Por Wérica Lima, para Amazônia Real.
Manaus (AM) – Durante a semana, a vendedora ambulante Lucy Hellen Batista Dantas, de 27 anos, atravessa com pressa uma ponte de madeira e entra em uma rua coberta de barro para levar e buscar a filha mais velha, Lorena Sofia, 6 anos, na escola do conjunto habitacional Cidadão 5, na zona norte da capital amazonense. Ela vai com pressa, pois a filha mais nova, Heloísa Colares, de 1 ano e 9 meses, fica em casa com parentes. Na região não existe uma creche para a primeira infância. Mas no percurso, Lucy passa pelo número 222, onde há uma uma obra inacabada de uma creche da Prefeitura de Manaus desde 2020.
A obra começou na gestão do ex-prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB) em 2013. Ele, que é candidato ao Senado nas eleições de 2022, deveria ter sido concluído a creche em novembro de 2017. É a informação que está na placa da obra e cita o custo é de R$ 1.783.374,01. Lucy, que vende churrasquinho na rua para aumentar a renda familiar, nem sabia que o prédio abandonado era de uma creche.
“É triste ver, agora sabendo que ali poderia estar uma creche beneficiando a minha filha e muitas crianças aqui na comunidade. Tem criança dispersa porque a mãe está trabalhando e precisa levar alimento para casa. Isso aí é de 2016 e já estamos em 2022, é muito tempo, querendo ou não é um dinheiro que foi e até agora não teve retorno nenhum”, afirma Lucy. Leia no final deste texto as entrevistas com as mães sem creches.
No Amazonas, 251.430 mil crianças de até 3 anos estavam fora de creches públicas e particulares, segundo dados de 2019 do IBGE. Matriculadas eram 38.570 crianças – um percentual de 13,30%. O índice é considerado ruim por estar abaixo da média do país, que é de 35,6%, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), ligado ao Ministério da Educação.
Na análise dos dados do Censo Escolar de 2020 do INEP para crianças desta população atendidas em creches no Amazonas, o índice cai para 9,89%. A pesquisa aponta que 32.055 estavam matriculados em unidades, sendo 10 estaduais, 26.751 municipais e 5.294 privadas. As crianças indígenas são as que têm menos acesso às creches: 2.409 contra 21.110 pardas e pretas.
A situação é ainda mais grave em Manaus, cidade que abriga um dos maiores polos industriais do país, a Zona Franca. O índice de matriculados corresponde a apenas 11,70% da média nacional ou 17.199 crianças em creches de toda a rede de ensino no ano de 2019, segundo o IBGE. Estavam fora das creches naquele ano 129.801 crianças. O instituto não tem pesquisa sobre cor, raça e etnia.
A Prefeitura de Manaus diz que estão matriculadas nas 24 unidades públicas 5.069 crianças de 1 a 3 anos de idade, em 2022. Uma média de 220 crianças em cada creche.
Segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, das 483.862 crianças com até 3 anos de idade no Amazonas, 41,06% se enquadravam nos critérios do Índice de Necessidade por Creches (INC) em 2019. O INC é um indicador criado para medir a necessidade por creche em nível municipal. Ele identifica a parcela da população da primeira infância que reside em área urbana e que mais precisa da creche, isto é, famílias pobres monoparentais (quando uma mãe ou um pai são os responsáveis pelos dependentes).
Em Manaus, o INC é de 44,61%, segundo o relatório do observatório do Marco Legal da Primeira Infância e da plataforma Primeira Infância Primeiro (PIP), respectivamente.
Empurra empurra dos políticos
No Tarumã-Açu, na zona oeste de Manaus, a reportagem da Amazônia Real encontrou uma obra de creche paralisada há 11 anos na rua Peixe-Cavalo, no loteamento União da Vitória. Uma placa diz que a obra recebeu investimentos de R$ 1.452.130,86.
Essa creche é também uma das cinco obras contempladas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) da segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2), com investimento de R$ 16,5 milhões firmado na gestão do ex-prefeito Amazonino Mendes (de 2009 a 2012), hoje candidato ao quarto mandato como governador do Amazonas nas eleições de 2 de outubro, pelo partido Cidadania.
