Análise: “A crise da Ciência e Pesquisa no Brasil é um projeto”: os impactos das restrições

Recomposição orçamentária emergencial da Capes demonstra a falta de prioridade e compromisso com os recursos

O trabalho de pesquisa é construído em sua maioria no âmbito solitário, nas bibliotecas, laboratórios e revistas científicas – Foto: Ascom/UFPR

Por Angelina Moreno.

Após o “apagão” do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que deixou cientistas sem acesso à plataforma currículo lattes no mês de julho de 2021, inicia-se em outubro um novo retrocesso para a área de Ciência e Pesquisa no país.

É ainda surpreendente a tímida visibilidade dada pela imprensa quanto ao corte de 92% dos recursos destinados à ciência pelo governo Bolsonaro e suas implicações futuras, que ameaçam inicialmente o Edital Universal da agência de fomento à pesquisa CNPq, considerado um dos editais de fomento à pesquisa mais relevantes do país, além da suspensão de pagamento dos bolsistas PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência) e do programa Residência pedagógica.

Esse novo capítulo se estende agora com esforços da comunidade acadêmica e parte civil, para a imediata recomposição orçamentária, e que, se não realizada, prevê cenários assustadores para a pesquisa no contexto nacional.

Em 7 de outubro, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) divulgou uma nota de esclarecimento no site governamental relativo ao atraso dos pagamentos dos bolsistas vinculados aos programas PIBID e de Residência Pedagógica, no qual informou que os pagamentos seriam realizados nos próximos dias, sem precisar uma data específica.

Como justificativa, a nota explica que “os recursos necessários já foram liberados pelo governo federal, restando, entretanto, a necessidade de aprovação do Projeto de Lei 17/2021, que já está em trâmite na Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional”.

Além de se tratar um completo desrespeito com os bolsistas, pela ausência de verbas e de planejamento com esta categoria, a recomposição orçamentária emergencial do programa demonstra a falta de prioridade e compromisso com os recursos da educação, pesquisa, docência e ciência. Não há previsão oficial de recomposição do orçamento, assim como não há data prevista para a votação.

Ao sancionar lei que retira R$ 690 milhões dos recursos voltados para pesquisa no país, o corte de verbas para a ciência coloca em risco também o futuro da agência de fomento à pesquisa CNPq.

A alteração no orçamento ocorreu a pedido do Ministério da Economia, de forma que os recursos foram realocados para a produção de radiofármacos, remédios usualmente utilizados no tratamento de pacientes com câncer e que se encontram com produção parada por ausência de verba.

É importante ainda observar que o corte dos recursos foi encaminhado pelo próprio governo, com a alteração do ofício da PLN 16/21, composta pelos ministros da Economia e da Secretaria de Governo e que liberaram os valores de R$ 690 milhões ao CNPq. A alteração realizada no PLN 16/2021 manteve apenas os recursos do Ipen, que totalizaria o valor de R$ 63 milhões.

É de espantar, contudo, que no meio de uma pandemia mundial, em que as palavras “vacina”, “imunização”, “pesquisa”, “variante”, “imunidade de rebanho” tenham agora se tornado parte do nosso léxico diário, ao mesmo tempo não se cobre as discussões sobre reajustes e investimentos públicos de pesquisa, em um momento tão fundamental de nossa história contemporânea.

Talvez, esta ausência apresente algumas fundamentações que não são amplamente questionadas quando discutimos sobre investimentos públicos, como por exemplo, sobre a defasagem dos valores das bolsas e o que elas significam de forma prática.

Lembremos que a remuneração intitulada como “bolsa”, vinculada ao pesquisador e aos programas de fomento à pesquisa das universidades, pode dar a ilusão de que estamos falando de um privilégio concedido a estudantes com a finalidade que eles estudem.

A realidade é que a bolsa se trata de uma solução do governo federal para comprar força de trabalho bem qualificada e de forma barateada, ao invés de oferecer um salário com direitos trabalhistas. As próprias bolsas de Iniciação Científica, que há muitos anos apresentam valores desatualizados com a inflação galopante brasileira, não são condizentes para a atuação de dedicação exclusiva, requisitada pelas agências de fomento á pesquisa.

Considerando a ausência de reajustes periódicos dos fomentos oferecidos para a área de pesquisa, é preocupante como os pesquisadores do país são tratados com tanto descaso. Atualmente, as principais bolsas de iniciação científica orbitam entre os valores de R$  400 a  R$695, a depender da agência de fomento (se vinculada ao CNPq ou a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado).

Fato é que, apresentando vínculo que requer dedicação exclusiva, a bolsa de iniciação científica ilustra em valores e em termos práticos, o nível de precarização que os pesquisadores se encontram no país em um momento que essa área nunca foi tão importante.

