Por Elaine Tavares, de Florianópolis.
Já vai longe o tempo em que as notícias chegadas dos países irmãos da América Latina enchiam a vida de esperanças. Cooperação, soberania, equidade, mudanças, os ventos cambiantes soprando desde a Venezuela e se espalhando pelo continente. Nada muito revolucionário, mas pequenas e significativas transformações que começavam a cimentar um caminho diferente para uma população sempre subjugada dentro de um capitalismo dependente, no qual só sobrevivem os que mais roubam e exploram.
Com Chávez à frente foram criados novos espaços de integração latino-americana como a Unasul, a Celac, o Caricom, bem como um Banco do Sul e uma emissora de televisão que buscava igualmente integrar o continente pela cultura: a Telesul. Durante mais de uma década, esse lugar geográfico denominado América Latina finalmente conseguiu olhar-se e descobrir-se parte de uma mesma proposta, a mesma com a qual um dia sonharam Petión, Bolívar e Artigas, uma América unida, grande e soberana.
Mas, apesar desses avanços, os Estados Unidos, que acreditam ter como destino manifesto a posse sobre a riqueza e a vida de todos os que vivem abaixo do rio Bravo nunca desistiram de barrar esse sonho. Por isso, em 2002, o governo de Washington jogou pesado no apoio ao golpe contra Chávez. Só que a bravata do empresariado local aliada aos EUA acabou debelada pelo povo nas ruas e pelo exército bolivariano. Foi uma derrota fragorosa que obrigou o governo estadunidense a pensar formas alternativas de destruição do chavismo e da ideia de integração. E, de qualquer forma, mostrava claramente que o tempo dos “golpes” não se acabara. Eles sempre poderiam voltar, se fosse do desejo do governo imperial.
Assim, dois anos depois, em 2004, os Estados Unidos desestabilizavam a região do Caribe com a deposição do presidente eleito do Haiti, Jean-Bertrand Aristide. A partir desse golpe, o país foi invadido pelas tropas da ONU, incluindo aí soldados de países como o Brasil e a Bolívia, que, em tese, deveriam estar alinhados com a Pátria Grande e não com o Império. Já foi mais uma jogada de mestre dos Estados Unidos, pois além de tirar o Haiti da rota da esquerda, criaram desconforto e desconfiança entre os governos latino-americanos.
Depois, também no combate contra o avanço das ideias bolivarianas no Caribe, os Estados Unidos fomentaram o golpe em Honduras, no qual os militares locais sequestraram o presidente Manuel Zelaya, deportando-o para Costa Rica. Foi o retorno explícito de uma prática que a América Latina pensava já ter sido vencida. E, apesar de toda a gritaria da comunidade internacional Zelaya não voltou ao cargo e a constituição do país foi rasgada. Os militares golpistas realizaram eleições que foram consideradas ilegais, mas o presidente eleito no pleito imoral acabou sendo reconhecido e a vida seguiu.
É que apesar dos percalços e das perdas a corrente bolivariana seguia arrastando dirigentes governamentais, movimentos e sindicatos. Transformações na saúde, na educação, nas matrizes energéticas, tudo tomava novo ritmo. Países como a Venezuela, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai, Argentina, Nicarágua, com governos considerados progressistas, iam – cada um no seu ritmo e com suas especificidades – mudando leis, nacionalizando riquezas, distribuindo renda.
É claro que tudo isso não se deu sem contradições. A Venezuela não conseguia sair da matriz petrolífera, o Brasil se rendia ao agronegócio, o Equador excluía os indígenas e se aproximava das multinacionais do petróleo e da mineração, o Uruguai cedia aos transgênicos, a Argentina não atendia os trabalhadores. A batalha se dava também internamente em cada país.
Então, em 2012, a fábrica de golpes apresenta um novo formato. E ele aparece no Paraguai, onde o presidente Fernando Lugo tentava – ainda que timidamente – dar combate ao latifúndio. Por conta de um conflito entre policiais e camponeses na região de Curuguaty, o qual terminou com 22 mortes, o legislativo nacional apresenta um pedido de impedimento de Lugo, acusando-o de omisso, e num processo relâmpago, eivado de ilegalidades, no dia 22 de junho, o presidente constitucional é deposto pelo Senado paraguaio, numa votação que contou 39 votos a favor e 04 contra. De novo, a gritaria geral dos países latino-americanos e de outras partes do mundo não mudou a realidade. O golpe foi respaldado. Caia mais um governo articulado na ala dos progressistas.
