Por Rodrigo Gomes.
Acabou frustrada na tarde de hoje (26) mais uma tentativa de esclarecer a composição, os estudos e os interesses por trás da proposta do prefeito da capital paulista, João Doria (PSDB), de distribuir uma espécie de “ração humana” – chamada oficialmente de Farinata – à população de baixa renda. A base do prefeito na Câmara Municipal não deu quórum a uma reunião da Comissão de Saúde para discutir o tema com especialistas em nutrição.
“Eles estão bastante preocupados com a repercussão negativa que teve o tema da ração humana. Acredito que foi uma articulação do governo para evitar responder aos questionamentos. Quais as empresas que vão fazer a doação? Qual vai ser o abatimento de tributos? Qual a composição nutricional da farinata? Enfim, uma série de perguntas que vão continuar sem resposta”, disse a vereadora Sâmia Bonfim (Psol), membro da comissão.
Ontem, a vereadora protocolou requerimento pedindo a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara para apurar os interesses e a segurança da ração humana na alimentação. O pedido tem a assinatura de outros 18 vereadores e conta ainda com o apoio de 60 mil pessoas que assinaram uma petição online reivindicando a criação da comissão.
A ideia da gestão Doria é receber doações de sobras de alimentos que seriam descartados pela indústria ou comércio e processá-los para produzir um “granulado nutricional” que será distribuído à população de baixa renda. Os doadores vão receber benefícios econômicos e isenção de impostos. Em seu site, a Plataforma Sinergia, parceira da prefeitura, diz ter desenvolvido “um sistema de beneficiamento de alimentos que não são comercializados pelas indústrias, supermercados e varejo em geral. São alimentos que estão em datas críticas de seu vencimento ou fora do padrão de comercialização”.
A nutricionista Mariana Garcia, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e membro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, ressaltou que a política contraria o direito humano à alimentação saudável e as políticas municipal e nacional sobre o tema. Ela também disse que o objetivo da segurança alimentar é que as pessoas estejam livres da fome e com acesso a alimentos adequados, seguros e não sujeitos ao interesse da indústria.
Para ela, a política da gestão Doria vai na contramão de tudo isso. “É preciso ter equidade. Quem está em pior condição de nutrição devia receber os melhores alimentos”, afirmou. Mariana ainda pontuou que é preciso analisar a situação brasileira ao pensar em ações desse tipo.
“Em 2004 tínhamos 7% da população subnutrida. Em 2013 eram 3%, situação que nos tirou do mapa da fome. O que fez isso foram políticas estruturantes, valorização do salário mínimo. O que causa a fome não é o desperdício de alimentos, mas a falta de políticas públicas”, afirmou, ressaltando que o Plano Nacional de Segurança Alimentar e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU, não têm nada que se relacione à proposta de Doria.
A presidenta do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Comusan-SP), Christiane Araújo Costa, disse que as políticas inseridas nesses planos colocam o Brasil na condição de referência em segurança alimentar e combate à fome. “As políticas integradas, como a compra pública de produtos da agricultura familiar e a política de alimentação escolar são referência internacional muito forte”, afirmou.
Christiane lembrou que o Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional está praticamente parado, já que a Câmara Intersecretarial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) – responsável por definir o orçamento e as metas anuais – não se reuniu nenhuma vez desde o início da gestão Doria. “Temos de discutir políticas públicas e essas medidas têm de ser debatidas com os projetos de Bancos de Alimentos, Hortas Urbanas, consultar especialistas, ouvir os conselhos”, defendeu.
Nesta tarde, um grupo de entidades ligadas à saúde, segurança alimentar e defesa do consumidor encaminhou denúncias e representações à Defensoria Pública e ao Ministério Público Estadual e Federal sobre o Programa Alimento para Todos. As organizações querem providências no âmbito administrativo e judicial, argumentando que a proposta é inconstitucional, pois violaria a dignidade da pessoa humana e o direito humano à alimentação adequada, bem como não foi analisado e aprovado pelos órgãos de controle social do município.
O Ministério Público já instaurou inquérito para apurar a composição e a segurança da ração humana. Além disso, os Conselhos Federal e Regional de Nutricionistas já se manifestaram contra a proposta da gestão Doria, entendendo-a como um retrocesso. Na semana passada, a FAO, agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para alimentação e agricultura, negou qualquer tipo de apoio à ração humana. A Plataforma Sinergia utiliza o logotipo da FAO em seu site, informando que ela seria apoiadora da iniciativa.
Fonte: Jornal GGN