Alienação e drogas

Por Douglas Kovaleski, para Desacato. info.

O texto dessa semana propõe-se a discutir o abuso de drogas sob o olhar da alienação em Marx de modo a tornar essa releitura da teoria marxista, cada vez mais aplicada à compreensão do tempo em que se vive e capaz de produzir avanços para o vida concreta das pessoas e das políticas.

Inicio resgatando a contribuição de Marx que dedicou-se a explicar o modo de produção capitalista por meio das relações de exploração estabelecidas entre os detentores dos meios de produção e a classe explorada, revelando as lutas que se travam entre as classes sociais. Para Marx, o valor da mercadoria significa o trabalho humano incorporado, transformado e objetivado em sua forma final que se torna um objeto de consumo e que atende a determinadas necessidades humanas. No âmbito das relações sociais aquilo que é notado imediatamente pelos nossos sentidos e percepções é somente a aparência da mercadoria, ou seja, a sua expressão enquanto valor de troca e enquanto valor de uso. Assim o ser aparente das mercadorias esconde o seu real valor, o trabalho humano.

A mercadoria satisfaz necessidades humanas, porém o seu valor está escondido, não aparece como tal. O trabalho humano se torna valor embutido no ser das mercadorias, o trabalho já capitalizado, alienado do seu criador, expropriado, tornado objeto do capital. O homem utiliza e troca o próprio trabalho valorizado no ser das mercadorias, sem ter consciência disso. Para Marx, a essência do homem, que é o trabalho, fica perdida do seu criador, expropriada, o trabalho fica alienado no sistema de produção, estranhado. O produto do trabalho não pertence mais ao homem livre já que a força de trabalho é usurpada pelo dono do capital o que o submete enquanto mercadoria para finalidades de multiplicação do capital e o aliena de si mesmo. Bottomore descreve as várias formas de produção da alienação em Marx. Segundo Marx, os seres humanos não só alienam parte de si mesmo na forma de Deus, como também aliena outros produtos de sua atividade espiritual na forma de filosofia, senso comum, arte, moral; aliena os produtos de sua atividade econômica na forma de mercadoria, do dinheiro, do capital; e aliena produtos de sua atividade social na forma de Estado, do direito, das instituições sociais. Há muitas formas nas quais o homem aliena de si mesmo os produtos de sua atividade e faz deles um mundo de objetos separado, independente e poderoso, com o qual se relaciona como um escravo, impotente e dependente. Mas o homem não só aliena de si mesmo seus próprios produtos, como também se aliena de si próprio da atividade mesma pela qual esses produtos são criados, da natureza na qual vive e dos outros homens. Todos esses tipos de alienação são, em última análise, a mesma coisa: são aspectos diferentes, ou formas, da alienação do homem, formas diferentes da alienação que se produz entre o homem e a sua “essência” ou sua “natureza” humana, entre o homem e sua humanidade.

Essa relação que parte da economia, expande-se para todos os setores da vida e, portanto da psique humana, para consolidar esse modo de produção que por isso é totalizante. Ao mesmo tempo em que o homem se distancia de seu ser (essência pelo trabalho), as mercadorias ganham vida. A propriedade das mercadorias se torna a razão do viver em sociedade marcando dessa forma os contornos da subjetividade, a partir da valorização do ter, do acúmulo, do ser aparente, da aparência das coisas.

A consciência é orientada pelas condições objetivas da reprodução da vida social. Está submetida ao modo de produção e à reprodução das relações sociais. As relações sociais estão permeadas pela necessidade da propriedade (tendo como maior representante o dinheiro) e dificilmente se tem consciência do quanto o homem está subjugado pelo poder das mercadorias. Assim a alienação para Marx significa a passagem do valor que é próprio do trabalho humano para os objetos de sua criação (religião, ídolos, mercadoria, etc.). A consciência alienada é a impossibilidade de percepção da condição de assujeitamento do homem aos seus produtos criados.

Mas a teoria marxista, especificamente na discussão da alienação nos permite olhar para um fenômeno social de intensa repercussão na sociedade atual que é o abuso de drogas. Tema esse que segue saturado de interpretações que abordam o tema como: os “malefícios” das drogas, para justificar perseguição a determinadas minorias e povos; ou o domínio dos produtos para finalidades econômicas. Produtos que no capitalismo tomam a forma de mercadorias, que marcam os processos de alienação no trabalho e no estabelecimento de novas necessidades alienadas.