No ano seguinte, em março de 2013, a onda bolivariana que embalara mais de uma década de transformações na América Latina, sofre mais um golpe. Morre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que era o principal condutor desse processo. Com ele, desaparece muito da força carismática que carregava multidões e encantava governos. E, a partir daí, abre-se um flanco para que – tal e qual nas guerras de independência – os governos até então alinhados aos sonhos de integração passem a atuar de forma mais individualizada. Chávez, o que puxava as orelhas, o que chamava para a boa direção, já não estava, e cada um tratou de cuidar de si. Mais um ponto para a águia, os EUA, que seguia não apenas à espreita, pronta para o bote, como ajudando no processo – inclusive financeiramente – de revitalização das entidades e organizações conservadoras nos países latino-americanos.
Em 2014, os ataques se concentraram na Venezuela, onde tentaram de todas as formas derrubar o governo de Nicolás Maduro. Ajudada pelos erros do novo presidente, a elite local – aliada dos EUA – produziu uma poderosa guerra econômica na qual os venezuelanos se viram sem produtos para consumir, com uma inflação galopante e com o dinheiro desvalorizado. O contexto de caos e carestias levou ao crescimento das forças conservadoras que acabaram vencendo as eleições legislativas em 2015, tirando a maioria do governo.
Em 2015 também o Brasil foi sacudido por forte crise política que já se manifestava desde 2013, e que foi crescendo ao ponto de se tornar uma espécie de cruzada contra o PT. Apesar de o governo de Dilma Roussef jamais ter sido um obstáculo para os conservadores e para a elite local, essas forças atuaram fortemente no sentido de derrubá-la do poder. E, como numa ópera bufa, as tentativas de golpe legislativo – a exemplo do Paraguai – contaram com a participação desastrada do próprio vice de Dilma, Michel Temer. Até agora ainda caminha no Congresso Nacional o processo de impedimento da presidenta. E tudo isso num quadro que nunca se aproximou de qualquer mudança estrutural significativa. Um pouco de distribuição de renda, com o Bolsa Família, mais acesso à educação superior pelos pobres e um forte apelo ao consumo, com facilitação de crédito. Ou seja, nenhum risco para o capital.
Também em 2015 a Argentina deu o passo mais significativo, já que foi com a decisão popular: uma guinada para a direita, a partir da escolha de Maurício Macri para a presidência da nação. O jovem milionário, representante do atraso, entrou chutando todos os baldes, com uma sede de mais de uma década. No primeiro dia depois da eleição, levantou as forças mais bizarras, que, num editorial de jornal, saudavam os velhos militares do tempo da ditadura. E, depois da posse, o próprio Macri tratou de mostrar sua inspiração, uma vez que nos primeiros dias nomeou ministros da justiça por decreto – o que é contra a lei – demitiu trabalhadores públicos, fechou veículos de comunicação, suspendeu programas nas TV públicas, fechou a TV Senado e tentou acabar com a Lei de Meios, que regula a comunicação. Dias depois, numa reunião do Mercosul, interpelou a representante venezuelana exigindo a liberdade de Leopoldo López, que ele chama de “preso político” e que a Venezuela entende ser um assassino. Na ocasião levou um cala-boca por parte da chanceler Delcy Rodriguez, que repudiou a ingerência, mostrou fotos da violência provocada por López e acrescentou: “Não nos surpreende que isso venha de uma pessoa cujo primeiro ato como presidente foi liberar torturadores”.
Agora, nos albores do ano de 2016, Macri assoma como o queridinho da direita latino-americana e terá como companhia os deputados venezuelanos da oposição, que também assumiram seus cargos provocando o governo, retirando quadros de Bolívar e de Chávez, mandando-os para o lixo. Sem contar o gesto absurdo do presidente da Assembleia Nacional, Henry Allup, que, durante o discurso de posse, se referiu ao governo passando a mão pelo pescoço, no gesto de degola. Cenas explícitas de violência e terror que são saudadas por todos os que querem de volta a explícita bota estadunidense.
Esse é o cenário no qual se desenrola a velha luta de classe, a queda de braço entre um pequeno grupo que detém a riqueza e os meios de produção, e a maioria despossuída. Nesse embate, surpreendentemente, temos muita gente que faz parte do grupo dos despossuídos apoiando e saudando os representantes da nova direita. Marx diria que é porque eles não sabem, estão com os olhos velados pela alienação, pela falta de conhecimento. Eu, modestamente, arriscaria dizer que hoje dificilmente seria possível não saber. Creio que estão mais para a servidão voluntária, como descreveu o então jovem Etienne de La Boétie, por volta do ano 1550, aqueles que, podendo ser livres, escolhem servir a um tirano apenas por algumas migalhas.
Grandes desafios se configuram no horizonte. Grandes desafios. Os adversários e os inimigos continuam os mesmos, mas os novos tempos exigem dos latino-americanos aquilo que exortava o grande mestre Simón Rodríguez: ou inventamos, ou erramos!