Angela Davis: “Lutar contra prisões em massa e pena de morte é lutar contra escravidão dos tempos modernos”

Angela y Fania Davis

Por Sarah van Gelder.*

Em entrevista concedida junto com a irmã, Fania Davis – uma das principais expoenteAngela e Fania Davis – Foto: Kristin Little/ Yes Magazine!s da justiça restaurativa nos EUA, ressalta a necessidade de se criar um processo para ‘curar os traumas raciais que continuam sendo reencenados’

Angela Davis e sua irmã Fania Davis lutavam por justiça social muito antes de boa parte dos ativistas atuais terem nascido. Desde a infância na segregada Birmingham, Alabama — onde os amigos foram vítimas do bombardeio à Igreja Batista da 16th Street —, passando pela militância no Panteras Negras e no Partido Comunista e a luta contra o complexo prisional-industrial. Desde sempre a vida das duas esteve centrada na defesa dos direitos dos afro-americanos.

“Assumimos uma luta que nos vincula aos abolicionistas que se opuseram à escravidão. As instituições da prisão e da pena de morte são os exemplos mais óbvios de como a escravidão continua a assombrar nossa sociedade”, diz Angela ao explicar a importância do abolicionismo penal, a nova trincheira das irmãs.

Fania lembra que “abolimos a instituição da escravidão, mas ela foi substituída pela vassalagem, pelas leis Jim Crow[1], pelos linchamentos, pelas prisões privadas. A essência da violência racial e do trauma que vimos na instituição da escravidão e nas instituições subsequentes continuam até hoje sob a forma do encarceramento em massa e práticas policiais letais”.

Ambas defendem a chamada justiça restaurativa, que consiste em um paradigma não punitivo com o objetivo de reparar os danos causados às partes envolvidos e a reconstrução das relações rompidas. Nesta entrevista, elas falam também sobre como a mudança radical que defendem hoje passa por níveis subjetivos e de cuidado consigo e com o próprio corpo.

Vocês duas se tornaram ativistas ainda muito jovens. Gostaria de saber como o ativismo se desenvolveu a partir de sua vida familiar, e quais as conversas que vocês tinham entre si sobre o assunto.

Fania Davis: Quando eu ainda era um bebê, minha família se mudou para uma vizinhança que antes era toda branca. A vizinhança passou a ser conhecida como Morro da Dinamite [“Dynamite Hill”] porque famílias negras que se mudavam para lá eram frequentemente atacadas pela Ku Klux Klan. Nossa casa nunca foi bombardeada, mas casas próximas às nossas foram.

Angela Davis: Fania provavelmente é muito jovem para se lembrar disso, mas eu me lembro de escutar barulhos estranhos do lado de fora da casa, meu pai ia então para o quarto e pegava o revólver na gaveta, saindo em seguida para ver se a Ku Klux Klan havia colocado uma bomba no meio dos arbustos. Isto fazia parte do nosso dia-a-dia.

Muitas pessoas presumem que o bombardeio da Igreja Batista da 16th Street foi um evento único, mas na verdade havia bombardeios e incêndios o tempo todo. Quando eu tinha 11 anos e Fania tinha sete, a igreja à qual íamos, a Primeira Igreja Congregacional, foi queimWikicommonsada. Eu era membro de um grupo de discussão inter-racial na igreja, e foi por causa dele que ela foi incendiada.

Angela na UCLA

Angela Davis (centro) na UCLA para fazer sua primeira leitura pública

Crescemos em uma atmosfera de terror. E hoje, com toda a discussão existente sobre terrorismo, acho importante reconhecer que houve reinos de terror ao longo de todo o século XX.

Onde você estava quando soube do bombardeio da Igreja Batista da 16th Street?

Fania: Eu estava no colégio em Glen Ridge, Nova Jersey. E eu não aceitava desaforo de ninguém. Eu sempre falava de James Baldwin e Malcolm X, e sempre trazia para a discussão o tema da igualdade e justiça racial.