Contudo, culpabilizar apenas a imprensa na tratativa de mais um capítulo lamentável no desmonte da Ciência do país, é inadequado. Outra parcela reside na letargia, lenta e sem barulho, de mobilização (ou mais especificamente, na falta dela) de uma classe de trabalhadores que não apresentam cultura de reivindicação e de ação coletiva.

O trabalho de pesquisa é construído em sua maioria no âmbito solitário, nas bibliotecas, laboratórios e revistas científicas, do ambiente acadêmico para os pares de área, sem transpassar os muros das universidades, e que raramente constrói uma ponte de conscientização sobre suas práticas e resultados com a sociedade civil.

O silêncio dos pesquisadores, que observam estupefatos o desmoronamento de seus direitos e insumos serem cortados, deve-se a um coletivo que precisa pagar aluguel, cuidar de suas trajetórias acadêmicas, atualizar com cuidado seus currículos lattes com certificados, publicar em revistas de alto padrão científico, mas sem publicizar os bastidores de suas condições de trabalho precarizado e necessidades individuais que há muito não são contempladas.

Embora fosse realizada uma paralisação de atividades em parte das universidades públicas no final do mês de outubro, o alcance da mobilização é pontual para o tamanho da categoria afetada e seus efeitos a longo prazo.

Considerando o número de bolsistas vinculados aos dois programas concomitante, estima-se que 60 mil professores foram afetados em todo o país pelo não pagamento de suas respectivas bolsas. Após atravessar uma pandemia, em que os investimentos de C&T demonstraram-se essenciais para a área de pesquisa e produção de vacinas, o contexto brasileiro vai de contramão as tendências de investimentos mundiais em Pesquisa e Educação.

Segundo relatório da Unesco, entre os anos de 2014 a 2018, a porcentagem de investimento do PIB brasileiro em ciência oscilou entre 1,26% percentuais, enquanto a média mundial esteve com 1,79%. Com as novas sanções e cortes, estima-se que a verba destinada para Pesquisa, Ciência e Tecnologia apresenta apenas 0,00069% percentuais de investimentos do PIB.

Além do retrocesso dos investimentos na área de pesquisa que compromete a manutenção das bolsas vigentes, somente a chamada universal do CNPq lançada no início de setembro previa a utilização de R$ 250 milhões para pesquisadores de todas as áreas.

Os cortes orçamentários também ameaçam a criação do Centro Nacional de Vacinas da UFMG, voltado principalmente ao combate da malária, covid-19, zika, chikungunya, dengue e leishmaniose.

 A expectativa era a de que com a criação desse centro fosse possível realizar uma produção nacional de insumos, sem necessitar importar vacinas de laboratórios estrangeiros.

Em um país que apresenta mais de 600 mil mortos por covid-19, fora os números de vítimas subnotificadas e que uma parcela significativa passou a procurar comida no lixo e implorar por restos de ossos em frigoríficos, afetados pela inflação e níveis de desemprego recorde, o avanço de uma nova onda pandêmica poderia afundar ainda mais economicamente o contexto nacional, que dependeu em grande parte no último um ano e meio de pandemia, enormemente de laboratórios estrangeiros para importar e fabricar insumos de vacina, EPIS, e máscaras PFF2.

No dia 8 de outubro a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e a Academia Nacional de Medicina (ANM) publicaram nota informando que estavam tomando todas as “medidas cabíveis” para impedir o trâmite de desvio dos recursos, em que alegam que a retenção de recursos da Ciência para a quitação da dívida pública seria um trâmite ilegal.

Complementar a este contexto, R$ 2 bilhões do FNDCT continuam sem destino, o que descumpre a Lei Complementar nº 177/2021. Nesse sentido, Renato Janine Ribeiro, diretor da SBPC, ainda afirma que “O Brasil precisa de ciência, precisa de tecnologia, precisa de inovação, precisa de educação. E é inaceitável que os recursos destinados para o setor sejam desviados para outras funções, à revelia da legislação.”

Parafraseando a citação de Darcy Ribeiro, “A crise da educação no Brasil não é uma crise; É um projeto”. Serve também para nos alertar que a retirada dos recursos de fomento a pesquisa no país faz prelúdio a consequências desastrosas na saúde pública e no projeto nacional de autonomia a pesquisa. Para não somente citar a soberania nacional na produção de vacinas, insumos e manutenção da pesquisa em laboratórios, no plano individual, também ceifam sonhos e carreiras, nos desprotegendo de forma significativa para uma próxima pandemia.

*Angelina Moreno é doutora em Ciências Sociais (UNESP-FCLAr) e socióloga do trabalho (Unifesp). Pesquisadora pelo grupo de pesquisa Classes Sociais e Trabalho (GPCT) da Universidade Federal de São Paulo.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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