Por Victória Damasceno.
Banido em 75 países, o amianto é considerado uma substância cancerígena pela Organização Mundial da Saúde. Estimativas indicam que mais de 100 mil trabalhadores no mundo morrem por ano pela exposição ao minério e suas fibras. No Brasil, a recomendação internacional contra o uso do minério esbarra na pressão de agentes econômicos. A cadeia do amianto impõe um contato direto com a substância a mais de mil trabalhadores.
Na Justiça, o embate entre a saúde no trabalho e a preservação da cadeia produtiva refletiu na divisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal sobre o uso ou não da substância. Uma recente decisão da Corte sobre a regulamentação do amianto ou asbesto do tipo crisotila criou um vácuo jurídico no que diz respeito à constitucionalidade do 2º artigo da Lei Federal 9055/95 que permitia a extração, industrialização, comercialização e distribuição do minério.
Na ocasião, o tribunal julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), que visava impugnar a lei de banimento de qualquer tipo de amianto em São Paulo sob o argumento de o Estado ter invadido a competência da União ao legislar sobre a regulamentação.
Em uma votação apertada, por 5 votos a 4, a maioria da Corte também julgou ser inconstitucional a lei federal que regulamenta o uso da substância no Brasil. A maioria não foi suficiente para a invalidação da lei, pois declarações de inconstitucionalidade dependem do voto de seis ministros.
A proibição do amianto no País, e não apenas em São Paulo, pode ocorrer por outro caminho. Ao passo que validou a constitucionalidade da lei estadual que proíbe o minério, os ministros da Corte declararam incidentalmente a inconstitucionalidade do dispositivo federal que permitia a cadeia produtiva do amianto crisotila no País. A celeuma jurídica deixa, porém, dúvida sobre o futuro do uso do amianto no Brasil.
Contra a lei federal, o ministro Celso de Mello explicou durante seu voto que os usos previstos do amianto ferem diversos dispositivos constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o meio ambiente e a preservação da saúde.
Ao final da sessão, o ministro afirmou que o emprego do amianto “está, sim, vedado, porque o STF excluiu do sistema de direito positivo o artigo da lei federal”. O decano acrescentou ainda que o Tribunal “excluiu do universo jurídico nacional uma regra que permitia, ainda que mediante o uso controlado, o emprego do amianto”.
“Essa decisão vale para o Estado de São Paulo, que preserva a legislação paulista. Mas, ao mesmo tempo, representa um importantíssimo precedente do STF a respeito da mesma matéria que vai ser debatida a respeito da legislação fluminense”, concluiu.
A presença de duas leis de regulação, porém, pode gerar um cenário de “anomia”, diz o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas Fernando Leal. Para ele, não está claro se o dispositivo federal possui caráter vinculante e eficácia em relação às demais legislações sobre o mesmo tema. “A lei federal teria como papel central estabelecer as diretrizes gerais para a regulação, fornecendo assim uma moldura dentro da qual os estados poderiam atuar”, afirma.
Mesmo com a decisão, as empresas com instalações nos estados que não possuem a proibição do minério seguem funcionando normalmente. Para o professor, onde não existem leis estaduais para a regulação do amianto há incerteza. No entanto, a Corte não parece estar propensa a aceitar leis que permitam o uso do asbesto.
“O cenário paulista dá espaço para que leis semelhantes tenham sua constitucionalidade aprovada. Mas o fato da declaração em relação a lei federal ser incidental, não me parece suficiente para que o Tribunal permita que as leis estaduais que reproduzam a federal tenham o mesmo parecer incidental”, completa.
Leal ainda considera a possibilidade de outros mecanismos regulatórios que podem dar margem à negociação com a Corte, como a substituição progressiva. Na mesma semana, a alternativa tomou forma com o decreto do prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, que dispõe sobre a substituição progressiva de produtos que contenham o asbesto em sua composição.
Dentre as trinta modalidades do amianto, apenas uma era permitida até então. O amianto do tipo crisotila tem utilidade em quase três mil produtos, desde a construção civil até a indústria automobilística. No Brasil, é usado principalmente na indústria do fibrocimento, como em telhas, placas de revestimento e caixas d’água.
Apesar da grande utilidade, o asbesto já foi banido em 75 países. A decisão da Corte responde à tendência mundial e à recomendação da Organização Mundial da Saúde(OMS) que coloca o minério no principal grupo de substâncias cancerígenas. A estimativa no mundo é que cerca de 125 milhões de trabalhadores estão expostos ao amianto e 107 mil morrem por ano em decorrência de doenças relacionadas à exposição ao minério e suas fibras.
A regulamentação existente na lei federal previa o uso moderado da substância, com “limites de tolerância fixados na legislação” para a preservação da saúde do trabalhador. Por outro lado, o médico pneumologista Hermano Castro, que se dedica ao estudo das doenças causadas pela exposição ao minério, afirma não existir uso seguro do amianto.
O especialista explica que ao tratar substâncias consideradas cancerígenas, qualquer exposição pode gerar alterações que levam ao câncer, independentemente da dose inalada pelos trabalhadores ou usuários. “Existem intensidades diferentes de exposição que podem dar uma certa seguridade em algum ponto da cadeia produtiva, mas o uso seguro seria somente se fosse garantido um nível zero de exposição”, explica.
Castro fala ainda sobre o passivo ambiental que será deixado pela substância devido às décadas de exploração em larga escala que foram realizadas no Brasil. “Será necessário encontrar formas de se desfazer dos produtos que contenham asbesto, o que significa ainda que o risco de adoecimento segue por mais algumas décadas”, concluiu o professor ao explicar que grande parte das doenças provenientes das fibras da substância podem se manifestar anos depois do contato.