Eu ouvi falar do bombardeio quando minha mãe me disse que a mãe de uma das garotas ligou para ela, porque eram amigas próximas, e disse: “Bombardearam a igreja. Venha comigo para buscarmos Carole, porque ela estava na igreja hoje”. E elas foram até lá juntas, de carro, e descobriram que Carole não estava lá, ela havia sido… não havia mais ninguém.  Eu acho que isso alimentou o fogo, o fogo da revolta, e fez com que eu me determinasse a lutar contra a injustiça com toda a energia e a força que pudesse encontrar.

Você poderia me dizer como era a vida cotidiana quando você era pequena?

Angela: Nós íamos a escolas, bibliotecas e igrejas segregadas. Todos os lugares que frequentávamos eram segregados!

Fania: É claro, de certa forma era algo bom que a comunidade negra estivesse tão concentrada.

Quando saíamos de nossas casas, de nossas comunidades, a mensagem que a sociedade passava era a de que éramos inferiores: Vocês não merecem ir ao parque de diversão por causa da cor de sua pele, não merecem sentar para comer quando vão fazer compras no centro da cidade. Vocês precisam se sentar no fundo do ônibus.

Ao mesmo tempo, em casa, nossa mãe sempre nos dizia: “Não ouça o que eles dizem! Não deixe que ninguém diga a você que você é inferior”.

E foi então que eu, ainda que tivesse apenas 10 anos, comecei a ir a banheiros para pessoas brancas e a beber nos bebedouros das pessoas brancas, porque desde muito jovem eu tinha um forte discernimento do que era certo ou errado. Minha mãe estava fazendo compras em algum lugar na loja e, quando percebia, já haviam chamado a polícia.

Vamos falar agora do momento em que ficou claro que você, Angela, precisaria de todo um movimento que a defendesse. E Fania, você acabou passando anos defendendo-a.

Fania: Sim, mais ou menos dois anos.

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Manifestação em Boston, em 1970 pela liberdade de Angela Davis| Foto: Wikicommons

Angela: Em 1969, eu foi demitida de meu cargo no departamento de Filosofia da UCLA. Foi aí que os problemas começaram, e eu era ameaçada todos os dias. Eu estava sendo atacada unicamente por ser filiada ao Partido Comunista.

Fania: Angela já estava envolvida no ativismo pelos direitos dos presidiários há muito tempo, liderando manifestações em todo o Estado. E então, virou manchete de todos os noticiários: “Professora Comunista Expulsa da UCLA”, “Militante Black Power Radical”, este tipo de coisa.

Angela: Então, em agosto de 1970, fui acusada de assassinato, sequestro e conspiração. Então, tive de me tornar clandestina. Eu fui para Chicago, em seguida Nova York e, depois, Flórida, e acabei sendo finalmente presa em Nova York em outubro. Foi enquanto eu era clandestina que a campanha começou realmente a se desenvolver.

Então, Fania, quando você passou a se focar em apoiar a causa de sua irmã?

Fania: Na noite em que saí de Cuba, descobri que ela havia sido presa. Então, em vez de ir para casa na Califórnia, eu imediatamente fui para onde Angela estava, na Casa de Detenção Feminina em Greenwich Village.

Angela: Meus amigos e camaradas começaram então a arquitetar a campanha. Assim que fui presa e extraditada, todos foram para a Área da Baía de São Francisco.

Éramos ativos no Partido Comunista e, qualquer que fosse a crítica que se tivesse ao Partido Comunista, o fato é que poderíamos ir a qualquer lugar no mundo e encontrar pessoas com quem teríamos algum tipo de afinidade, e elas nos receberiam.

O partido esteve no centro da organização da minha liberação, e o movimento ressonou entre estudantes no campus e pessoas relacionadas à igreja.
Isto aconteceu no mundo inteiro. Toda vez que eu visito um lugar pela primeira vez, eu sempre acabo agradecendo a alguém que me diz: “Nós estávamos envolvidos no seu caso”.

