Por Marsílea Gombata. Em entrevista a Opera Mundi, Álvaro García Linera lembra como o país conseguiu incluir indígenas na máquina estatal e clama por maior integração regional.
A Bolívia de hoje seria impensável há dez anos. Com mais de 60% da população indígena, teve sua história marcada pela segregação entre brancos e índios, que tinham pouca ou nenhuma representação nas esferas estatais. Hoje, 48% dos funcionários públicos são indígenas. No Congresso há uma bancada de parlamentares indígenas, e nas assembleias departamentais muitos foram eleitos segundo normas tradicionais dos povos indígenas. “Hoje na Bolívia não apenas há um presidente indígena, como também há um poder indígena”, orgulha-se em dizer o número dois do governo, Álvaro García Linera, em entrevista a Opera Mundi. Considerado o ideólogo por trás do chamado Estado plurinacional boliviano, o intelectual marxista e autor do livro A Potência Plebeia (Boitempo Editorial), no qual busca conciliar o pensamento materialista dialético a influências indígenas, ressalta que não basta apenas reconhecer os indígenas, é preciso “permitir que sua própria identidade atravesse a estatalidade boliviana”.
Questionado se o caráter emancipatório da América Latina como um todo se restringe à questão econômica, o vice-presidente boliviano se entusiasma em dizer que o governo de Evo Morales se esforça para não medir os avanços sociais enquanto consumo, mas por oportunidades, e ressalta: precisamos pensar enquanto região para termos peso no cenário internacional. “Até não atuarmos como continente, seremos irrelevantes. A integração regional é uma obrigatoriedade do século 21”, alerta. “Ou a globalização passará por cima de nossas cabeças sem que a gente se dê conta.”
Opera Mundi: Dez anos depois da chegada de Evo Morales ao poder, poderíamos dizer que a Bolívia é hoje outro país? Os indígenas, de fato, estão em posições capazes de transformar sua história?
Álvaro García Linera: Houve uma transformação radical do Estado, da economia e da própria sociedade. A mudança mais visível, mais notória e transcendente é a presença dos povos indígenas como sujeitos de poder. Até a chegada do presidente Evo os povos indígenas, que constituíam mais da metade da população, não tinham reconhecimento nem podiam ocupar cargos de decisão no âmbito estatal. Não porque a lei proibia isso, mas porque existiam diferentes mecanismos invisíveis de segregação e marginalização. No sentido comum, o indígena era um estigma, uma desvalorização. Na sociedade, quanto mais branco e mais vínculo externo, maior acesso ao poder, maiores facilidades, maiores oportunidades. Quanto mais índio, menos possibilidades, menos facilidades, mais discriminação e marginalização. Hoje, na administração pública, 48% dos funcionários têm alguma identidade indígena. Isso era impossível antes. No Congresso, há uma bancada numerosíssima de representantes de povos indígenas. Temos nas assembleias departamentais não apenas representantes indígenas, mas também muitos deles eleitos segundo normas tradicionais dos povos indígenas. A Constituição reconheceu uma jurisdição e agora há a Justiça ordinária e a Justiça originária campesina. Há também a obrigatoriedade dos funcionários públicos de falar ao mínimo um idioma indígena além do castelhano e o reconhecimento de terras comunitárias. Então, não é somente no âmbito simbólico, na narrativa estatal, na parte educativa, no sistema judicial, no sistema politico, mas também no acesso à terra ou na transversalização do empoderamento dos povos indígenas. Hoje na Bolívia não apenas há um presidente indígena, como também há um poder indígena. A todo esse processo chamamos Estado plurinacional. Não é apenas reconhecer os indígenas e deixá-los de lado, mas reconhecê-los e permitir que sua própria identidade atravesse a estatalidade boliviana.
OM: O senhor gosta de lembrar que a Bolívia tem crescido uma média de 5% ao ano, além de ter conseguido elevar o salário mínimo de US$ 40 para US$ 240 e emancipado seus pobres para a classe média. No Brasil, apesar de milhares terem passado da pobreza para a classe média, há muitas críticas em relação ao tipo de classe média que se está criando. Isso ocorre na Bolívia?
AGL: Na Bolívia, 20% da população passaram para a classe média nos últimos oito anos. Mas de qual classe média estamos falando? De uma classe média definida pelo consumo, pela produção, pelas oportunidades? Aqueles que abandonaram a pobreza e passaram para a classe média melhoraram suas condições de vida, têm acesso a serviços básicos e a um ingresso mínimo que lhes permite satisfazer necessidades básicas. No caso da Bolívia, não se define somente por mais recursos para gastar, pelo consumo, mas por melhores oportunidades e serviços.
OM: A Bolívia conseguiu levar adiante uma política de estatização de seus hidrocarbonetos e foca hoje na soberania alimentar. Quais atores foi preciso se derrotar nessa caminhada e por que, em sua opinião, não conseguimos alcançar isso no Brasil, onde o agronegócio é tão presente no Congresso Nacional?
