Por Aleksander Aguilar Antunes.
Na manhã do último dia 31 de março, no programa de fim de semana Fox & Friends, do canal de TV estadunidense Fox News, o tema em debate era o recente anúncio de Donald Trump sobre o corte da cooperação econômica do seu governo para Honduras, Guatemala e El Salvador – uma afetada medida de força diante do fluxo de migrantes e refugiados desses países que buscam ingressar aos Estados Unidos. O apresentador destacava a ameaça daquele mandatário em fechar sua fronteira com o México como forma de pressão para que esse país assumisse o papel de contenção de trânsito dos centro-americanos.
Contudo, a opinião dos participantes do programa não chamou tanto a atenção quanto a faixa com comentários que os canais costumam colocar na parte inferior da imagem na tela para resumir a noticia ou tema em questão: “Trump corta a ajuda dos Estados Unidos a 3 países mexicanos”.
Percebeu o ato falho, né? Diga que sim… Nos Estados Unidos o episódio se fez viral na internet, com uma enorme proliferação de memes indignados e humorados, e manifestações públicas de personalidades politicas norte-americanas a respeito. A gafe foi apontada como exemplo de racismo estrutural, considerando em particular que se trata de uma das mídias mais conservadoras daquele país. E me levou a relacioná-la à outra polêmica sobre ‘viralizar’.
DORES E VIRAIS
No dia 14 de março deste ano parte de Moçambique, Zimbábue e Malawi foram devastadas pelo Ciclone Idai, que provocou a morte de mais de 800 pessoas e a destruição de infraestrutura de cidades e de milhares de residências e plantações de moradores de áreas rurais nos três países. Com o passar dos dias, diante do tamanho da tragédia que contrastava com a inicialmente tímida cobertura midiática, passaram a surgir no Brasil posts nas redes sociais que se perguntavam: cadê o ‘pray for` Moçambique? Por que sobre tamanha crise humanitária demorou a haver filtro de Facebook, banner no Instagram, hashtag no Twitter, ou seja, por que não viralizou?
Como em outros casos, a internet fez possível um amplo alcance de denúncia sociopolítica. Nesse caso, devidas provocações de que racismo estrutural é também negligência, desdém e naturalização de sofrimento preto, já que se se tratasse de situação semelhante em outras regiões mais privilegiadas, e brancas, do globo, a comoção e a atenção em tese seria maior. Paradoxalmente, o movimento tecnopolítico de crítica à falta de visibilidade da tragédia em função da condição econômica e racial dos seus sujeitos tornou-se mais visível que a devastação em si.
Tendo isso presente, agora me responda: O que você já ouviu falar sobre as caravanas de migrantes e refugiados da América Central em direção aos Estados Unidos? Ou o que você sabe em geral sobre os países e realidades dos povos centro-americanos? Não é uma pegadinha, nem uma pergunta retórica, afinal de contas não estamos falando de nenhuma região inóspita e distante, e sim, entre tantos outros aspectos de destaque, de alguns dos territórios mais importantes da geopolítica da América Latina, para ficarmos no nosso continente e numa dimensão suficientemente palpável – tomando em conta os que gostam de uma racionalidade do tipo homos economicus – que validaria sua mínima compreensão, empatia, interesse.
País de importância global quase tão confusa quanto sua identidade latino-americana, no Brasil é particularmente sonoro o silêncio sobre o lugar de insignificância em que tentam nos enquadrar como centro-americanos. Pessoalmente, não foram poucas as vezes que tive que explicar que minha origem é El Salvador, e não Salvador, na Bahia, tamanha a ignorância.
Da estreita superfície de terra entre o México e a Colômbia, entre os oceanos Atlântico e Pacífico em pouco menos de dois mil km de extensão marcada por vulcões, selvas e lagos, é de onde vem minha família paterna, que foi obrigada, como tantos outros milhares de centro-americanos, a deixar seus lares e parentes em função da pobreza, violência e guerras civis que marcaram a região particularmente entre os anos 1960-1990. Nesses limites fronteiriços, um heterogêneo particular: uma “geografia da desgraça”, como denominou o historiador Hector Brignoli. Porque terremotos, erupções e furacões conformam eventos que há séculos são parte desse espaço e da vida dos povos que o habitam. Mas não são desastres ambientais o que tem causado a mais impactante tragédia atual.
A globalização em sua fase atual tem uma dimensão sócio-espacial específica: os grandes corredores comerciais. Estes fazem com que as antigas rotas comerciais agora sejam espaços transnacionais, modernos, mas ambíguos, territórios de intenso tráfego e em constante disputa. O corredor mais importante da América Latina atravessa seu ponto mais estreito: o istmo centro-americano. Na prática, conecta duas áreas de enorme desenvolvimento sócio-produtivo: o Atlântico e o Pacífico. E a conflitividade gerada pela ambição de controle por parte de grandes potências externas dessa passagem interoceânica, que é a condição a que costumam resumir a América Central em sua visão utilitarista (além de outras ganâncias extrativistas e territoriais), é um dos grandes motivos de saída, fugas, diásporas dos centro-americanos de seus próprios lares.
