Ainda em discussão no Brasil, educação de gênero é realidade na Argentina desde 2006

Por Aline Gatto Boueri. Ministério de Educação do país investe em capacitação docente para vencer resistências à incorporação do conceito em sala de aula.

“Reconhecer diversas formas de organização familiar”, “valorizar e respeitar formas de vida diferentes das próprias”, “romper com estereótipos de gênero”. Esses são alguns dos objetivos de atividades propostas em manuais do ME (Ministério de Educação) da Argentina destinados a docentes que trabalham com educação sexual em salas de aula do ensino fundamental.

Enquanto a inclusão da perspectiva de gênero e conteúdos sobre sexualidade no currículo escolar geram debates acalorados no Brasil – e prevalece a visão contrária ao ensino dessas temáticas – a Argentina conta, desde 2006, com uma Lei Nacional de ESI (Educação Sexual Integral). A norma garante aos estudantes das redes pública e particular de todo o país, da educação infantil (para crianças com até cinco anos) ao ensino médio, o direito a trabalhar em sala de aula conteúdos relacionados à sexualidade.

Dois anos depois da sanção da lei, em 2008, o Conselho Federal de Educação definiu os princípios que deveriam guiar a ESI, cujos pilares são a perspectiva de gênero, o foco em direitos, o respeito à diversidade, o cuidado com o corpo e a saúde e a valorização da afetividade.

Para a antropóloga Marcela Bilinkis, que pesquisa experiências de educação sexual em jardins de infância em um projeto da UBA (Universidade de Buenos Aires), os estudos de gênero contribuem para que a educação seja mais justa. “Essa perspectiva problematiza a narrativa do binarismo sexogenérico, na qual existem apenas dois sexos possíveis e uma única forma de sexualidade, a heterossexualidade”, explica a Opera Mundi. “Também abre possibilidades [para crianças e jovens] de identificação com outras formas de ser mulher ou ser homem, sem que isso apareça como patologia ou algo que precisa ser corrigido.”

Para a professora de ensino médio e capacitadora em ESI Verónica Zorzano, o conteúdo de educação sexual pensado para as escolas argentinas tem impacto em outros âmbitos da sociedade, como o acesso à saúde ou a prevenção de abusos sexuais. “É uma questão de dar ao jovem o poder ao se conhecer e conhecer seus direitos, ao saber que o que sente não é uma anomalia, ao identificar situações de abuso dentro ou fora da família”, destaca.

Desafios na implementação

Apesar dos quase 10 anos que já se passaram entre a aprovação da lei de ESI, nos quais também foram aprovadas leis de matrimônio igualitário e de identidade de gênero, o ME ainda enfrenta dificuldades para que a lei seja cumprida em todo o território argentino. Fontes consultadas por Opera Mundi afirmaram que entre os desafios da lei está fazer com que, em uma federação, todos os estados garantam que os conteúdos ligados à sexualidade sejam trabalhados na escola dentro dos pilares que sustentam a ESI.

Outro aspecto da lei que demanda um esforço especial é o caráter transversal da educação sexual, ou seja, que professores de todas as matérias trabalhem seus conteúdos com a perspectiva de educação sexual em sala de aula.

Federico Holc, professor do ensino médio em um colégio de Buenos Aires, conta que essa pulverização da responsabilidade em educação sexual termina por ser uma barreira para a implantação da lei. “A capacitação não é obrigatória e a transversalidade faz com que a transmissão dos conteúdos da ESI fique à mercê da boa vontade de cada professor”, reclama. Ele reforça que capacitação permanente em todas as escolas é fundamental, “senão a implantação vai demorar o tempo que demora para que toda a sociedade mude”.

Zorzano acredita que a mudança excede o âmbito escolar. “Há muitas coisas que os docentes devem repensar, que são muito diferentes do que eles mesmos aprenderam”. Ela conta que alguns oferecem resistência ao incorporar os conteúdos de ESI em suas matérias por motivos religiosos, mas também por questões ideológicas. “Mesmo para quem não exerce religião, há aspectos religiosos muito incorporados”.

Holc completa que, inclusive para aqueles que não têm um pensamento religioso, “a ideia de que existe algo natural no sexo e que isso define tudo é muito difícil de superar”

Formação docente

“Capacitação é o maior aliado no combate a essa situação”, diz Sofía Conti, socióloga e tutora virtual do curso para docentes, que desde 2013 trabalha com o PNESI (Programa Nacional de Educação Sexual Integral). Criado em 2008 pelo ME, o programa cuida da implantação da lei e, desde 2012, deu impulso a um esforço massivo de capacitação docente. “É um processo que demanda tempo e um investimento grande do Ministério de Educação. A convocatória é para docentes e diretores de escolas públicas, particulares e religiosas de todo o país, sem distinção”.

Conti conta que se coloca ênfase na formação em gênero e em diversidade sexual, justamente porque são os aspectos que sofrem mais resistência por parte dos professores. “Há um olhar ainda muito biológico sobre a sexualidade, com a ideia de que está vinculada à genitália. Ainda não se abandonou por completo a visão binária do sexo”.

Apesar das dificuldades e da sensibilidade do tema, que abrange a sexualidade na infância e a reorganização de conceitos muito arraigados e naturalizados na sociedade – como o que é ser homem ou mulher – a aprovação da lei trouxe consigo mudanças importantes na visão de professores sobre o assunto.

Um relatório sobre a aplicação da lei de ESI publicado na primeira semana de outubro pelo ME, do qual Conti participou como pesquisadora, revelou que 71% dos diretores e 75% dos professores entrevistados mudaram “muito” ou “bastante” suas ideias sobre educação sexual depois da capacitação oferecida pelo ME.

Ainda assim, quando perguntados sobre a incorporação dos pilares da lei de ESI nos projetos educativos de suas escolas, o aspecto de gênero foi o menos indicado: 84% dos diretores e 78% dos docentes identificaram sua inclusão. Já o cuidado do corpo e da saúde foi o mais mencionado, por 95% dos diretores e 89% dos docentes.

“A educação sexual por si só não garante algo concreto, justamente porque estamos falando de um campo de disputas sociais. Mas a existência de uma lei gera a obrigatoriedade – com todas as dificuldades que a ideia de obrigatoriedade implica – e é um impulso para que esses assuntos ganhem lugar nas escolas”, conclui Bilinkis.

Foto: Reprodução/Opera Mundi

Fonte: Opera Mundi

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