Por Roberto Naime.
Filho e Melo (2012), observam que, mesmo com as delimitações e especificidades temáticas e de abordagem metodológica, que são observadas na organização de um evento científico, o Congresso Mundial de Nutrição (“World Nutrition”, no Rio de Janeiro em 2012) assumiu, de fato, as características de uma reunião de cúpula que, extrapolando as restrições de um encontro internacional de estudiosos, foi estendido ao espaço aberto e universal das questões de cidadania.
A discussão avançou ao campo dos direitos e deveres que deve mobilizar o estado democrático, a sociedade civil e as representações corporativas, na identificação, discussão de alternativas e controle social ou comunitário dos problemas humanos.
Já o primeiro dossiê da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) merece atenção. Mais do que um manifesto acadêmico ou corporativista, deve ser entendido, divulgado e, sobretudo, apoiado como um movimento de ideias a respeito de um dos problemas mais cruciais de nosso tempo que para Filho e Melo (2012) são os impactos dos agrotóxicos na saúde. É uma tomada de posição oportuna e necessária, pelos efeitos nocivos já evidenciados e dos riscos potenciais crescentes que se prenunciam pelo uso dos chamados defensivos agrícolas no Brasil.
É possível afirmar que o país é campeão mundial no uso de biocidas agrícolas e cerca de 50% dos agrotóxicos mais utilizados nas lavouras de nosso país, consta que vários são proibidos na União Europeia, inclusive em nações onde se acham as matrizes externas das empresas produtoras. Mais do que um paradoxo, este é um dolo que não pode mais ser tolerado.
Os agrotóxicos tiveram um papel notável no aumento da produção agropecuária, integrando os quatro pilares estratégicos da Revolução Verde proposta por Norman Borlaug para a rápida expansão da produção de grãos, leguminosas e cereais no mundo, sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970. Mas agora se sabe a que custo existencial. Existe quase uma epidemia de câncer que não se noticia porque não existem comprovações de todos os fatos e para não gerar alarmismos inconsequentes.
Cinco décadas após, as evidências acumuladas, seja no campo específico da produção agropecuária, seja principalmente no setor saúde e meio ambiente, conduziram a uma revisão crítica da validade destes procedimentos, como asseveram Filho e Melo (2012). Mais e mais agrotóxicos, novas e novas gerações de defensivos levaram à conclusão de que se tratava de um túnel sem iluminação de percurso e sem a presença de saída.
O próprio autor e criador da formulação, Norman Borlaug, ganhador do prêmio Nobel da Paz pela sua estratégia, reconheceu a falha de alguns pressupostos, como a mecanização indiscriminada das terras cultivadas, que gerou desertificações onde o substrato geológico era propenso a isto e as demais condições ambientais também, e a contaminação dos solos e dos produtos agropecuários.
A “Primavera Silenciosa”, de Carson, também ganhadora do Prêmio Nobel, acendeu o sinal amarelo para a presidência da República nos Estados Unidos, que era (como ainda é) o maior país exportador de alimentos do mundo. Na época, o presidente John Kennedy criou um grupo para estabelecer medidas de acompanhamento e controle para a produção, comercialização e utilização de agrotóxicos no país. Os Estados Unidos aplicavam, então, cerca de um quilo e meio desses produtos por hectare e caminhavam para a marca de dois quilos.
Hoje no Brasil se usa não dois quilos de defensivos agrícolas por hectare, mas quase cinco quilos por habitante! E estamos ainda, permissivamente, com o sinal verde aberto, detendo o título nada recomendável de campeão mundial no uso de venenos na agricultura, contaminando águas continentais e oceânicas, solos e plantas, animais terrestres e aquáticos e pessoas de todas as idades com os efeitos nocivos de seu manejo, inalação e ingestão.
É um risco que sofreu disseminação e se universalizou. Em nosso país, todos as pessoas, diariamente, em praticamente todas as refeições, ingerem um pouco de resíduos de agrotóxicos. Como se fossem condimentos naturais da culinária nacional. Até o leite materno, o mais natural, mais puro e mais completo dos alimentos para as fases iniciais da vida extra-uterina, é veículo de biocidas produzidos pelas fábricas de insumos agrícolas, conforme assinalam Filho e Melo (2012).
Filho e Melo (2012) ressaltam que os dados compilados são impressionantes. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na safra de 2010/2011, a venda de agrotóxicos no Brasil movimentou 936 mil toneladas, gerando movimento de 7,3 bilhões de dólares, o que corresponde a quase 20% de todo o gasto mundial. Isto remete os Estados Unidos, a uma participação de 17% no mercado global.
Nos quase 100 milhões de hectares cultivados com lavouras permanentes ou temporárias no território nacional, são pulverizados 12 litros por hectare com exposição média, seja por exposição ambiental, de natureza ocupacional ou ainda de resíduos de agrotóxicos em alimentos. Isto corresponde a cerca de 5 litros por habitante. No entanto, por diferentes razões, são as mulheres e as crianças, notadamente no período gestação ou lactação, que mais se expõem aos perigos desses venenos, impropriamente chamados de defensivos.
