Por Lu Sudré.
O desmatamento da Amazônia quebrou recordes em 2020 e alcançou a maior área registrada dos últimos 12 anos. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão que monitora a devastação nos biomas brasileiros por meio de satélites, foram 11.088 km2 desmatados, um crescimento de 9,5% em relação ao ano anterior.
A partir de imagens inéditas de autoria de Juan Doblas, geofísico e especialista em monitoramento do desmatamento, o Brasil de Fato mostra as fases e técnicas utilizadas por setores responsáveis pela destruição de regiões localizadas na maior floresta tropical do mundo, como a pecuária e o agronegócio.
As fotografias cedidas pelo pesquisador foram registradas em novembro de 2020 em uma área de 100 km ao redor de Porto Velho, em Rondônia.
Doblas explica que, para conhecer todos os elementos ligados ao desmatamento, é necessário, antes de tudo, entender quem está desmatando e qual será o destino final para a área, ou seja, para que fim ela será utilizada.
Segundo o especialista, o desmatamento na região fotografada decorre da ação de três setores com impactos danosos de intensidade muito diferentes. São eles:
Agricultura de subsistência
O desmatamento realizado por pequenos proprietários e agricultores é caracterizado por áreas pequenas com a derrubada da vegetação feita de forma manual, cujo objetivo é a própria subsistência.
A criação de roças e plantação de alimentos, por exemplo, demanda uma força de trabalho pequena e raramente ocorre de forma mecanizada. Em comparação com a atuação de outros setores, o impacto da agricultura familiar é extremamente menor, já que o avanço sob a floresta nativa é baixo.
Ainda que haja focos de desmatamento, geralmente a longo prazo acontece o processo de rotação das plantações que passam a ocupar a área.
Isso significa que os territórios usados são substituídos por outros, o que possibilita um processo de regeneração local.
A prática da agricultura, diferente das demais, não é regida pela lógica da expansão e do lucro e sim da sobrevivência por meio da terra.
Médios e grandes “proprietários” de terra
O impacto do desmatamento realizado por médios e grandes pecuaristas na Amazônia é mais danoso por abranger áreas maiores e avançar, em geral, sob áreas preservadas e griladas.
Juan Doblas exemplifica que o ritmo do desmatamento para um pecuarista médio pode ser de 5 a 20 hectares por ano, “sendo que esse número pode ser bem maior à medida que a sensação de impunidade aumenta”.
O setor pecuário apresenta o chamado efeito de contágio. Para que um pecuarista médio obtenha lucro na área, é necessário criar um número considerável de cabeças de gado. Mas, para a manutenção de um rebanho significativo, é necessário uma área de pasto também significativa, o que leva ao avanço sobre a floresta nativa.
O movimento é seguido por outros pecuaristas da região, potencializando o desmatamento. O pesquisador relata que esse tipo de articulação é recorrente em Rondônia, no Acre, no Mato Grosso mas principalmente na Transamazônica, que corta o estado do Amazonas.
É crucial considerar também o desmatamento consequente da extração da mineração e madeira ilegal, assim como do agronegócio e suas extensas plantações de soja.
Devido à escala do território, o processo de derrubada da vegetação é realizado por maquinários como o trator.
Desmatamento especulativo
Áreas muito grandes, abertas de forma rápida, usando um grande contingente de maquinário e força de trabalho externa. Essas são as características do chamado desmatamento especulativo.
Conforme descreve Juan Doblas, são áreas devastadas em dimensões industriais, onde não é registrado nenhum uso da terra de fato.
“São áreas abertas com o intuito de valorizá-las [no mercado de terras] e vendê-las depois. São áreas griladas, as pessoas não pagam nada pela terra mas afirmam que é deles, e vendem na esperança de regularizar, de ter um título. [Isso acontece] Justamente no bojo da flexibilização da legislação fundiária que está acontecendo desde 2016, mas que agora está bem mais forte”, explica o analista de geoprocessamento.
“É puramente especulativo. Se sobrevoa essas áreas e não tem um boi. Às vezes um ou dois para dizer que estão usando a terra, mas, na verdade, são movimentos especulativos que têm aumentado muito, principalmente depois da aprovação do Novo Código Florestal em 2012”, completa ele.
