Por Prabhat Patnaik.
O ataque do coronavírus tem sido muito menos letal do que a Gripe Espanhola de um século atrás. Aquela afectou 500 milhões de pessoas à escala mundial, cerca de 27 por cento da população do mundo naquele tempo, e teve uma taxa de mortalidade de cerca de 10 por cento entre os afectados. (As estimativas de mortes variam muito, isto é uma espécie de média). Só na Índia estima-se que 17 milhões de pessoas morreram por causa dela. Em contraste, o coronavírus, até à data, afectou menos de 100 mil pessoas em todo o mundo e tem uma taxa de mortalidade de cerca de três por cento entre os afectados.
O curso que esta pandemia seguiria ainda não está claro. Pandemias apresentam padrões estranhos. A Gripe Espanhola de 1918, depois de mostrar uma aparente remissão, reemergiu de uma forma muito mais virulenta numa segunda rodada, em Outubro de 1918, até que depois desapareceu completamente num curto espaço de tempo. O curso da actual pandemia é igualmente imprevisível.
Mas certas lições básicas da mesma já estão claras. Se a pandemia desaparecesse em breve, então o preço pago por não prestar atenção a estas lições teria sido pequeno. Mas no caso de ela perdurar, pode haver consequências desastrosas precisamente por não termos aprendido estas lições no passado. Duas em particular são importantes.
A primeira relaciona-se com a necessidade absoluta de haver um sistema público de saúde que cubra toda a população. Até agora, como houve apenas cerca de 140 casos na Índia, eles poderiam ser tratados em instalações públicas de cuidados de saúde com planos especiais. Além disso, como os números dos testados para o vírus tem sido igualmente pequenos, tais testes têm sido executados em instalações públicas sem muita dificuldade. Mas se os números, tanto dos que precisam ser testados como daqueles infectados, aumentarem, então as instalações públicas de saúde, as quais de qualquer modo são escassas e têm sido reduzidas ao longo do tempo, tornar-se-ão absolutamente inadequadas para enfrentar esta tarefa. E uma vez que instalações privadas de saúde não farão os testes ou o tratamento sem cobrar quantias exorbitantes, um grande número de pacientes sofrerá simplesmente por falta de meios suficientes. A absoluta natureza de classe do caos desencadeado pela pandemia então avançará como uma vingança.
Se o governo, tendo em vista a situação de emergência, pudesse forçar hospitais privados a testarem e tratarem pacientes gratuitamente, então a questão poderia ser diferente. Afinal de contas, até à data não há mesmo qualquer disposição na Índia para hospitais privados admitirem e tratarem pacientes sem pagamentos em todos aqueles casos em que a hospitalização é “não-opcional” (“non-elective”), tais como para vítimas de acidentes ou aqueles que sofrem ataques cardíacos súbitos ou convulsões. Mesmo os Estados Unidos, o país do mundo mais conduzido pelo mercado, tem uma tal disposição em vários dos seus estados: em todos os casos de tratamento de emergência, nomeadamente tratamento “não-opcional”, incluindo mesmo grande cirurgia e o direito a cuidados de saúde pós cirurgia até finalmente o paciente ter alta, o hospital nada cobra mesmo quando não há cobertura de seguro. Mas na Índia, apesar de hospitais privados beneficiarem-se de disposições do governo para terra barata e de outras concessões, não há obrigação de tratarem (a não apenas providenciarem primeira ajuda) todos os casos “não-opcionais”) gratuitamente.
Nosso sistema de saúde, por outras palavras, no qual a dependência do sector privado tem aumentado muito ao longo do tempo, torna-nos singularmente incapazes de enfrentar esta pandemia se ela se tornar grave. Tais pandemias têm-se tornado mais frequente em consequência da globalização, ainda que nenhuma delas tenha adquirido a virulência da pandemia de gripe de 1918. Mas a necessidade absoluta de um sistema público de saúde para impedir o sofrimento em massa no caso de uma tal pandemia é enfatizada por esta última.