Ainda em 2012, Amazonino Mendes declarou que entregaria mais 100 creches em Manaus. Naquele ano, o ex-prefeito anunciou a licitação de ao menos 55 unidades em Manaus e investimento de R$ 109 milhões.
Segundo a assessoria de imprensa, Arthur Virgílio Neto (PSDB), que sucedeu Amazonino, encontrou apenas uma creche pronta quando assumiu o município, em 2013. A obra era da creche professora Eliana de Freitas Moraes, na rua Riacho Doce, bairro Cidade Nova 1, na zona norte, uma das duas unidades contratadas pelo ex-prefeito e deputado estadual Serafim Corrêa (PSB), que ficou no cargo de 2005 a 2008.
À reportagem, Serafim, que é candidato à reeleição a uma vaga na Assembleia Legislativa do Amazonas, confirmou que Amazonino herdou a execução de duas creches, entre elas, a do Riacho Doce.
Assim como Amazonino, o ex-prefeito Arthur Virgílio, que foi reeleito e administrou o município de 2013 a 2020, prometeu aos eleitores centenas de creches – um total de 110 unidades. Ao inaugurar uma das obras, o tucano disse que tinha recursos do Ministério da Educação para construir 55 unidades: “Adotaremos para construir novas creches a parceria público/privada”. O número 55 é o mesmo número prometido por Amazonino na licitação de 2012.
Em 2015, Arthur anunciou investimentos de R$ 48.337.183,30 para construção de creches do FNDE, conforme contratos divulgados no Diário Oficial do Município. Somado esses recursos com os anunciados por Amazonino, os valores em obras das creches chegariam a R$ 200 milhões em 11 anos.
No entanto, das mais de cem creches prometidas no início do mandato, Arthur deixou 18 unidades construídas nos oito anos de sua gestão. A reportagem da Amazônia Real procurou o ex-prefeito para saber o valor exato do investimento nas creches, mas ele não retornou.
“Que se façam mais creches, porque é a primeira e primordial educação escolar oferecida para uma criança”, disse Arthur à imprensa de Manaus, dias antes de deixar a prefeitura, em 31 dezembro de 2020, sem entregar as 110 ou 55 creches prometidas.
O sucessor David Almeida (PTB) assumiu a Prefeitura de Manaus no dia 1º de janeiro de 2021. Por meio da assessoria de imprensa, ele afirmou que quando assumiu encontrou em funcionamento 24 creches, sendo quatro conveniadas. “O valor investido nas obras entregues em 2020 foi de R $12.036.367. Deste total R $5.529.507,69 foi investido pelo município e R $6.506.859,26 pelo Governo Federal”, diz a assessoria.
“Mas havia nove obras paradas, sendo seis creches, duas escolas e um Centro Integrado Municipal de Educação (Cime)”, destacou a assessoria de David Almeida.
As seis creches paralisadas ou inacabadas em Manaus estão entre as sete citadas no levantamento da Transparência Brasil e da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, entre o período de 2012 a 2014. Os investimentos ultrapassam os R$ 10 milhões e são de contratos assinados pelo FNDE, Amazonino Mendes e Arthur Neto, que deveriam ter executado as obras.
Segundo a Transparência Brasil, as creches paralisadas ficam nos seguintes endereços: ruas Gustavo Capanema, com custo de R$ 1.452.130,85, e rua Peixe-Cavalo, valor de R$ 1.454,130,86, ambas no bairro Tarumã, na zona oeste. Na rua Lamaque, com custo de R$ 1.783.374,01; e na rua no. 18, valor de R$ 1.803.740,23, ambas no bairro Santa Etelvina; além da rua Espigão, no bairro Cidade de Deus, com custo de R$ 1.452.130,86, todas na zona norte da cidade.
O levantamento da Transparência incluiu ainda duas obras de creches inacabadas, ambas na rua Projetada, no bairro da Redenção, na zona centro-oeste, no valor total de R$ 1.023.018,28 e R$ 1.033.836,69, respectivamente.
Essas sete obras paradas ou inacabadas deveriam atender uma média de 1.500 crianças este ano.
