Allons enfants du Brésil

FrancePor Rafael Reginatto, para Desacato.info.*

A França, sempre ela. Só mesmo os franceses, sabedores de que o mundo do trabalho não é o mundo total, capazes de desfrutar o meio-dia à luz do sol em seus belos jardins lendo um livro, ouvindo música, gastando palavras ou o tempo a sentir na pele a brisa que ninguém mais sente, poderiam resistir à onda de barbárie contra os direitos trabalhistas que a horda conservadora vem alastrando por quase todos os países da Europa.

Só mesmo a França, referência cultural no mundo há séculos, berço artístico das grandes vanguardas cubistas, surrealistas e impressionistas poderia dar sem titubear o passo a frente, mesmo que esse passo historicamente seja um passo contrário, contracorrente, como num ballet consciente do mundo onde pisa, a caminhar sobre nuvens de gás lacrimogêneo, a enfrentar a violência do achaque aos seus direitos trabalhistas.

Os franceses, há tanto revolucionários, levantam mais uma vez sua bandeira sempre flamejante, corajosa e já desgastada da luta contra aqueles que, a despeito do savoir-faire conservador de sempre, não compreendem nem nunca compreenderão a razão que possa ter levado um povo a guilhotinar tantas cabeças, contre nous de la tyrannie.

Os franceses que sabem desfrutar seus feriados sem deixar de trabalhar, mas que compreendendo que o mundo do trabalho não é o da exploração e da doença, mais uma vez tomam as ruas do país, levantam a voz e seus cartazes, naquele hábito civil e cidadão cultuado desde 68 ou desde a sua histórica comuna de Paris, e que os torna diferentes dentre tantos iguais desiguais. Os franceses, sempre jovens, bon vivant num mundo de flores do mal como aquele que Baudelaire poetizou, agora combatem de peito aberto o ataque aos direitos trabalhistas, como já haviam rechaçado em alto e bom tom as reformas na previdência. Torcem o nariz à política econômica disseminada na Europa por Angela Merkel, como já torcem há anos o nariz para o imperialismo americano, sem nunca terem deixado de aplaudir os filmes de Woody Allen.

Se fosse possível um único filme sobre os franceses, numa epopeia ao melhor estilo Victor Hugo, teríamos, é verdade, que nos submeter às imagens tenebrosas do massacre de argelinos, sírios e tantos outros povos que Napoleão e seus discípulos franceses executaram desumanamente ao longo dos séculos. Mas se é possível nos vermos refletidos num espelho necessário nesse nosso mundo contemporâneo, creio que deveríamos ainda assim escolher o bisote, em legítimo sotaque francês. Deveríamos sim nos espelharmos naqueles que, prevendo perdas e ameaças trabalhistas, tomam rapidamente as ruas para defender seus direitos, empregos, saúde e prazer de viver. Deveríamos incorporar o espírito dos que, sob um hino cantado por todos, numa só voz, inundam com sua sensível consciência política e cultural a cinematográfica Champs-Élysées a distanciá-la dos românticos Campos Elísios, mais próxima agora dos Campos de Marte.

Ainda que nós, brasileiros, estejamos longe da França, mais avizinhados talvez à Argentina (nosso parente mais francês), precisaremos estar atentos às notícias que chegam das terras gaulesas. O último ferrolho ou maior reduto do equilíbrio entre as relações de trabalho e o ”saber viver”, modo de existência tão francês (não à toa o existencialismo de Sartre lá germinou) parece correr grave perigo. O mundo novamente volta seus olhos para o orgulho francês, bravio combatente das ruas a defender suas vidas laborais. O mundo novamente inspira uma saída para a onda conservadora que fareja o retrocesso dos direitos trabalhistas, que prega uma nova revolução industrial e tecnológica que corte cabeças, bem diferente daquela francesa. O Brasil, como bem sabemos, não está fora dessa ameaça iminente. Os inimigos dos trabalhadores se aproximam. Apáticos e anestesiados, seremos apenas tapete de rosas negras pisoteadas. Ao contrário disso, um pouco mais franceses, conscientes de nossa força unida, executaremos a nossa contramarcha.

Marchons, marchons!

Rafael Reginatto é escritor (autor do romance “Entreilha” – Editora da UFSC) e dirigente sindical do SINERGIA.

Foto: Tali Feld Gleiser.

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