou o telefone que a gente tem algum caso de violência contra algum tipo de minoria, e a Marielle era exemplo disso. É um crime que vai muito além de tudo isso. Então, na política, quem sabe usar, usa, como o próprio deputado do PSL usou e está aí cotadíssimo para ser prefeito do Rio de Janeiro no ano que vem. Complicado.
Sul21 – Em casos como esse do deputado, vocês estão entrando com ações judiciais ou tomando algum tipo de medida?
Anielle Franco: Olha, na época a gente entrou, mas vou ser bem honesta, nem sei como está. A OAB fez uma carta, eu falei com ele, mandei uma mensagem. Nunca tive resposta. O governador [Wilson] Witzel (PSC), que no dia estava ao lado deles na mesma manifestação, pediu desculpas para os meus pais depois. Teve um encontro em que ele recebeu meus pais já enquanto governador. O mais engraçado é que foi a esposa do governador que cutucou ele para que ele falasse da placa, porque ele não ia falar da quebra das placas. Mas, enfim, acabou falando e pediu desculpas. A gente tenta lutar com as armas que a gente tem, o diálogo, ou acionar, por exemplo, aquela desembargadora que falou mal da Marielle tem uma ação rolando contra ela. Eu não tenho certeza se a do Rodrigo Amorim foi pra frente. Na época, a gente questionou sim.
Sul21 – O que te parece esse início de governo Witzel? As informações que chegam são de falas de jogar um míssil na favela, ‘tiro na cabecinha’, etc.
Anielle Franco: A gente tem muito medo. Eu, por exemplo, dou aula na Maré. Só neste ano, a gente já foi interrompido dando aula umas quatro ou cinco vezes por operações policiais. São operações quase sempre em horário de entrada ou saída das crianças. É muito assustador, me parece um pouco de terrorismo, parece muito ódio aos favelados. Eu sei que é óbvio que tem que combater a violência, mas não é dessa maneira. Não é entrando, atirando e matando morador que a gente vai resolver os problemas da nossa cidade e do nosso estado.
Sul21 – Mesmo nas favelas do Rio de Janeiro, o Bolsonaro ganhou as eleições. O Witzel também. Tu acha que quando esse discurso fica escancarado, escrachado, abre também um espaço para que a população diga que não está dando certo e que é preciso fazer uma política de segurança diferente? Não surge um espaço para fazer diferente dessa guerra às drogas que é o status quo há décadas?
Anielle Franco: Sim, acho que devemos pensar. Por exemplo, lá no Rio, a gente está batendo muito na tecla do diálogo, porque tanta gente votou neles e quando queríamos chegar perto para dialogar e falar sobre isso, ‘vamos sentar aqui e ver essa política pública’, eles não aceitavam. Hoje, a gente já consegue ter esse diálogo, já consigo falar com pessoas que foram eleitoras dele. Até do próprio Witzel, que foi muito forte em igrejas católicas e evangélicas do Rio. Muito forte. E a gente acompanhou muito isso. Por ir à missa nos domingos, a gente acaba dialogando com pessoas que votaram nele e hoje discordam daquilo ali. Dizem: ‘Gente, ele nunca anunciou que ia entrar e mirar na cabecinha’. Então, agora abre espaço para a gente dialogar, para poder pensar em mudança de postura até dessa eleitora ou eleitor que votou nele. A gente só vai conseguir mudar ou evoluir se conseguir ter esse diálogo com essa galera e tentar trazer para o nosso lado, mostrando que isso é puro terror. Não dá para continuar assim.
Sul21 – Tu ainda não se filiou a nenhum partido?
Anielle Franco: Vou me filiar ao PSOL agora em novembro.
Sul21 – O que motivou essa escolha?
Anielle Franco: Tiveram convites de outros partidos, mas não tem como. Eu vi a minha irmã se criar ali, tenho amigos dentro do partido, a gente militava pelo PSOL, embora a nossa primeira militância juntas foi pró-Lula, de carregar a bandeira do meu presidente. Mas, hoje, é 99% de chance de eu me filiar ao PSOL.