A Amazônia Real enviou pelo Whatsapp, no dia 15 de agosto, quatro perguntas à assessoria de imprensa do ex-prefeito Arthur Virgílio Neto, mas ele não respondeu às questões relacionadas às obras das creches paralisadas e às promessas aos eleitores. A assessoria alegou que as perguntas envolviam informações de orçamento e questões técnicas, pediu ampliação de prazo para responder, mas não retornou à reportagem.
A Secretaria Municipal de Educação (Semed) informou, por meio da assessoria de imprensa, que retomou no mês de junho deste ano três obras de creches paralisadas. Outras três obras estão em processo de licitação, com autorização de ordem de serviço para construção assinada por Almeida no valor de R$ 5 milhões. “Até 2023 a Prefeitura de Manaus prevê investir, aproximadamente, R$ 12 milhões para conclusão das seis creches”, diz a nota da assessoria.
Entre as obras retomadas estão as das creches nas áreas 18, do bairro Cidade Nova, na zona norte; 35 do bairro Planalto, na zona oeste; e 146, na Vila Buriti, na zona sul. “As unidades foram planejadas, inicialmente, para ter oito salas e atender a 200 crianças de 1 a 3 anos de idade, mas essas terão a ampliação de duas salas, podendo atender até 244 estudantes”, diz a Semed.
As creches com as obras paralisadas nas gestões de Amazonino e Arthur que ficam das ruas do Peixe-Cavalo e 222 (Conjunto Cidadão 5), onde a pequena Heloísa, filha da vendedora autônoma Lucy Dantas, deveria estar matriculada este ano, estão no pacote das licitações, isto é, ainda no papel.
Promete, mas não faz
Amazonino Mendes foi governador do Amazonas por três vezes: de 1987 a 1990, de 1995 a 2003 e de 2017 a 2019. Também foi prefeito duas vezes: de 1983 a 1986 e de 1993 e 1994, além de uma rápida passagem pelo Senado, de 1991 a 1992. Nas eleições de 2020, quando foi candidato à Prefeitura de Manaus pelo Podemos, partido apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL), prometeu construir 1.000 creches. Depois, em vídeo postado no Facebook, ele negou e disse que foi uma “confusão”.
A agência Amazônia Real procurou o ex-prefeito para ele dizer quantas creches inaugurou em sua gestão com recursos do FNDE, mas ele não respondeu à pergunta enviada por e-mail à sua assessoria. Sobre as obras paralisadas e inacabadas, Amazonino responsabilizou o sucessor, Arthur Virgílio Neto. “No final de minha gestão na prefeitura publicamos no Diário Oficial do Município contratos para creches no valor total de R$ 31,5 milhões, com prazo de nove meses, de agosto de 2012 a maio de 2013, para serem concluídas, por questões óbvias de tempo, nas gestões seguintes”.
Sobre as 1.000 creches prometidas, “como dizem meus opositores”,“já expliquei inúmeras vezes que minha proposta era instituir as Mães Sociais, projeto no qual mães receberiam treinamento e remuneração para cuidar de crianças do bairro”, disse. “Veja que para fazer 1.000 creches em quatro anos um gestor teria que construir, em média, 1,5 creche por dia. Tenho experiência em centenas de obras nas áreas de infraestrutura, saúde, educação e segurança no Estado. Sei o que digo”, completou Amazonino.
Com relação às creches cem prometidas em 2012, ele não negou a promessa das unidades para a primeira infância. E fez uma nova promessa para as eleições de 2022, mas desta vem não citar números. “Eleito, meu governo estará à disposição da Prefeitura de Manaus, tecnicamente responsável pela educação na primeira infância. Lembro que, quando governador, criei a mais importante obra para a educação da história do estado, a Universidade do Estado do Amazonas, que já formou e continua formando milhares e milhares de jovens”.
Para a educação, a proposta de Amazonino Mendes para as eleições de 2022 cita a valorização dos profissionais, ampliação da oferta das escolas de tempo integral e ênfase na tecnologia como área de formação e instrumento de ensino. Ele não fala em investimentos em creches ou outras questões relacionadas à primeira infância. No texto de apresentação, o candidato afirma que o plano de governo é sintético e posteriormente será complementado e aprimorado.