CARAVANAS MIGRANTES: ÊXODO DOS DESTERRITORIALIZADOS
A chamada ‘Caravana Migrante’ para os Estados Unidos, que no ano passado gerou alguma noticia no Brasil sobre a América Central, é mais bem descrita como o “Êxodo dos Desterritorializados”, como o pesquisador nicaraguense Jose Luis Rocha definiu.
Num processo de organização digno de cinema, em 12 de outubro de 2018 cerca de 160 pessoas se reuniram em uma estação de ônibus na cidade hondurenha de San Pedro Sula para iniciar uma longa jornada para o norte – uma viagem que se planejava há mais de um mês. Quando o grupo finalmente começou a marchar, na madrugada de 13 de outubro, pelo menos outras mil pessoas se juntaram, graças serviços de mensagem instantâneas, como o famigerado Whatsapp,
Esse movimento provocou o retorno à agenda pública do debate que a mídia costuma chamar de “migração ilegal” cujo fluxo, não por acaso desde o começo dos anos 1990, tem aumentado consideravelmente em toda a América Central, e principalmente nos países do chamado Triângulo Norte – países que estiveram sob ingerência, violência e dominação direta dos Estados Unidos por muito tempo, mas particularmente durante os anos 1980: Honduras, Guatemala e El Salvador.
É difícil calcular o tamanho total das caravanas que atualmente atravessam o México para o Norte, pois há pessoas que diante da periculosidade e precariedade que se enfrenta no trajeto voltam para suas casas enquanto outras se juntam a grupos existentes ou formam novos grupos. De acordo com estimativas da Anistia Internacional o número total de pessoas formando caravanas durante outubro e novembro do ano passado era entre oito e 10 mil. E desde então, muitos outros grupos passaram também a marchar.
E enquanto marcham, configuram um movimento social de novo tipo, porque sem nenhum slogan ideológico óbvio se auto-organizaram para caminhar juntos em busca de uma vida que possa ser vivida. Moderadamente coordenados, atravessaram a pé uma dolorosa jornada de várias semanas e centenas de quilômetros para chegar aos Estados Unidos. Queimaduras solares, desidratação, falta de água potável e de saneamento são riscos constantes, mas também violência direta. Em novembro a policia mexicana, seguindo a chantagem estadunidense, reprimiu e agrediu marchantes com gás lacrimogêneo e ameaças de deportação, e Trump ordenou que 15 mil tropas das Forças Armadas se mantivessem nas fronteiras sul onde os marchantes chegaram e foram recebidos com balas de borracha.
É por isso que me somo aos que definem essas marchas dos nossos povos centro-americanos como lutas de um movimento de desobediência civil em massa.
A SITUAÇÃO HOJE
Nas fronteiras de Tijuana ou de El Paso, onde mais grupos marchantes continuam chegando, o que vemos atualmente é ao mesmo tempo um exemplo de resistência politica frontal e de dramáticas consequências sociais do neoliberalismo. As autoridades migratórias estadunidenses mantem os recém chegados em acampamentos improvisados debaixo de uma ponte que conecta o México aos Estados Unidos, encerrados atrás de uma cerca de arame farpado, dormindo diretamente no chão rochoso em temperaturas frias que caracterizam a região durante as noites, à espera de uma decisão sobre suas sortes. A imensa maioria é mandada de volta ao sul.
A mais recente cobertura dessa crise de refugiados tem focado nas diferenças de abordagem entre as recém eleitas novas autoridades mexicanas e as estadunidenses. Mas pouca atenção é dada as raízes do problema que geram essa migração forçada, as razões sistêmicas pelas quais milhares de centro-americanos precisam fugir de seus países anualmente.
Sobre o fiasco ‘3 Méxicos’, para além de memes o que importa é a relação poder e subjetividade que a polêmica captura. Adam Serwer, um jornalista estadunidense, opinou que além de um erro, a gafe da Fox News foi a expressão do sentimento subjacente do canal à maioria dos latinos no país. Mas a sujeição que historicamente se busca aplicar sobre os centro-americanos em específico não é uma exclusividade dos Estados Unidos, senão também, secundariamente, da postura paternalista da hegemonia mexicana sobre a região ao longo de sua história republicana.
Acredito que isso também é como o racismo estrutural se manifesta, e o que representa, porque, nos Estados Unidos, no México, ou no Brasil, a dor centro-americana não só não vai viralizar, como não se sabe nem localizar.
* De nacionalidades brasileira e salvadorenha, Aleksander Aguilar Antunes é jornalista, pesquisador, escritor e organizador político-cultural com pós-doutorado no programa Pueblos em Movimiento, da Associação Latino-americana de Sociologia (ALAS). É coordenador-geral da rede-plataforma centroamericanista de análises, pesquisas e mobilizações sociopolíticas e culturais sobre a América Central ‘O Istmo’ (www.oistmo.com)