Por Francisco Barbosa.
Em Fortaleza (CE), o bairro Jangurussu, um dos mais pobres da cidade, viu a pandemia agravar a miséria e a fome. A saída para parte dos moradores da região foi a retomada das atividades da Associação dos Catadores do Jangurussu (Ascajan), através da qual conseguiram assegurar alguma renda, além de facilitar o contato com parceiros para arrecadar doações de alimentos.
O bairro ainda sofre com o estigma de “lixão”, isso porque sua origem parte do antigo aterro sanitário que surgiu ainda na década de 1970 e que foi desativado no final dos anos 1990.
De acordo com dados divulgados pela Prefeitura de Fortaleza, Jangurussu ocupa uma área de 8,01 km² com uma população residente de 50.479 habitantes e faz divisa com sete bairros: Conjunto Palmeiras, Ancuri, Santa Maria, Messejana, Barroso, Passaré e José Walter. Além disso, está entre os bairros com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital cearense, com apenas 0,172.
Maria Lucimar Teixeira de Oliveira, presidenta da Ascajan e moradora do bairro, conta que logo no começo da pandemia, a situação ficou ainda pior, pois não tinham material para trabalhar, mas que aos poucos essa realidade foi mudando.
Atualmente, a associação, que trabalha em forma de cooperativa, conta com 65 colaboradores, esses, de alguma forma, foram prejudicados pela pandemia. Por outro lado, também conseguiram ajuda de parceiros.
“Se o caminhão hoje traz uma carrada, antes trazia meia, não dava para nós. A gente trabalhava um dia sim e outro não. Agora é que está voltando, e mesmo assim, depois da pandemia, muita gente ajudou a gente com cestas de parceiros”, explica Lucimar.
A pandemia afetou diversos segmentos econômicos, entre eles, os catadores. Lucimar conta que nesse período muitas portas se fecharam, o que dificultava conseguir os materiais para a realização dos trabalhos com reciclagem. De acordo com ela, se não fosse a ajuda de parceiros, que realizaram a doação de cestas básicas para os catadores da Ascajan, muitos profissionais teriam passado fome. “Mas graças a Deus ele colocou gente boa na nossa vida para doar esses materiais pra gente”.
Maria Isabel trabalha na Ascajan há 16 anos. Ela acrescenta que não há diálogos ou até mesmo apoio por parte da Prefeitura de Fortaleza ou do Governo do Estado do Ceará para o funcionamento da Cooperativa.
“Nós não temos apoio dessa gente. É mais fácil uma pessoa de fora chegar para conversar sobre o que estamos precisando, perguntar como tá a coleta, material… essas coisas, mas a prefeitura ou o governo mesmo não vem”.
Malvinier Macedo, diretora adjunta do Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar e presidenta do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Ceará (Consea-CE), afirma que a pandemia chegou em uma fase de retrocessos nas políticas sociais, a partir da Emenda Constitucional 95, aprovada em dezembro de 2016. Ela explica que a emenda congelou por 20 anos os gastos com saúde, educação e assistência social.
“O teto dos gastos públicos penalizou segmentos sociais que tinham nas políticas públicas uma forma de ajuda. Outro fator é o subemprego e o trabalho informal. Com a pandemia e a necessidade de cumprimento das medidas sanitárias tornou-se inviável a possibilidade de sustento para as pessoas nessas condições”, explica.
De acordo com ela, a exclusão econômica e social agravaram-se e, com isso, as famílias em situação de pobreza têm dificuldades para prover a alimentação de forma regular e de qualidade.
“Não ter a garantia de alimentação de forma regular como preconizado pela Constituição Federal, se caracteriza pela violação do Direito Humano à alimentação adequada. A insegurança alimentar, vivenciada por grande parte da população, traduz a desigualdade social onde, os ricos ficam mais ricos e aumenta o número dos deserdados do sistema”, acrescenta.
Os dados mais recentes divulgados sobre o IDH no Brasil foram calculados ainda em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As informações serviram como base para a Prefeitura de Fortaleza calcular o IDH de cada bairro da capital cearense. De acordo com o cálculo, os melhores bairros em desenvolvimento humano são: Meireles (0,953), Aldeota (0,867), Dionísio Torres (0,860), Mucuripe (0,793).
Já os bairros com baixo desempenho foram: Conjunto Palmeiras (0,119), que ocupou a última colocação, seguido de Parque Presidente Vargas (0,135), Canindezinho (0,136), Genibaú (0,139), Siqueira (0,149), Praia do Futuro II (0,168), Planalto Ayrton Senna (0,168), Granja Lisboa (0,170), Jangurussu (0,172) e Aeroporto (Base Aérea) (0,177).
Luiz Fábio Paiva, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), explica que não há uma relação de causalidade automática entre pobreza, índice de desenvolvimento humano baixo e situações de violência.
“Cada situação de violência tem um contexto, ela tem uma trama muito própria e particular, então eu posso ter diversas pessoas submetidas a um mesmo contexto social que vão ter trajetórias completamente diferentes, vidas guiadas por uma orientação não-violenta, ou podemos ter, também, situações em que, por algumas circunstâncias dessas mesmas condições sociais uma outra pessoa vai ter um tipo de comportamento violento, mas não há nada que conecte imediatamente uma coisa à outra”, afirma.
Para Luiz Fábio, esses índices de desenvolvimento humano baixo repercutem no interior da sociedade da maneira como está estruturada. Nas periferias, de acordo com ele, esses índices retratam, por exemplo, uma pior condição de acesso à escola, consequentemente, essas pessoas que adquirem menos capital escolar estão menos qualificadas para determinadas oportunidades no interior desta sociedade.