O acesso é constitucional
A Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei nº 9.394/96) preveem a oferta de creches às crianças da primeira infância (0 a 3 anos de idade). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por sua vez, prevê que, se o poder público não estiver assegurando o direito à creche e à pré-escola para as crianças, é possível que sejam ajuizadas ações de responsabilidade pela ofensa a esse direito.
Passados 33 anos desde a aprovação da Constituição de 1988, o atendimento em creches ainda é negado principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil e em municípios como Manaus. É o que ressalta a doutora em educação com especialização em educação infantil Ilaine Both, professora na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
“Vale ressaltar que o direito de ter atendimento nas creches é de todas as crianças, sem requisito de seleção, conforme determina a legislação, incluindo as diretrizes nacionais para a educação infantil, documento de caráter mandatório e portanto obrigatório. Isso significa dizer que, independentemente se os pais estão empregados ou não, seus filhos têm o direito de frequentar as creches. Portanto, é dever do poder público garantir a oferta de creches e pré-escolas públicas gratuitas de qualidade”, destaca a especialista.
Segundo a professora, a creche não é apenas uma saída para pais que não têm com quem deixar os seus filhos e precisam trabalhar. “É mais do que isso, ela contribui no processo de formação entre relações com outras crianças, no brincar, além de contribuir com a diminuição da insegurança alimentar. O não acesso tem efeito reverso”.
Para Ilaine, a falta de acesso à creche pode limitar o processo de formação das capacidades humanas dos bebês em aspectos como a fala, sociabilidade, construção de identidades, atenção, memória e nos saberes e conhecimentos em geral.
“Além da construção de creches, é preciso um investimento constante para que a experiência nos primeiros anos seja levada a sério. Não basta os bebês terem acesso. Há de se considerar também a qualidade social de atendimento que diz respeito às questões pedagógicas”, afirma.
Para o Grupo de Trabalho de Orçamento Público Pela Primeira Infância, criado pela Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância e coordenado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), investir na primeira infância é a maior ferramenta para garantir que crianças alcancem suas potencialidades. Apesar disso, relatório de estudos realizados pelo grupo mostra que menos de 1% do orçamento federal é destinado a políticas e ações para as crianças na faixa etária entre 0 e 6 anos.
Disputa de vaga na internet
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Para conseguir uma vaga em uma das 24 creches de Manaus, as famílias disputam um sorteio online no site da prefeitura. Quem não tem internet em casa tem dificuldade de acessar o benefício. Em janeiro deste ano, a Secretaria Municipal de Educação (Semed) sorteio 1.680 novas vagas para as creches do município.
A Semed disse, por meio da assessoria de imprensa, que não trabalha com sistema de reservas de vagas. O site de matrícula na internet fica aberto durante todo o ano letivo. “O pai ou responsável pode acessar e consultar se na unidade de ensino, que ele deseja matricular a criança, há vaga. Caso tenha, ele pode matricular automaticamente”.
Em Manaus, 5.069 crianças, com idades de 1 a 3 anos, estão matriculadas nas 24 creches da rede municipal. Sobre a quantidade de crianças que a atual gestão deve atender até 2024, a secretaria não possui previsão. “Só é possível ter essa informação no fim do ano letivo, que é quando a Semed faz o levantamento das crianças que permanecem na rede”, informou a assessoria.
A Semed diz que trabalha de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI) do Ministério da Educação (MEC) e também com o Currículo da Educação Infantil da própria secretaria. “As crianças de 1 a 2 anos, maternal 1 e 2, respectivamente, são atendidas em tempo integral, manhã e tarde. Já as de 3 anos, maternal 3, frequentam as aulas de forma parcial, atendidas nos turnos matutino e vespertino”.
Com relação à alimentação, a informação é que as crianças recebem todas as refeições na creche, que é acompanhada pela equipe da Divisão de Alimentação Escolar e Gerência do Controle de Qualidade da Semed. O cardápio está disponível no site do órgão de educação e pode ser acompanhado pela sociedade em geral.