Ainda que as consequências da derrubada da floresta nativa da Amazônia pela agropecuária e pelo agronegócio sejam conhecidas mundialmente, as etapas desse processo muitas vezes são desconhecidas.
As fotografias de Juan Doblas tiradas na região ao redor de Porto Velho (RO) registram essas diferentes fases, permitindo a visualização do “avanço cronológico” do desmatamento, da broca à tradicional imagem do deserto verde do agronegócio.
Etapa 1: A brocagem e o fogo
A floresta intacta e saudável, por ser úmida, não pega fogo. Justamente por isso a primeira fase do desmatamento consiste na prática da broca, que é a retirada da chamada floresta baixa.
Ao “limpar” a vegetação por baixo das grandes árvores, cortar árvores menores e arbustos com a serra elétrica, por exemplo, a matéria orgânica tende a secar e se tornar inflamável. É a preparação para a queimada.
Essa fase geralmente é realizada pela força de trabalho humano, mas, no desmatamento especulativo de larga escala, o uso de agrotóxicos também já foi registrado.
“O uso de agentes químicos permite fazer todo o processo de desmatamento praticamente sem intervenção no solo e minimiza muito a mão de obra. O que geralmente é feito, inicialmente, é a substituição da etapa da broca, que mais mobiliza mão de obra”, afirma Doblas.
A substância química pulverizada para este fim é o agente 2,4-D, o ácido diclorofenóxiacético, segundo agrotóxico mais usado no Brasil e proibido em parcela considerável dos países da União Europeia.
O danoso herbicida está disponível comercialmente há mais de 70 anos no Brasil e é conhecido em nível global por ter sido um dos ingredientes do chamado agente laranja, um agente químico usado na Guerra do Vietnã.
“De forma imediata, o agrotóxico faz efeito. As árvores perdem as folhas e terminam morrendo. Depois, põem o fogo. É horrível. Contamina, o agrotóxico se infiltra no lençol freático e pode contaminar outras áreas”.
Depois da brocagem, o fogo é ateado na área propícia ao alastramento das chamas que consomem as árvores secas rapidamente.
Há ainda um grande perigo nesse processo: caso uma área de vegetação limitrofe à que pretende ser desmatada esteja seca, uma consequência comum com a intensificação das mudanças climáticas, elas também serão incendiadas.
Etapa 2: Criação de leiras e limpeza da área
Após a devastação causada pelo fogo, um trator geralmente é utilizado para a derrubada das árvores remanescentes com o objetivo de limpar o terreno. É ai que são criadas as chamas leiras, fileiras de vegetações mortas e queimadas.
Tais “restos” da floresta nativa ou são queimados novamente ou retirados do local que, de uma volumosa e densa floresta verde, viva, torna-se uma grande área acinzentada.
Etapa 3: Expansão da pecuária e do agronegócio
Com o terreno uniforme e sem nenhuma árvore em pé, a área é destinada à criação de gado ou ao monocultivo de espécies como a soja, perdendo-se toda a biodiversidade local.
Analisando as fotografias abaixo é possível visualizar de forma muito evidente a lógica de expansão predatória sobre a Amazônia.
Os incêndios criminosos que consolidam a grilagem ocorrem geralmente em tempos secos e em múltiplos focos, a exemplo do que aconteceu no Dia do Fogo, em 10 de agosto de 2019, quando produtores rurais de cidades do Pará se organizaram para botar fogo em diversas áreas.
Juan Doblas alerta que o desmatamento especulativo é o agente que mais tem crescido nos últimos anos no Brasil devido às escolhas políticas dos governos.
“De um lado temos uma legislação que flexibiliza a regularização de grandes áreas griladas e desmatadas. Favorece e facilita a regularização de grandes áreas. E do outro, temos o desmonte dos órgãos fiscalizatórios, tanto estaduais quanto federais”, diz Doblas.
Para o analisa em georeferenciamento, “a perspectiva é catastrófica”.
“A única coisa que pode frear o aumento do desmatamento é a virada completa do rumo da política ambiental, o que só acontece com a troca do governo. Mesmo assim é difícil, porque o que acontece é um aparelhamento de muitas instâncias. É muito difícil de reverter, será um trabalho de muitos anos”, lamenta.
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