As concepções dominantes neste campo explicam o consumo de drogas como resultado de uma equação simplificada em que os sujeitos em busca de satisfazer necessidades de alteração da psicoatividade, seriam destituídos de consciência e capacidade de escolha. O simplismo chega ao ponto de se veicular uma espécie de fé no poder de coerção da substância sobre o sujeito, ou seja, a droga dotada de efeitos psicoativos traria em si o poder de dominação da vontade e da consciência.

Apesar de os efeitos negativos das políticas oficiais para o campo das drogas estarem sendo bastante estudados por diversos autores pelo mundo, as insuficiências de explicações radicais mantém o problema intocado. Dessa forma, é necessário abordar alguns valores sociais e o cotidiano para trabalhar o tema.

Vive-se um momento de grandes transformações nas relações que os homens estabelecem entre si e com a sua produção social, política, econômica e cultural. Momento em que o capital financeiro atinge seu ápice de especulação, o que afeta em nível global as relações sociais, multiplicando as formas de exploração do trabalho entre países e grupos detentores e centralizadores da riqueza produzida socialmente. No mesmo sentido, aumentam o individualismo e a competitividade, no que denomino todos contra todos. Nesse cenário observa-se um aumento aceleradíssimo das injustiças sociais, da miséria e da pobreza concomitante a um distanciamento do Estado como lócus de promoção do bem estar social. No caso do Brasil, o contexto neoliberal aprofundou as desigualdades sociais e impediu a política social de concretizar direitos sociais conquistados formalmente, como no caso do SUS.

É nesse contexto que o sistema global das drogas toma a sua forma atual infiltrando-se nos vários rincões da vida social, tanto na dimensão da produção, quanto de comércio e consumo. Essas dimensões não produzem efeitos de forma separada, como a ideologia dominante busca difundir. A demanda crescente pelo consumo de substâncias psicoativas se liga às leis do mercado, que dada a intencionalidade capitalista precisa sempre crescer e nesse sentido a produção e o consumo estão irremediavelmente conectadas. Isso ocorre com todo o circuito de mercadorias, cabendo aqui assinalar as particularidades no caso das drogas. As contradições das políticas internacionais e brasileiras para o campo das substâncias psicoativas assinalam algumas dessas particularidades. As políticas separam as substâncias psicoativas em grupos distintos, mas que não guardam semelhanças de periculosidade, como é o caso da maconha, da cocaína e da heroína, no grupo de substâncias ilícitas. Também é o caso do álcool, do tabaco e dos medicamentos psicotrópicos na sua ampla variedade no grupo das substâncias lícitas.

O reconhecimento da droga como mercadoria implica a consideração do seu fetiche para além das propriedades psicoativas de alteração dos estados de consciência. Há que se reconhecer pelos critérios científicos da psicofarmacologia que essas substâncias desencadeiam determinados estados mentais que propiciam aos usuários múltiplas vivências de sensações prazerosas, de êxtase e de alívio de sofrimento mental em níveis diversos de intensidade. Isso talvez explique o interesse sempre presente na história da humanidade pelos psicoativos. Também algumas disciplinas têm aliado as explicações psicofarmacológicas a determinados sujeitos que apresentariam características psicológicas propensas a adquirir dependências.

A forma-mercadoria das substâncias psicoativas está indissociavelmente relacionada com o trabalho alienado no capital, ou seja, é produzido nos mesmos moldes de produção dos demais produtos, nesse modo de produção que torna o próprio trabalho uma mercadoria. As relações mercantilizadas enquanto formas de regularização capitalista se naturalizam no processo da vida social e dificultam a percepção da relação fetichizada com os produtos dos processos de produção. Também a satisfação de necessidades pelas substâncias psicoativas aparece para o consumidor como uma experiência puramente corporal de modificação de sensações e formas de percepção de sua condição física e psíquica, como sendo um tipo de relação natural e não uma construção social, reforçando o efeito fetiche e a alienação.

Na lógica do Capital, os trabalhadores se tornam mais pobres quanto mais riquezas produzem. A valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.