Mantidas as tendências atuais, a situação deve se agravar nos próximos dez anos. Espera-se que a produção de “commodities”, representada sobretudo por monoculturas que são muito vulneráveis por este fato e são químico-dependentes, deva aumentar em 55% para a soja, 56% para o milho, 45% para o açúcar, 50% para o leite e em torno de 30% para os três principais tipos de carne, que são bovina, suína e carne de frango, que usam maciçamente soja e milho em suas rações.
É a diversidade de plantas cultivadas e animais domésticos, e a sua capacidade de se adaptar a condições ambientais como clima, solo e vegetação dentre outros, e também as necessidades humanas específicas, que asseguram aos agricultores a possibilidade de sobrevivência em muitas áreas sujeitas a “estresses” ou vulnerabilidades ambientais.
Parece que os nativos que precederam os colonizadores europeus tinham claro conhecimento ou sabedoria tradicional desta realidade. Não é veneno que vai substituir este cenário de equilíbrio.
É o cultivo de espécies diversas que protege os agricultores, em muitas circunstâncias, de uma perda total da lavoura, em casos de peste, doença, seca prolongada e outras. Todas as monoculturas vegetais ou animal, apresentam bases genéticas muito reduzidas, e ocorre que as pestes, doenças e outras efemérides que atingem a única espécie cultivada ou criada, vulnerabilizam muito os sistemas em que a cultura ou criação está inserida.
Como se vê, as mesmas apropriações são válidas para os cultivos vegetais e as criações restritas de animais, como aviários, pocilgas e outros arranjos, centradas em monoculturas animais, em vez de monoculturas vegetais.
Existe uma variedade de consequências crônicas menos perceptíveis causadas pelos agrotóxicos. Sem detalhar aqui a especificidade dos produtos (inseticidas, fungicidas e herbicidas), o documento original do primeiro dossiê da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) menciona como manifestações de intoxicação crônica os efeitos neurotóxicos retardados, alterações cromossomiais, lesões hepáticas e renais, neuropatias periféricas, disfunções cardíacas, dermatites de contato, asma brônquica e doença de Parkinson.
Também discorre sobre teratogêneses (que são más formações fetais), diversos tipos de câncer, fibrose pulmonar, hipersensibilidade, deixando em aberto a relação de outras consequências menos comuns ou menos estudadas. A atualização desta lista, sem dúvida seria bem mais extensa.
Filho e Melo (2012) discorrendo sobre saúde materno-infantil, citam um livro que já se tornou um clássico, chamado “O Camponês e a Parteira”, de Michael Odent. Traduzido em várias línguas e reproduzido em diversas edições, trata de uma analogia temática, conceitual e alegórica entre a industrialização do parto, com a massificação das cesarianas e a industrialização da moderna agricultura e da pecuária, mediante sucessivas inovações tecnológicas, entre as quais se ressalta a demanda crescente e diversificada dos agrotóxicos.
Mas, ao mesmo tempo e na mesma proporção, aumentaram as anomalias congênitas nos fetos, como hipospádia, que é uma deformidade nos órgãos genitais, em que, no homem, a uretra se abre por baixo do pênis e na mulher, a uretra se abre dentro da vagina. Sem falar nas teratogêneses causadas pelo uso de mercúrio para amalgamar ouro em garimpos que aumentaram significativamente os índices de cegueira em nascituros. Demonstra ainda, diferenças bem significativas, na ocorrência de “déficit” de desenvolvimento mental nas crianças.
O agravamento da situação, ao ritmo em que está ocorrendo, poderia, no futuro, resultar na necessidade de que, antes da concepção, as mulheres tenham de se submeter a um processo de desintoxicação de seus depósitos de agrotóxicos acumulados no organismo para reduzir as graves consequências para seus conceptos. Seria uma fase inteiramente nova da assistência pré-natal. Ou melhor, pré-concepcional, segundo Filho e Melo(2012)
Desta forma se compromete a resiliência dos ecossistemas, que se tornam mais vulneráveis ao ataque de pragas, secas, mudanças climáticas e outros fatores de risco.
A civilização determinará nova autopoiese sistêmica, que contemple a solução dos maiores problemas e contradições exibidas pelo atual arranjo de equilíbrio. Que é um sistema instável, muito frágil e vulnerável e impor uma metamorfose efetiva.
1. Carneiro FF, Pignati W, Rigotto RM, Augusto LGS, Rizollo A, Muller NM, Alexandre VP, Friedrich K, Mello MSC. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2012. 1ª Parte. 98 p.
2. Borlaug NE. Feeding a human population that increasing crowds a fragile planet. Acapulco, MX: International Society of Soil Science; 1994. 15 p.
3. Carson RL. Silent Spring. Greenwhich: Fawcett; 1962.
4. OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde). Ministério da Saúde do Brasil. Secretaria de Vigilância Sanitária. Manual de Vigilância de populações expostas a agrotóxicos. Brasília, DF; 1996.
5. Odent M. O Camponês e a Parteira: uma alternativa à industrialização da agricultura e do parto. São Paulo: Ground; 2003. 189 p.
6. Filho, Malaquias Batista e Melo Mariana Navarro Tavares de. Alimentação, agrotóxicos e saúde. Rev. Bras. Saúde Mater. Infant. Vol 12 no 2 Recife, Apr/June 2012
Dr. RobertoNaime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
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Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Fonte: EcoDebate