Pais fazem vaquinha
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
No dia 11 de agosto, a reportagem da Amazônia Real visitou a creche Ana Lopes Pereira, inaugurada em 2014, na gestão do ex-prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB) e localizada no bairro Compensa, na zona oeste de Manaus. Com 158 crianças matriculadas, a estrutura chama a atenção em meio a um bairro carente de serviços públicos como o saneamento básico. As salas possuem duas professoras por turma, cores e espaços recreativos. A antiga biblioteca virou uma sala de balé e capoeira. Um banheiro foi transformado em sala de cinema.
A reportagem encontrou crianças em uma sala praticando balé. No entanto, as pessoas que ministram as aulas de capoeira e dança são voluntárias e recebem cerca de R$ 800 a R$ 1.000 por mês. O pagamento das voluntárias é feito pelas famílias, que fazem uma vaquinha de R$ 20. Os pais também arrecadam dinheiro em eventos para um fundo emergencial.
“Nós usamos também o nosso dinheiro, nosso pessoal mesmo, o que a gente conseguir vender aqui na creche, ajuda também”, acrescenta a diretora Rinalda Ortiz.
Segundo ela, os pais têm posto a mão na massa, juntamente com a direção, para tornar o ambiente acolhedor. “Eles já doaram até mesmo cimento e areia para construção de um ambiente externo chamado ‘Bosque da Amizade’”, revela.
“Aqui na gestão da dona Rinalda [diretora] ela não espera só os benefícios da Secretaria Municipal de Educação, que são demorados. Eles contemplam brinquedos, pintura, mas isso não é anualmente, não é com frequência regular. “As crianças são muito pequenas, são bebês, elas precisam de atrativos, e esses atrativos a gente procura fazer em parceria com os pais”, explica a pedagoga Ellen Lobato, que trabalha desde 2006 como educadora e usa acessórios lúdicos semanalmente para ler para as crianças.
A sala de cinema da creche, que anteriormente era um banheiro, faz parte do Projeto Nacional “Vila Sésamo”, que visa a educação financeira. Este será o primeiro ano que a creche vai receber uma ajuda de custo de R$1.200 para realizar melhorias no espaço.
“Esse ano é que a gente está recebendo essa ajuda de custo, ano passado foi livre adesão. A secretaria incentivou que todas as escolas participassem, aí a gente não recebeu essa ajuda de custo, fizemos com as promoções, com ajuda dos pais e das próprias professoras. A gente conseguiu arrecadar recursos para adaptar a sala de cinema. Este ano, além dos R$ 1.200, a gente vai fazer também as promoções, bazar, venda de guloseimas, que é para somar com o dinheiro que vai ser recebido para poder investir aqui”, complementa Ellen.
A estrutura e as refeições diárias são mantidas pela prefeitura, mas a pintura e manutenções básicas não são pagas com dinheiro público. Itens de higiene pessoal como fraldas são custeadas pelos pais. As crianças têm psicólogo, apesar do encaminhamento fora da creche ser um desafio, segundo a diretora Rinalda Ortiz.
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Evasão e abandono
Uma professora ouvida pela reportagem e que trabalha na creche pública Magdalena Arce Daou, na zona sul da cidade e que preferiu manter anonimato por medo de sofrer retaliação, disse que na unidade os pais faziam bazar para manter a creche até junho deste ano, quando foi lançado o Programa Orçamento na Escola (Proesc) da prefeitura.
O Proesc é um programa lançado pelo prefeito David Almeida em 29 de junho de 2022 com um valor de R$10, 2 milhões para garantir o funcionamento e melhorias físicas e pedagógicas nas escolas.
Segundo site da prefeitura, o Proesc é “uma solução encontrada para a gestão financeira das escolas municipais, que passam a ter autonomia para realizar pequenas manutenções nas unidades escolares, ou com atividades educacionais que contribuam para a melhoria da qualidade dos serviços prestados à população”.
Conforme a professora que preferiu o anonimato, um dos problemas na área da educação infantil é a falta de creches nos bairros em que há alta demanda, resultando numa alta rotatividade de crianças que entram nas unidades, mas não permanecem na creche devido às distâncias de suas casas. “Há uma pressão sob os profissionais que precisam alcançar metas como a não evasão para ter abonos como o 14º salário e para a instituição não ser penalizada”, disse.
