Alba Roballo: os muros invisíveis da América Latina

Por Gilson Caroni Filho*.

“As idéias são cárceres de longa duração”, dizia Fernand Braudel. Cárceres que aprisionam geração após geração, e dos quais é muito difícil escapar, não só pela invisibilidade dos seus muros, mas também pela sua imperceptível reprodução.

Quando os anos de ditadura (1973-1985) fizeram com que os uruguaios, de alguma forma, esquecessem ou perdessem, em meio a tanto medo e repressão, aquele orgulho por sua democracia, que era uma parte integrante do próprio “ser nacional”, uma mulher, entre tantos outros resistentes, se dispôs a reconstruir o imaginário de uma sociedade civil dinâmica, marcada , até a chegada dos militares ao poder, pela convivência democrática, a livre exposição de ideias e uma poderosa organização partidária e sindical.

Alba Roballo, senadora da Frente Ampla, foi a primeira mulher latino-americana a ocupar um ministério (Cultura) e dele saiu pouco antes de os primeiros estudantes caírem assassinados nas ruas de Montevidéu por um regime que implantou medidas de exceção e abriu caminho para o golpe de estado.

A ditadura uruguaia respondeu a uma política global do imperialismo norte-americano, que tinha por objetivo reverter todo o quadro político do continente, evitando que a democracia liberal – que em geral tinha estado associada aos sistemas vigentes – derivasse em regimes de conteúdo popular e matiz socialista. Militante e escritora, a senadora sabia o significado mais profundo da Frente Popular: um movimento anti-imperialista e anti-oligárquico, um projeto que não se limitando a uma conjuntura determinada, visava a uma nova opção de poder no país.

Como escritora, a partir de 1973, viveu a anti-criação. Como política, sua condição de cassada lhe criou a angústia de ser morta em plena vida inquieta e combatente. Costumava definir a condição de proscrita de forma cortante: “É terrível, não a desejo para ninguém. Colocar um ser vivo no cal ou torná-lo cinza é um ato de crueldade e de injustiça feroz e principalmente se não fizemos nada para merecê-lo”.

Mas a dirigente política jamais se permitiu ser pessimista. Nem na inteligência nem na vontade. A presença maciça do povo nas ruas, o avanço no acerto de ações comuns entre partidos políticos legais e os colocados na ilegalidade pelos militares, a unanimidade dos dirigentes e das bases na exigência de uma nova democracia que permitisse à cidadania uruguaia ser protagonista da própria história, eram o combustível que alimentava sua crença e sua poesia.

Sua motivação para seguir na luta era o destino dos milhares de presos políticos, entre eles Líber Seregni, presidente da Frente Ampla, preso em Montevidéu desde 1974, Jaime Pérez, Massera, Pietrarroia e muitos outros, num claro sinal de que o principal alvo da ditadura era o movimento que, somente em 2004, após décadas de um regime bipartidário de tendência conservadora, formado pelos partidos Colorado e Nacional.

Autora de inúmeros livros, sua obra poética era também um compromisso político. Em “Tempo de Lobos” (1970) relata o terror e o sofrimento impingidos ao povo uruguaio durante o regime militar. Sua poesia enfrenta o discurso com armas desiguais: opõe síntese à mentira, calor à loucura, sonho à violência. Proclama “todo espanto desta triste América / que está gritando aos quatro ventos do delírio”.

Alba morreu em 1996. Não viu Tabaré Vázquez e Pepe Mujica chegarem ao poder. Mas sempre soube que a Frente Ampla teria futuro. E nunca duvidou que seria um futuro de êxitos. Não viveu para ver o general Gregório Álvarez, ditador uruguaio de 1981 a 1985, ser condenado a 25 anos de prisão por ter participado de 35 execuções no regime militar. Mas os muros invisíveis contra os quais lutou desmoronam um a um no devir latino-americano.

*Gilson Caroni Filho é professor de sociologia e colabora com o “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Traço de Mestre“.

Fonte: http://quemtemmedodademocracia.com

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