“Esse índice reflete também graves diferenciados de penúria relacionados ao saneamento básico, ao acesso à saúde, ao acesso à justiça, ao exercício da cidadania. Então todas essas situações de precariedade da vida também têm um impacto. Isso vai criando condições que, determinados grupos e pessoas envolvidas em dinâmicas criminais sabem aproveitar, e elas também sofrem os efeitos dessas contradições, elas acabam criando uma série de alternativas, entre elas, a gente vai observar, a existência em muitas dessas áreas de grupos e de coletivos criminais”.
De acordo com ele, não se pode afirmar e jogar a culpa da violência simplesmente para a população pobre, para os bairros mais pobres. “A violência tem a ver com a gerência do Estado, com a gerência das políticas públicas e, em especial, o tipo de sociedade. Então não podemos dizer que a pobreza gera violência, isso é um erro, porque a pobreza é uma questão social e uma questão de classes”.
Luiz Fábio também que não é o IDH em si que vai fazer com que exista violência em determinado lugar, mas o ele revela uma série de condições sociais que possibilitam a existência de situações e circunstâncias geradoras de oportunidades para determinados crimes. “A gente precisa olhar para esses dados de maneira complexa e não de uma maneira simplista na qual eu tento fazer uma conexão direta entre uma coisa e outra”, finaliza Luiz Fábio.
Trabalho invisível
Ela conta que hoje, na Ascajan, tem netos e filhos das pessoas que trabalharam no antigo lixão e que hoje seguem a profissão de catador. Para ela, a sociedade não reconhece o trabalho dos catadores. “Ficamos de lado porque eles nos veem como algo que não era para existir. Eu acho que eles pensam assim, mas, com certeza é um trabalho digno”.
Já Maria Glaucimar da Silva Barreto, acrescenta que começou a trabalhar como catadora aos 13 anos, no lixão do bairro Barra do Ceará, também na capital cearense, e de lá foi passando de lixão em lixão, até chegar em Jangurussu e fazer parte da Ascajan. Ela lembra um pouco da época do aterro sanitário do Jangurussu.
Questionada sobre o que mais lhe marcou na época do Lixão do Jangurussu, ela lembra que muitos catadores morriam em cima do morro atropelados pelos tratores. “Inclusive, morreu uma amiga minha que eu gostava muito dela, ela faleceu em cima do lixão, o trator matou. O que mais marca a gente é isso”.
Jangurussu em exposição
Ao Brasil de Fato, ele relembra que na época recebeu uma encomenda para pintar uma paisagem, um pôr do sol, e para isso, juntou todos os equipamentos e saiu de carro pela cidade para encontrar a “paisagem perfeita” para ser retratada em seu quadro. Depois de tanto procurar achou o local para realizar seu trabalho.
“Eu armei o material, peguei as tintas e arrumei para fazer a pintura. Vi que a paisagem estava bonita, vi uma igreja ao longe e a serra de Maranguape [município da Região Metropolitana de Fortaleza]. Quando eu estava instalado senti um mal cheiro, como se fosse um cheiro de lixo”, conta.
O local onde ele estava era uma espécie de monte, da altura de uma casa. “Eu subi nesse monte pequeno. Deixei o material lá embaixo e quando eu vi, naquele local, tinham algumas pessoas catando lixo. O caminhão que coletava o lixo da cidade vinha, derramava aquilo tudo e as pessoas corriam para pegar o que fosse possível, algum alimento, sapato… o que vinha do lixo eles aproveitavam”, lembra.
Gadelha diz que havia lido o livro Inferno, de Dante Alighiere, que compõe a obra literária “A Divina Comédia”, e confessa que ficou impressionado com a semelhança do que estava vendo a sua frente com o livro. “Quando vi aquilo eu disse ‘Meu Deus, estou vendo tudo aquilo que tá no livro do Dante Alighiere’, as pessoas comendo lixo e correndo atrás do caminhão e empurrando uns aos outros quando o caminhão chegava”.
O artista explica que naquele momento esqueceu a sua encomenda e começou a desenhar as cenas que estava vendo. “Eu me apaixonei imediatamente pelo pessoal do Jangurussu. Eu descobri que estava diante de heróis, heróis famintos, corajosos, pessoas que tinham uma coragem muito grande de sobreviver dos restos da sociedade. Isso me impressionou muito”, afirma.
“Eu tive uma vivência muito intensa com aquelas pessoas e, de repente, eu descobri que aquelas pessoas eram seres superiores, eram seres que tinham uma capacidade de resiliência muito grande. Impressionava a grandeza espiritual e moral daquelas pessoas. Ali foi uma verdadeira escola. Uma escola de humanismo, uma escola de perdão, uma escola de aceitação. Depois de meus pais, o Jangurussu foi o norte moral da minha vida”, acrescenta.
O artista ainda explica que seu objetivo não era ganhar dinheiro com essas obras e nem se projetar, tanto que essa exposição só foi executada porque o Museu da Universidade solicitou. “Eu nunca tive a intenção de ganhar louros, ganhar glórias com isso. Isso é um trabalho tão íntimo, tão pessoal que eu não quis fazer carreira em cima disso, eu fiz para mim”.
Questionado sobre suas obras de artes sobre o Jangurussu estarem no museu ele afirma que “do Jangurussu eu não fiz obras de arte, eu fiz depoimentos, lágrimas ‘plasticisadas’, dores coloridas, indignações grafadas, enfim, eu não fiz nenhuma obra de arte do Jangurussu”.