“Pedagogicamente é uma coisa difícil manter porque você está sempre em processo de adaptação, as crianças estão deixando a instituição e ao mesmo tempo retorna-se com novas crianças, aquele vínculo é quebrado e o trabalho tem que ser reiniciado de tempos em tempos”, explica.
Para ela, também é comum que os próprios professores de crianças pequenas se vejam apenas como “cuidadores” na creche, por falta de educação continuada e necessidade de investimento em capacitação.
Segundo ela, 50% das crianças que estão nas creches de Manaus são de famílias nas quais as mães trabalham. O restante são de pais que pretendem deixar o filho na creche para ir atrás de emprego, fazer vendas informais ou que reconhecem o papel da creche no desenvolvimento infantil. As creches recebem também crianças de nacionalidades venezuelana e haitiana. “A gente percebe que a creche para muitas delas é refúgio sim. É lá que elas comem, sobretudo essas crianças refugiadas na primeira infância. Isso é uma realidade”, acrescenta.
A vida sem creche
Sem uma creche para estudar na primeira infância, a solução encontrada pela vendedora autônoma Lucy Hellen Dantas, cuja história abriu esta reportagem, é ensinar os primeiros passos da educação infantil à filha caçula, Heloísa Colares, de 1 ano e 9 meses, quando repassa as tarefas da filha mais velha, Lorena Sofia, de 6 anos. “Quanto eu ensino a minha maior, tudo o que eu falo, ela [Heloísa] repete certinho. Ela já fala ‘mãe, pintar, mãe, caderno’. Ela pega o pincel e tem musiquinhas do alfabeto que ela gosta”, conta Lucy, que mora no conjunto habitacional Cidadão 5, na zona norte de Manaus.
A renda da família vem do trabalho informal de Lucy. Ela vende churrasquinho na rua para contribuir com o sustento da família. Também recebe o Auxílio Brasil de R$ 600. “Mas o dinheiro não é suficiente para pagar uma creche e manter as despesas”, explica. “Eu compro comida, fraldas, mas normalmente não dá porque a menor toma mingau, então gasto muito com massa e leite”, conta.
Como o marido de Lucy trabalha o dia todo numa fábrica de colchões – ele recebe um salário mínimo -, a solução é deixar as filhas Lorena e Heloísa com a tia ou com a avó.
“Se tivesse a creche seria bem mais fácil porque eu ia ter tempo para fazer as coisas sem me preocupar. Ia poder até mesmo deixar o churrasco para poder trabalhar com carteira assinada, tudo direitinho, porque, querendo ou não, trabalhando avulsa é o dia todo varando a noite e já não tenho tanto tempo”, explica.
No loteamento União da Vitória, localizado no bairro Tarumã, na zona oeste, a reportagem da Amazônia Real encontrou na rua do Peixe-Cavalo outra creche paralisada pelo município. A obra fica a três quadras da residência da cobradora de ônibus Jaqueline Mendes, 38 anos. Ela diz que a obra vai e volta há quase dez anos e foi iniciada durante a gestão de Amazonino Mendes, em 2011.
Jaqueline Mendes conta que na gestão de Arthur Virgílio Neto, em 2013, a obra retomou. Depois parou. Ela estava grávida do filho mais velho, hoje com 9 anos. Ela disse que a esperança de acesso à creche ainda existia quando teve o segundo filho, que nasceu em 2015, e hoje está com 7 anos. Mas a obra parou de novo. Agora, com a filha de 1 ano e meio, já não acredita mais na possibilidade de ver a construção concluída.
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
A placa da construção da creche da rua do Peixe-Cavalo está rasgada, com informações inelegíveis sobre o investimento e a data de conclusão. A Transparência Brasil identificou um investimento de R$ 1.452.130,86 na obra. Segundo a organização, até dezembro de 2020, na gestão de Arthur Virgílio Neto, a prefeitura executou R$ 290.426,17 – 19,9% é o percentual de conclusão. A obra está paralisada definitivamente há 2 anos.
