Na última semana, Brasil e Argentina reafirmaram suas decisões de não fornecer equipamentos bélicos que sejam destinados a uso no conflito ucraniano para países parceiros.
Durante visita do chanceler alemão, Olaf Scholz, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, declarou que o Brasil é um país de paz, que não tem a intenção de se envolver no conflito na Ucrânia.
“O Brasil é um país de paz e não quer ter nenhuma participação, ainda que seja indireta”, disse o presidente brasileiro durante conferência de imprensa com seu colega alemão.
Poucos dias antes, o chanceler alemão esteve em Buenos Aires, onde também ouviu uma negativa do colega argentino sobre o fornecimento de materiais bélicos para a Ucrânia.
“A Argentina e a América Latina não estão pensando em mandar armamentos, nem pra Ucrânia, nem para nenhum outro local em conflito”, disse o presidente argentino, Alberto Fernández, após reunião com Olaf Scholz.
De fato, além de Brasil e Argentina, México e Colômbia também rejeitaram pedidos de fornecimentos de armamentos para o teatro de guerra ucraniano. No final de janeiro, a chefe do Comando Sul, Laura Richardson, solicitou que países da região transferissem armamentos de origem russa ou soviética para seu aliado em Kiev.
“Eu disse a ela que nossa Constituição tem a paz como ordem no cenário internacional”, disse o presidente colombiano, Gustavo Petro, sobre a proposta da chefe do Comando Sul dos EUA. “A Colômbia não entregará armas russas para que sejam enviadas para a Ucrânia a fim de dar seguimento a uma guerra.”
De acordo com o professor de Relações Internacionais da UERJ, Paulo Velasco, nem todos os países latino-americanos adotam a mesma posição sobre o conflito ucraniano.
“O Chile tem uma posição completamente diferente da brasileira, e noto que estamos falando de dois governos de esquerda”, disse Velasco à Sputnik Brasil. “O [presidente chileno Gabriel] Boric se permite críticas muito mais enfáticas à Rússia, seguindo as posições do Ocidente de maneira mais ampla.”
Apesar do caso chileno, o posicionamento brasileiro sobre o conflito pode servir como diretriz e exemplo para os demais países da região.
“A Argentina está adotando uma posição de maior coerência com o seu principal vizinho, que é o Brasil“, acredita Velasco. “Se o grande vizinho da Argentina entende que o caminho é de equilíbrio e de tentar manter uma postura de maior ponderação e equidistância, a Argentina deveria seguir algo semelhante.”
O especialista lembra que, ao contrário do Brasil, a posição de neutralidade em relação a conflitos internacionais não é um traço da tradição diplomática da Argentina.
“A Argentina já se envolveu mais diretamente em conflitos internacionais no passado recente, principalmente em casos como o da Guerra do Golfo, quando ela enviou um navio de guerra para o golfo Pérsico, o que o BR não fez”, disse Velasco, lembrando que essa operação tinha o amparo das Nações Unidas.
Posição unificada da América do Sul?
A posição de neutralidade dos países da região não é bem vista por parceiros ocidentais, que devem exercer pressão para modificá-la.
“Existe muita pressão para que os governos mudem a sua posição. Recentemente, a África do Sul precisou reafirmar sua posição de neutralidade reiteradamente, diante da pressão para não realizar exercícios militares com Rússia e China”, disse a pós-doutoranda da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Isabela Gama, à Sputnik Brasil.
Nesse cenário, os países sul-americanos poderiam defender seu posicionamento de maneira mais eficiente, caso estivessem unidos. No entanto, atualmente a região não conta com um mecanismo de diálogo regional robusto sobre segurança internacional.
“O que temos atualmente é um mecanismo muito frágil, que é o Grupo de Trabalho em Defesa no âmbito do PROSUL, uma iniciativa […] criada para substituir a UNASUL, que era vista pelos governos de direita como um espaço contaminado ideologicamente”, explicou Velasco.
Segundo ele, o mecanismo não se reúne com frequência, tem “pouca capacidade de ação efetiva”, e não cumpriu a sua função de substituir o Conselho de Defesa da UNASUL “que tinha robustez institucional significativa”.
A região ainda poderia contar com mecanismos continentais, como o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e a Junta Interamericana da Defesa, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA).
“Esses mecanismos foram criados na década de 40, mas ainda estão em vigor”, considerou Velasco. “O problema é que os EUA sentam na cabeceira da mesa, o que cria constrangimento para as partes.”
Nesse caso, os países da América do Sul poderiam utilizar o Mercosul como uma plataforma para debater temas de segurança internacional.
“Podemos reconhecer que hoje em dia o Mercosul alcança toda a América do Sul, seja em membros sócios e membros associados”, considerou Velasco. “Então é um espaço adequando para debater temas vinculados à segurança regional e defesa, como crimes transnacionais, cooperação policial, controle migratório e de fronteiras.”
Apesar do Mercosul oferecer uma solução temporária, Velasco acredita que o ideal seria retomar o diálogo em mecanismos mais consistentes, como o Conselho de Defesa da UNASUL.
“O problema é que não será tão simples assim resgatar a UNASUL”, declarou Velasco. “Precisaremos negociar um novo tratado constitutivo […] e reconhecer que lançar uma organização internacional não é algo trivial.”
Para o especialista, “não está claro se teremos fôlego para tanto em tão pouco tempo. Mas empenho do governo brasileiro terá, e acho que Lula vai correr atrás disso sim”, concluiu Velasco.
Nas últimas semanas, Brasil, Argentina, Colômbia e México refutaram publicamente pedidos de países da Organização do Tratado do Atlântico Norte para a realização de transferência de material bélico para apoiar o esforço de guerra da Ucrânia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a posição de neutralidade brasileira e recusou o pedido de envio de munição do tanque Leopard 1 à Alemanha.