Você sabia que estava recebendo este tipo de apoio?

Angela: Sabia e não sabia. Eu sabia abstratamente, mas foi Fania quem viajou e testemunhou tudo isso.

Fania: Sim, eu me dirigi a 60 mil pessoas na França e a 20 mil em Roma, Londres, na Alemanha Oriental e Ocidental, no mundo todo, e testemunhando este movimento gigantesco pela liberdade de Angela.

Angela: Foi uma época empolgante porque as pessoas realmente acreditavam que mudanças revolucionárias eram possíveis. Os países se tornavam independentes, os movimentos de emancipação estavam em curso, e havia esperança em todo o mundo de que colocaríamos um fim no capitalismo. Eu acho que tive sorte de ter recebido atenção em uma conjuntura na qual tantas coisas estavam envolvidas.

Desde então, seus esforços se concentraram no sistema de justiça criminal. Vocês duas são a favor da abolição das prisões?

Grafite Angela

Grafite de Angela Davis no Museu de arte contemporânea ‘Demeure du Chaos’, na França Imagem: Wikicommons

Angela: Ah, definitivamente. E é empolgante ver a ideia da abolição sendo amplamente recebida não apenas como uma forma de lidar com o encarceramento excessivo, mas também como uma forma de imaginar uma sociedade diferente que não esteja baseada em esforços repressivos de violência e encarceramento.

A abolição tem sua origem na obra de W.E.B. Du Bois e de que a própria ideia da escravidão foi desconstruída, mas o meio de lidar com as consequências desta instituição nunca foram desenvolvidos. No final do século XIX, houve um breve período de reconstrução radical que nos mostra a promessa do que poderia ter sido. Os negros passar a conseguir algum poder econômico, fundar jornais e qualquer tipo de negócio. Mas tudo isso foi destruído com a suspensão da Reconstrução e o crescimento da Ku Klux Klan nos anos 80 do século XIX.

Fania: Sim, abolimos a instituição da escravidão, mas ela foi substituída pela vassalagem, por Jim Crow, pelos linchamentos, pelas prisões privadas. A essência da violência racial e do trauma que vimos na instituição da escravidão e nas instituições subsequentes continuam até hoje sob a forma do encarceramento em massa e práticas policiais letais.

Angela: Estamos assumindo uma luta que nos vincula aos abolicionistas que se opuseram à escravidão, e as instituições da prisão e da pena de morte são os exemplos mais óbvios de como a escravidão continua a assombrar nossa sociedade. Portanto, não é apenas uma questão de se livrar do encarceramento em massa, embora isso seja importante. Trata-se de transformar a sociedade toda.

Como a justiça restaurativa pode ajudar com esta transformação?

Fania: Muita gente acha que justiça restaurativa pode lidar apenas com dano interpessoal, e é muito bem-sucedida nisso. Mas o modelo da verdade e reconciliação deve lidar com o dano massivo, curar as feridas da violência estrutural. Vimos isto funcionando em cerca de 40 nações diferentes; a mais conhecida delas é, é claro, a Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul.

Na África do Sul, a comissão convidou vítimas do apartheid para testemunhar e, pela primeira vez, contaram suas históricas publicamente. Isto foi mostrado em todas as estações de rádio, em todos os jornais, e esteve na televisão, para que as pessoas chegassem em casa, ligassem a TV e aprendessem coisas sobre o apartheid das quais nunca antes tinham ouvido falar. Houve uma discussão em escala nacional intensa, e as pessoas mais danificadas se sentiram vingadas de alguma forma.