A segunda lição a aprender é a necessidade absoluta de ter um sistema público de distribuição para bens essenciais. Muito tem sido escrito sobre o efeito desta pandemia sobre a recessão mundial. O facto de a China, a qual até recentemente fora a economia de crescimento mais rápido do mundo, foi o epicentro desta pandemia e sofreria de uma redução da produção, implica uma redução na procura agregada mundial. Da mesma forma, sua incapacidade de fornecer inputs ao resto do mundo também teria um efeito constrangedor sobre o produto mundial. Além disso há a queda drástica do tráfego turístico e no tráfego de passageiros que atingirá duramente as companhias aéreas e os hotéis, dentre outras indústrias, e têm efeitos multiplicadores adicionais. Assim, a economia mundial está destinada a contrair por causa desta pandemia.
Mas há um outro aspecto que tem atraído menos atenção. A virtual auto-quarentena de milhões de pessoas impulsionaria a procura para todo um conjunto de bens essenciais, não apenas para acumulação destinada ao consumo durante o período em que a pandemia está a devastar, mas, num grau ainda maior, por temor de esgotamento pelo facto de outros estarem a acumular stocks desesperadamente. Quando pessoas esperam ficar confinadas nas suas casas por um longo período de tempo, a tendência à acumulação de stocks verifica-se e, não é de surpreender, também demasiado além das suas necessidades. Além disso, a antecipar uma escassez decorrente de tal acumulação excessiva de stocks, especuladores açambarcarão bens, o que por sua vez contribuiria para elevar os seus preços. Portanto, em conjunto a escassez aguda será criada por um conjunto de commodities essenciais devido a esta pandemia.
Isto de facto já começou a acontecer, mesmo na Índia apesar da ainda baixa incidência da pandemia aqui. Mas a situação é provável que se torne mais aguda nos próximos dias, o que terá um impacto desastroso sobre os trabalhadores. Pode-se argumentar que desde que estivessem cobertos pelo sistema de distribuição público, ninguém se deveria preocupar demasiado neste campo. Mas este argumento está errado por duas razões: primeiro, nem todas as commodities essenciais são distribuídas pelo sistema de distribuição pública e, segundo, nem todos os trabalhadores estão cobertos pelo sistema de distribuição pública. Desde que a distinção entre [cartões de racionamento] APL (acima da linha de pobreza) e BPL (abaixo da linha de pobreza) foi introduzida – e o sistema de distribuição pública a preços subsidiados foi confinada apenas à última categoria, grande número de pessoas foi deixada fora do seu âmbito. O desaparecimento de bens do mercado devido à excessiva acumulação de stocks, suplementado pelas nefastas actividades dos açambarcadores, irá atingi-los duramente, razão pela qual um sistema de distribuição pública abrangente a vender todo um conjunto de bens essenciais, e não apenas cereais, torna-se essencial.
Sua necessidade torna-se evidente em períodos como este. Mas uma vez que períodos como este têm-se tornado mais frequentes, há uma razão adicional para ter um sistema de distribuição pública (SDP) universal, a vender um conjunto de bens essenciais, como uma característica permanente da economia.
Dito de modo diferente, uma pandemia da espécie que estamos a atravessar actualmente constitui uma situação de guerra. Tal como numa guerra, a escassez não só decorre como é criada artificialmente através do açambarcamento de stocks pelos especuladores, para o qual a distribuição pública universal se torna um antídoto essencial. Assim, a actual pandemia exige um SDP universal. E dada a maior frequência de tais pandemias, precisa ser uma característica perene da economia.
Tanto um sistema público abrangente de saúde como um sistema de distribuição pública universal foram considerados desiderata importantes durante o regime dirigista. O neoliberalismo pôs um fim a ambos. Incentivou a privatização de serviços essenciais como educação e saúde. E insistiu em induzir grandes traders privados, incluindo empresas multinacionais, no mercado de cereais. De facto, os países avançados nas negociações da OMC queriam que a Índia removesse virtualmente seu SDP através do encerramento do sistema de compras. Mas nenhum governo indiano podia ousar fazer isso, razão pela qual ainda temos um SDP truncado apenas para os [cartões de racionamento] BPL. O regime neoliberal, em suma, que tem efectuado estas mudanças, também expõe o país a frequentes pandemias que exigem exactamente uma reversão de tais mudanças.
Na verdade, a lição geral da actual pandemia é no sentido de reverter a direcção a que o neoliberalismo nos forçou, introduzir um sistema público e abrangente de saúde e um sistema público de distribuição universal. Caso contrário muitas vidas preciosas serão perdidas desnecessariamente.
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/0322_pd/some-basic-lessons-pandemic . Tradução de JF.