A área da creche fica num terreno baixo e alagadiço. Segundo os moradores vizinhos, no período das chuvas, a edificação é coberta pelas águas cerca de um metro e meio e fica alagada. A reportagem encontrou um vigia no local da obra e cães, mas o funcionário se escondeu. “As obras foram retomadas mais de uma vez, mas nunca finalizadas”, confirma outro morador, que pediu para não ser identificado.
Jaqueline sai de casa às 2h30 para trabalhar no transporte público e volta às 15h30. Do salário que recebe, R$ 1.500,00, gasta 40% para pagar uma vizinha que cuida da filha menor. Ainda tem as despesas com fraldas e alimentação. A família não recebe auxílio do governo. “Eles falaram que como eu trabalho de carteira assinada não precisava receber”.
A cobradora precisou morar na casa da sogra durante a crise da pandemia, pois o salário não deu para pagar o aluguel de R$500, mais R$ 100 de água e R$150 de luz. Ela disse que tentou conseguir uma creche da prefeitura no centro da cidade, mas nunca foi bem sucedida “A prioridade é dada às crianças que residem próximas”, diz.
Os dois filhos mais velhos de Jaqueline estudam em uma escola pública que fica na estrada da AM-010, rodovia que liga Manaus a Itacoatiara, já que também não existem vagas nas escolas do bairro União da Vitória.
“Como é que eu vou dar um futuro melhor para os meus filhos se eu deixar eles ficarem em casa? Eu quero o melhor para eles e tive que dar o meu jeito. Nós todos aqui do bairro damos um jeito para os filhos estudarem, se não for isso fica difícil”, afirma. Agora, Jaqueline conta que o “jeito é esperar a filha completar 4 anos para tentar colocá-la direto na escola, sem passar pela creche”.
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
No bairro de Santa Etelvina, na zona norte, a reportagem localizou mais uma obra de creche paralisada. A placa da prefeitura de Manaus informa que a obra, avaliada em R$1.803.740,23, deveria ter sido entregue em 2018, durante a gestão do ex-prefeito Arthur Virgílio Neto. De acordo com a informação da Transparência Brasil, essa obra foi executada até dezembro de 2020 com investimento de R$ 883.797,46.
No lugar, a vegetação encobre os muros. Dentro da edificação, há restos de materiais de construção e vestígios de vandalismo. Telhas e outros materiais foram furtados. Mas as salas da creche estão concluídas por dentro.
Da porta de casa, Maria Rosa de Araújo, 44 anos, vê a creche abandonada. “No começo a gente botava fé que ia para frente, né?”, diz. Moradora da comunidade Quadra Zilá há seis anos, ela conta que os netos deveriam estar matriculados ali.
Na casa, todos estão desempregados. A filha de Maria Rosa, que preferiu não conversar com a reportagem, havia perdido o emprego no dia anterior. Ela trabalhava em uma lanchonete na rua. Maria Rosa, que mora com a filha, o genro e os netos de 1 ano e 5 meses e 4 anos, conta que precisa revezar na busca por emprego. “Não é possível trabalhar ou procurar emprego nos mesmos horários por não ter quem cuide das crianças. A insegurança alimentar os rodeia”, diz.
Maria Rosa, que costuma fazer bicos de serviços domésticos e já trabalhou como atendente e cozinheira na venda de lanches junto com a filha, explica que a família já recusou duas propostas de emprego por falta de creche integral. “É complicado, faltam as coisas para as crianças, não temos de onde tirar. Sempre abrem as portas para a gente. Já tivemos duas oportunidades e a gente não conseguiu por esse motivo”.
Com a creche, ela pensa que as coisas seriam diferentes. A neta mais nova provavelmente não vai ter essa chance. “Seria bem melhor porque tanto eu quanto ela (a filha) iríamos trabalhar, as crianças estariam bem, num canto bem melhor. Iríamos trabalhar despreocupadas, sabendo que teria alguém de responsabilidade cuidando. A gente não tem ideia ainda do que vamos fazer, mas com o tempo vamos pensando no futuro deles”, conclui. (Colaborou Kátia Brasil)