Este tipo de coisa também pode acontecer aqui, por meio de um processo de verdade e reconciliação. Além deste tipo de estrutura de comissão de audiência, poderia haver círculos de discussão a nível local, entre, por exemplo, pessoas que foram vítimas da violência e pessoas que causaram dano.

ponto de ônibus para negro Carolina do sul

Ponto de ônibus reservado para negros na Carolina do Sul; imagem de 1940. Wikicommons

Angela: Como se pode imaginar a responsabilização de alguém que representa o Estado e cometeu atos indescritíveis de violência? Se contarmos simplesmente com o método antigo de mandá-lo para a prisão ou para a pena de morte, nós reproduzimos o mesmo processo que estamos tentando combater.
Então talvez possamos falar de justiça restaurativa de maneira mais ampla? Muitas das campanhas exigiam inicialmente que os policiais fossem imputados, e a mim me parece que podemos aprender com a justiça restaurativa e pensar em alternativas.

Fania, você me disse, quando conversamos no ano passado, que seu trabalho com a justiça restaurativa na verdade começou quando você passou por um período de transição pessoal em meados dos anos 90, quando você decidiu mudar de estratégia.

Fania: Eu cheguei a um ponto em que não conseguia mais manter o equilíbrio por causa de toda a raiva, as brigas, os modos hiper-masculinos que tive que adotar para me tornar uma advogada bem-sucedida. E também por causa dos 30 anos em que tive de manter uma postura extremamente agressiva como ativista, sendo contra isto ou aquilo, lutando por isto ou aquilo.

Intuitivamente, eu percebi que precisava de uma infusão de energias mais femininas, espirituais, criativas e curativas para reconquistar o equilíbrio.

Como isso afetou a relação de vocês duas como irmãs?

Fania: Durante um período, exatamente no meio desse processo, o relacionamento entre minha irmã e eu ficou um pouco comprometido por cerca de um ano, em parte por causa desta transformação. Foi muito doloroso. Ao mesmo tempo, eu finalmente entendi que isso precisava acontecer porque eu estava forjando meu próprio destino, independentemente dela. Eu sempre fui a irmã mais nova que seguia de perto os passos dela.Sim, e agora somos próximas novamente. E ela está ficando mais espiritualizada.

Fania ativista justiça restaurativa EUA

Fania é uma das principais ativistas pela justiça restaurativa nos EUA  Reprodução/Facebook

Angela: Acho que nossa noção do que conta como mudança radical mudou ao longo do tempo. O cuidado consigo mesma, a cura e a atenção ao corpo, a dimensão espiritual; tudo isso é parte das lutas radicais pela justiça social. Não era assim antes.

E eu acho que agora estamos pensando profundamente sobre a conexão entre vida interior e o que acontece no mundo social. Mesmo aqueles que estão lutando contra a violência do Estado frequentemente incorporam impulsos baseados na violência em sua relação com outras pessoas.

Fania: Quando eu aprendi sobre justiça restaurativa, isto foi uma verdadeira epifania porque integrava pela primeira vez a advogada, a guerreira e a curandeira dentro de mim.

A questão agora é como vamos criar um processo que una a parte da cura com a parte da justiça social e racial, como curamos os traumas raciais que continuam sendo reencenados.

Angela: Eu acho que a justiça restaurativa é realmente uma dimensão importante do processo de viver da forma como gostaríamos de viver no futuro. Incorporando-a.

Precisamos imaginar este tipo de sociedade em que queremos viver. Não precisamos simplesmente presumir que, de alguma forma, magicamente, vamos criar uma nova sociedade na qual haverá um novo tipo de seres humanos. Não, precisamos começar o processo de criar a sociedade em que queremos viver agora.

[1] As chamadas leis de Jim Crow vigoraram entre 1876 e 1965 nos Estados ao sul dos Estados Unidos. Elas impunham o regime de segregação e, entre as medidas mais importantes, exigiam que as escolas públicas e a maioria dos locais públicos (incluindo trens e ônibus) tivessem instalações separadas para brancos e negros.

Traduzido:  Henrique Mendes

*Publicado originalmente em inglês pelo site Yes Magazine!

Fonte: Opera Mundi

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