Neoplasias malignas das pleura, placas pleurais e pneumoconiose são algumas das sequelas recorrentes aos trabalhadores. Segundo a OMS, a exposição ao amianto, ainda que do tipo crisotila, aumenta o risco de câncer de pulmão, mesotelioma e asbestose, além de não haver limite seguro para exposição.
Ainda que comprovados os danos causados à saúde do trabalhador e dos usuários, segundo o Ministério do Trabalho, o Brasil ainda conta com 46 empresas que dependem da produção e comercialização da substância.
O principal grupo empregador do ramo é a Eternit, uma companhia de capital aberto que possui seis empresas divididas entre os ramos da mineração e da construção civil. À ela pertence a mineradora Sama, que está entre as três maiores produtoras de crisotila do mundo.
De acordo com dados da Eternit, a cadeia do asbesto gera cerca de 170 mil postos de trabalho no País, “incluindo trabalhadores da mineração, das indústrias do setor de fibrocimento em 17 fábricas de 10 estados brasileiros e rede de distribuição”. Dados do Ministério do Trabalho, porém, rebatem essa informação. No Cadastro de Empresas Regulares de Amianto e Asbesto, as empresas públicas e privadas que produzem, utilizam ou comercializam fibras de amianto somam 7102 trabalhadores, dentre eles 1277 que possuem contato direto com o minério.
O grupo está presente no mercado desde 1940, e possui histórico de condenações milionárias no currículo. Em 2016, empresa foi condenada a pagar mais de R$400 milhões de indenizações por expor trabalhadores ao amianto. O valor devido à filhos e viúvas de trabalhadores mortos, envolvia a fábrica que atuava em Osasco, na Grande São Paulo, uma das maiores do grupo empresarial.
A mais recente condenação ocorreu no último dia 18, e diz respeito à mineradora Sama, subsidiária da Eternit, condenada pela Justiça Federal ao pagamento de R$500 milhões para o tratamento de contaminados com amianto.
A decisão remete à exploração ocorrida na jazida São Félix do Amianto, localizada em Bom Jesus da Serra, entre os anos de 1940 de 1967. Em ação conjunta, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado da Bahia alegaram que no encerramento das atividades de extração não foram tomadas medidas satisfatórias para a mitigação dos efeitos do mineral nos habitantes da região, deixando resíduos que contaminaram um número indeterminado de pessoas, além dos trabalhadores da mina.
O procurador Roberto Vieira, do Ministério Público Federal na Bahia, foi um dos responsáveis pelo caso. Vieira explica que na época da exploração na jazida baiana ainda não haviam normas de segurança para o trabalhador, mas que mesmo após a regulamentação ainda existem dejetos do amianto de variados tipos encontrados nas casas e nas estradas da cidade.
De acordo com a Norma Regulatória para Atividades e Explorações Insalubres do Ministério do Trabalho, as empresas com inscrição no Cadastro das Empresas Regulares de Amianto/Asbesto, como a Sama, são responsáveis pela remoção total de resíduos que contenham asbesto, com o objetivo de garantir segurança aos trabalhadores e à população ao limitar o desprendimento da poeira do minério no ar.
“Todas as pessoas que apresentaram moléstias catalogadas na medicina como vinculadas à exposição ao amianto, terão direito à indenização de 150 mil reais, à tratamento de saúde e plano de saúde”, conta.
O procurador explica ainda que a defesa da Sama estava baseada no encerramento das suas atividades em Bom Jesus da Serra em 1970, mas está presente até os dias de hoje. “A empresa ainda possui um funcionário que está lá às vezes, e contribui financeiramente para as campanhas políticas na região.”
A mineradora é a atual responsável pela exploração do amianto na única mina de crisotila em atividade no Brasil, localizada na cidade de Minaçu, interior de Goiás. Até 1997, a Sama tinha a maioria de suas ações pertencentes ao Grupo Brasilit, até então um dos principais produtores do minério no País, e dividia a extração com a Eternit.
Seguindo a tendência de países europeus como a Noruega e a França, pioneiros na regulamentação do amianto e atenta ao indicativo de proibição na União Europeia ao fim dos anos 90, a Brasilit começou um processo de substituição progressiva, abandonando completamente a cadeia produtiva do asbesto em 2002.
A iniciativa se adiantou às possíveis proibições que poderiam acontecer no Brasil. A empresa hoje trabalha com uma alternativa à exploração e transformação do asbesto para a indústria de construção civil, o fio de polipolineno. O fio sintético é um dos principais substitutos do amianto no mundo, e segundo a OMS é classificados como não cancerígenos, além de possuir recomendação da Anvisa.
Mesmo com 15 anos sem o manuseio do mineral em suas fábricas, a Brasilit deixa um legado de trabalhadores que podem ainda apresentar doenças decorrentes à exposição ao amianto. Segundo dados do SUS, doenças como o mesotelioma pode demorar até 50 anos para me manifestar, além de levar o paciente à morte em apenas um ano, por se tratar de um tumor maligno e incurável.
Para Fernanda Giannasi, fundadora da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto (Abrea), é “inconcebível” continuar com o uso de um produto que possui tantos malefícios à saúde do trabalhador. “O que se espera agora é a paralisação das atividades que envolvam o amianto no Brasil”, explica ao representar a Abrea.
—
Fonte: Carta Capital.