AGL: Entendemos soberania alimentar como a capacidade que tem um Estado para produzir por si mesmo os elementos principais da dieta de sua população. Estamos avançando, mas isso requer várias coisas. Em primeiro lugar, brigar com algumas empresas de agronegócios, que preferem produzir um só produto rentável no mercado internacional. Então, dizemos: “Muito bem, querem produzir um produto que é altamente rentável no mercado externo? Primeiro me garanta o abastecimento do mercado interno a bom preço e exporte o que quiser”. Em segundo lugar: “Precisa de mais crédito? Tem problemas de impostos e multas? Quer apoio creditício e reprogramação de suas multas? Então produza alimentos para o mercado interno. Se não quiser, não o faça, mas terá problemas com seus impostos, multas e créditos”. Tudo o que fazemos frente ao agronegócio é estabelecer um conjunto de incentivos. Que continuem produzindo para o mercado externo, e têm de fazê-lo porque isso traz divisas para o país, mas uma parte de suas atividades tem de se destinar ao mercado interno. A soberania alimentar não é uma medida fixa, é uma politica muito flexível, que requer permanentemente ajustes.
AGL: É importante que as pessoas saibam que a sociedade boliviana, desde tempos imemoriáveis, sempre foi marítima. Nossos ancestrais, antes dos espanhóis, combinavam a produção de altura (tubérculos), com a produção amazônica (mandioca, peixes e cacau), com os alimentos do mar. Mas esse fato histórico de milhões de anos se interrompe com a invasão de 1879 do Chile à Bolívia. Passaram-se 136 anos e esse ainda é um tema não solucionado e que não se resolverá até que a Bolívia recupere sua qualidade marítima. Ao longo do último século, sempre houve conversas entre chanceleres e presidentes. Mas quando vamos falar de um documento, não há. Com base nesses antecedentes, vamos ao tribunal para que essas propostas se convertam em realidade e pedimos que Chile e Bolívia sentem-se e dialoguem de boa fé sobre uma saída soberana ao Pacífico. Nós temos do nosso lado a história, a justiça, a razão, a força moral, e confiamos que isso nos dará um resultado positivo. Não vemos o Chile como inimigo, mas como vizinho e irmão. O que queremos é um benefício mútuo com o Chile, mas isso requer uma saída soberana ao mar.
OM: Há dez anos tínhamos na América Latina um movimento de integração regional, que hoje parece estagnado. Quais são as perspectivas futuras?
AGL: No horizonte, a integração continental é uma necessidade. O século 21 está marcado pelos grandes blocos regionais e pelos Estados continentais, como os EUA, Europa, China ou Rússia, epicentros da definição da geopolítica, da economia e dos usos estratégicos das matérias primas no mundo. A América Latina pode desempenhar esse papel. O Brasil é uma potência de 200 milhões de habitantes, mas, com a América Latina, somos 500 milhões. E todos juntos temos as maiores reservas de água doce no mundo, de gás e petróleo, de minerais e terras, além de gente jovem e bem informada. Há aí um poderio muito grande, mas se atuarmos como continente e não cada país por seu lado. Até não atuarmos como continente, seremos irrelevantes. A integração é uma obrigatoriedade do século 21. Estamos em um recuo, pequeno e temporal, mas temos de retomar com força esse horizonte. Ou a globalização passará por cima de nossas cabeças sem que a gente se dê conta.
OM: As operações entre Bolívia, Equador e Venezuela dentro da Alba são feitas através do sistema de pagamentos Sucre, cujo objetivo é substituir o dólar americano nas transações. No entanto, o próprio Equador tem sua economia dolarizada, e as moedas dos países da Alba têm pesos diferentes. Isso não reproduz condições desiguais?
AGL: O Sucre é uma tentativa de utilizar outro mecanismo de pagamento e transações entre Estados, e está avançando de maneira gradual, não obrigatória. Essa possibilidade é boa porque se colocássemos o uso obrigatório do Sucre poderia gerar problemas aos países. Há uns que têm maior disponibilidade de dólares, outros que não têm. Esse uso flexível tem nos permitido conhecer suas potencialidades e dificuldades. É ainda uma fórmula muito básica e restrita, mas que fala de uma alternativa. Em vez de transações desesperadas por buscar dólares, simplesmente se faz o acordo entre bancos centrais. Eu posso, então, pagar em bolivianos e vocês, em real. E é o banco central que equaliza essas transferências internas. É um processo longo, não me assusta não ter avançado mais rápido. O uso de novos símbolos monetários ou mecanismos de comércio internacional requer provas e correções para que ninguém sinta que está perdendo e até todos sentirem ser uma boa transação. Sou otimista e creio que o uso gradual, moderado e flexível possa ser uma alternativa de comércio entre nossos povos.
Foto: Reprodução/Opera Mundi
Fonte: Opera Mundi