Ainda é 1500

Por Elaine Tavares.

A cena é tocante. Na beira do asfalto, um grupo de indígenas olha, entre estupefato e triste, outro grupo de gente, branca, postado em cima da passarela. Os brancos estendem faixas, denunciando uma “invasão” dos indígenas e dizendo que a demarcação das terras ameaça o seus lares. São moradores da comunidade Enseada de Brito, que fica próxima à terra Guarani, no Morro dos Cavalos. Vê-se que são “bem-nascidos” e poderiam estar no rol das chamadas “pessoas de bem”. Um deles ostenta a camisa amarela da CBF, de triste papel no Brasil atual.  Na verdade, um pequeno grupo organizado por políticos da região ligados ao DEM. De longe, eles se olham. Os Guarani, como sempre, no silêncio circunspecto. Esperam, tranquilos, mas não mansos.

Lá no alto, os brancos ostentam o preconceito e a ignorância. Pouco sabem sobre o mundo indígena. Em nem querem conhecer. Tal como no longínquo 1500, chegam com suas bandeiras e verdades, vendo o outro, diferente, como inimigo. E não são.

Já os Guarani observam com aquele mesmo olhar afiado com o qual miraram as caravelas naqueles tempos distantes. Viram os homens chegarem e acolheram com risos e oferendas. Mas, ao longo desses mais de 500 anos, eles já sabem que a hospitalidade nunca valeu de nada diante da cobiça. Carregam bem fundo na alma e no corpo e memória da violência, do massacre, do assassínio, do terror.

No último  domingo de sol, eles se olharam outra vez. Distantes. O diálogo mais uma vez impossível.

A terra da área do Morro dos Cavalos é uma terra que já foi demarcada, portanto, legalmente terra indígena. Ali vivem as famílias que conformam a comunidade Guarani. E, como é do seu costume, as famílias se movimentam dentro da área. Assim, hora estão aqui, ora ali. É a sua maneira de viver.

Incansáveis na perseguição aos indígenas, alguns políticos da região, liderados pelo vereador Pitanta (DEM), continuam provocando a discórdia na tentativa de jogar a comunidade de Enseada contra os Guarani. Já foi assim durante o processo de demarcação, foi assim durante a desintrusão, foi assim nas conversas sobre a obra na BR 101. Acostumados a mandar no pedaço, eles não reconhecem a forma de viver dos indígenas, não aceitam o fato de que a terra está demarcada e buscam atrapalhar a vida dos Guarani ao máximo, esperando talvez que eles desistam e vão embora.

É a história “patas arriba”. Chamam de invasores aos donos originários de toda aquela terra. Uma terra que os Guarani nem reivindicam, e poderiam. Afinal, tudo era deles. Mas, em vez disso, se contentam com o espaço conquistado, que nem é o ideal. Agora, tudo o querem é viver em paz, do jeito deles.

É uma vida de sobressaltos. Quando não têm de viver esses momentos patéticos, precisam se defender de jagunços, de jornalistas mal intencionados, de políticos oportunistas, da justiça, da polícia, de tudo. O tempo todo na defensiva, como se fossem bandidos. Não são.

A farsa da “manifestação” armada pelo vereador é só mais um ataque dos tantos, cotidianos e sistemáticos. Porque a intenção é colocar medo, fazer com que se movam, saiam da terra, abandonem tudo. Afinal, quem pode viver assim, o tempo todo ameaçado, acossado?

O dia acabou e os manifestantes foram para casa. Jantarão felizes, por certo, comentando a ação contra os índios, os quais odeiam sem conhecer. Na aldeia, os Guarani discutem e se preparam. Sabem que não acaba aí. A terra é ouro para o branco.

Estamos no século XXI e no Brasil os colonizadores conseguiram exterminar grande parte dos povos originários. As pessoas brancas acham bonito vê-los no museu ou nas apresentações do dia do índio. Mas, não suportam saber que eles estão por perto, que se movem, que lutam, que buscam garantir seus direitos. Índio bom é índio quieto e distante. Mas o fato é que eles estão aqui e aqui ficarão.

Tenho dúvidas sobre se essas pessoas que são capazes de sair à rua, portando cartazes que chamam os indígenas de invasores, estão abertas ao diálogo. Tenho dúvidas. Mas, é preciso seguir tentando. Os povos originários, que chegaram a um número de 150 mil nos anos de 1960, praticamente a beira da extinção, agora já passam de um milhão. Levantam-se e assumem sua identidade. Querem viver em paz nos seus territórios. Para isso é preciso que o povo brasileiro os conheça, sem armaduras, de peito aberto, pronto para um encontro verdadeiro.

No velho Brasil colônia, dominado pela cobiça, isso não foi possível. Mas, hoje, muitos há que se solidarizam, que respeitam, que apoiam e que lutam junto. Essa é ainda uma longa caminhada. Mas, não há saída. Como dizem os chiapanecas, das montanhas mexicanas: “nunca mais o mundo sem nós”. E assim é. É preciso reconhecer o território originário, demarcá-lo e garantir que os povos vivam em paz. Mas, não nos iludamos. O que está por trás de ações como essa de hoje, na Enseada, é a velha luta de classes. Os indígenas, como os trabalhadores empobrecidos, estão no mesmo lado. O inimigo é o mesmo. E contra ele, vamos – como dizia o velho Quixote – travar uma longa e feroz batalha.

Fotos e informações: Comunidade Guarani

Fonte: IELA.

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