Amazônia pode virar uma savana em 15 anos

Em Porto Alegre (RS), Ricardo Galvão, diretor demitido do Inpe por divulgar dados sobre o desaparecimento da floresta, alertou para os efeitos da negligência para o clima mundial

Galvão: o Inpe alertou as autoridades sobre o aumento do desmatamento em diversas oportunidades, com dados corroborados pela Nasa e pela Agência Espacial Europeia, apesar da insatisfação do governo Bolsonaro
Foto: Leonardo Savaris

Por Naira Hofmeister.

A chuva constante em meio a uma jornada de 48 horas de protestos e paralisações da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) não impediu que uma centena de alunos e professores dedicassem parte da tarde de quinta-feira, 3, a escutar o ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, em uma atividade promovida pelo Instituto de Física.

Galvão veio a Porto Alegre participar de uma banca de pós-graduação e aproveitou a viagem para falar à comunidade científica sobre seu trabalho e as desavenças com o governo Bolsonaro. O presidente da República o demitiu, um ano e meio antes do final de seu mandato, por divulgar dados do desmatamento da Amazônia que incomodaram sua gestão, em agosto.

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“Eu quase desfaleci quando soube dos termos que ele usou para nos acusar: disse que os dados eram mentirosos e que eu estava a serviço de uma agência estrangeira. Na comunidade científica, isso pode significar o fim de uma carreira, é muito, muito grave”, recordou o físico, que é pesquisador, dá aulas na Universidade de São Paulo (USP) e já recebeu importantes prêmios em sua trajetória, incluindo a Ordem Nacional do Mérito Científico.

Durante duas horas, Galvão exibiu em um telão documentos comprovando que o Inpe alertou as autoridades sobre o aumento do desmatamento em diversas oportunidades – e que seus dados foram corroborados pela Nasa e pela Agência Espacial Europeia, apesar da insatisfação governamental. Apontou ainda estudos que alertam sobre os efeitos da negligência com a floresta e ainda disse que o presidente Jair Bolsonaro “mentiu” durante sua fala na conferência ONU, na semana passada quando disse que o Brasil mantém praticamente toda a Amazônia preservada.

“Desde 1500, desmatamos 4 milhões de quilômetros quadrados, quase 20% da floresta. Hoje sabemos que se passar dos 25%, a tendência para se tornar savana é irreversível, porque é um sistema muito complexo. O problema é que dos 20% desmatados até hoje, 11% aconteceram de 1988 para cá. Então, se os governos não reagirem, em 10 ou 15 anos vamos chegar aos 25%”, alertou.

Um estudo já constatou que no sul do Pará, uma das regiões de maior derrubada de árvores no Brasil, a temporada seca está se prolongando, em média, 10 dias a mais do que em outras partes do bioma. Outra pesquisa comentada pelo físico indica que a capacidade da Amazônia de sequestrar carbono da atmosfera – fundamental para conter o aquecimento global – está caindo.

“É uma função extremamente importante para toda a humanidade. Concordo que a Amazônia é nossa, como disse Bolsonaro na ONU, mas a soberania vem com responsabilidades, e a atitude do presidente é preocupante”, lamentou.

Metas do acordo de Paris estão em risco

O ex-diretor do Inpe recordou o histórico e a capacidade da equipe técnica do centro de pesquisas, presente em oito estados brasileiros – no Rio Grande do Sul, há unidades em Santa Maria e em São Martinho da Serra. Também defendeu a metodologia de monitoramento da Amazônia, que está sendo colocada em xeque pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Aliás, em agosto de 2020, o Inpe deve lançar um novo satélite de vigilância da floresta, desenvolvido inteiramente dentro da casa e com tecnologia nacional.

“Medimos o desmatamento desde 1988 e hoje o mundo considera essa, a melhor série temporal mundial sobre desmatamento em florestas tropicais, com 95% acerto”, sublinhou.

Em um gráfico, ele mostrou que as medições feitas em 2019 indicam que o ano deve fechar com crescimento da derrubada de árvores. O índice vinha caindo desde 2004 até 2012, quando inverteu a tendência e voltou a aumentar. Em 2018, foram desmatados 7,9 mil quilômetros quadrados na Amazônia brasileira, mas este ano a situação deve piorar.

O problema é que o Acordo de Paris obriga o Brasil a reduzir radicalmente o corte ilegal de floresta, determinação que virou meta explícita no Decreto 9.578/2018. No texto, há compromisso com a redução de 80% nos índices anuais de desmatamento, em relação à média verificada entre 1996 e 2005 – que é de 19,6 mil km².

“Ou seja, em 2020, deveríamos ter um índice de desmatamento de 3,9 mil km², no máximo. E não vamos atingir essa obrigação, que é lei, porque esse ano vai ficar entre 8 mil km² e 10 mil quilômetros quadrados”, aposta.

Governo obscurantista

A opção do governo brasileiro diante desse cenário é desacreditar os dados do Inpe. “Os militares eram autoritários. Mas o problema deste governo é o obscurantismo”, sentenciou Ricardo Galvão.

Ele lembrou que não apenas o Inpe sofreu com a difamação de integrantes do primeiro escalão da República – o presidente incluído. Uma pesquisadora do Instituto Butantan que apontou prejuízos do uso de agrotóxicos “foi proibida de publicar seus dados e de trabalhar em projetos pesquisa”.

Apesar disso, o cientista acredita em uma reação social para enfrentar o descrédito da ciência e das instituições de pesquisa brasileiras – um fenômeno que ele tem observado no metrô de São Paulo. “Todos os dias eu sou abordado por cinco, seis pessoas – é o velhinho que combate incêndios na Amazônia, dizem”.

Dos interlocutores, ele escuta palavras de apoio e de agradecimento por sua atitude: muitos sequer tinham ideia dos efeitos nas suas próprias vidas das queimadas e do desmatamento na Amazônia e agora criaram grupos em suas comunidades, igrejas, escolas para alertar para um perigo real. “Eu não estive sozinho; recebi um apoio enorme da comunidade científica, e também de gente de fora, o que começou a me alegrar, me recuperei um pouco”, admitiu.

Por isso, Ricardo Galvão decidiu encerrar sua palestra com “uma mensagem de esperança para todos”: “Muita gente me pergunta se estamos caminhando para as trevas, mas eu acho que não, porque espero que dessa vez, a comunidade científica e a sociedade brasileira não se calarão”, concluiu, sob aplausos emocionados da plateia.

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