O conceito de fetiche da mercadoria pode nos auxiliar, pois aponta para uma identidade profunda que une a prática da troca de mercadorias à adoração de objetos inanimados. A droga é assimilada no imaginário social, desde sua eleição como um mal a ser combatido, no início do século XX, até seu acirramento com a guerra contra as drogas, à maneira das “crenças mágico-religiosas” que atribuem poderes mágicos à substância. Se o fetiche significa a atribuição de poder a um objeto feito mercadoria, a droga como tal assume poderes enigmáticos nas subjetividades dos sujeitos no contexto atual. É inegável, tanto pela experiência histórica do homem como por algumas evidências da psicofarmacologia, que o consumo de uma substância psicoativa produz efeitos concretos de alteração da psicoatividade. Mas o poder de aprisionamento no objeto não se resume a essa experiência sensorial e sim ao efeito fetiche que mistura componentes “místicos” (e não é a toa que várias frentes que lançam enunciados contra as drogas têm vertente religiosa) ao seu estatuto de mercadoria com o concomitante temor da perda da razão e da liberdade, ficando o sujeito à mercê do impulso e da experiência emocional, como se fossem incontroláveis. Se a constituição de um fenômeno na história humana marca somente o seu caráter maligno, como é o caso das drogas (em especial as ilícitas), certamente esse aspecto vai ser preponderante como uma marca simbólica nas subjetividades, socialmente constituídas. O que realça o valor-fetiche capitalista é que a produção de drogas, seja no âmbito lícito ou ilícito, se manteve em ascensão como qualquer outra mercadoria, pois esta é a finalidade do capitalismo: produzir mais mercadorias já que a razão de ser é a ampliação e multiplicação do capital mesmo que signifique a exploração, a opressão e a perda de valores essenciais para manutenção da vida.

Compreender o fetiche das substâncias psicoativas na forma-mercadoria requer considerar as novas necessidades que vão se constituindo no contexto do capitalismo. As necessidades que impulsionam o consumo de substâncias psicoativas, também se alienam como formas humanas naturais de satisfação pelos objetos, produzindo marcas na subjetividade, daí a necessidade de repetição da experiência. Dessa forma, se constitui uma relação de consumo que inclui as necessidades alienadas nos objetos, tornando-os inseparáveis do processo de busca de satisfação e realização humana. Ou seja, a busca de satisfação e realização é projetada na mercadoria. Reforça-se enfim uma atmosfera propícia para a reprodução e ampliação do capital.

Assim, apesar dos esforços de controle e repressão, a produção e o comércio tendem a crescer desenvolvendo mecanismos mais sofisticados para fazer chegar o produto ao consumidor potencial, tornando este mais atrativo e modelado aos diversos públicos. Neste sentido, o “poder exercido” pela substância não estaria restrito às necessidades de alteração da psicoatividade, mas em primeira instância ao seu poder enquanto mercadoria, ao fetiche do Capital.

O consumo de substâncias psicoativas na contemporaneidade não está desvinculado do consumo das mercadorias em geral, dos mecanismos alienantes de exploração do trabalho como mercadoria a serviço da multiplicação do capital. Pois no campo dos valores socialmente construídos, a sociedade de mercado, estimula o prazer, obtido pelas sensações, pelo corpo, que passa a adquirir valor maior na constituição da subjetividade e dificulta a participação e o compromisso dos indivíduos no objetivo de bem comum. Uma vez que prolongar a excitação é também a maneira de prolongar as sensações físicas, os indivíduos devem recorrer a objetos – dentre eles, as drogas – para estimulação permanente de variadas formas. Nesse contexto, a droga apresenta-se como uma mercadoria potente para responder a essas necessidades de valorização do fugaz e de enaltecimento do prazer imediato. Não é à toa que ela vem se colocando como uma opção de consumo importante para mitigar os desgastes advindos do desemprego e da flexibilização do trabalho, da desproteção social e da substituição dos laços de solidariedade pelas armadilhas da competição.

O consumo das mercadorias é estimulado por complexos e cada vez mais poderosos mecanismos de criação de comportamentos de consumo compulsivo. A criação de uma sociedade viciada em alimentos, em roupas, em carros, em times de futebol, em esportes, pressionados pela indústria da quebra dos recordes. As pessoas viciam-se literalmente em suas próprias endorfinas, quando não tomam simplesmente aditivos hormonais ou excitantes. Diversas práticas como o alpinismo ou a direção de carros velozes, tomam a mesma dimensão viciante e socialmente arriscada de certos consumos de drogas.

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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.

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