Agrotóxico na alimentação: sinal vermelho

Por Gilvander Luís Moreira.

“Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Fez questão de registrar o(a) autor(a) do quarto evangelho da Bíblia. Sendo vegetariano e mantendo viva a comida de verdade, que é a da mãe, da avó, da bisavó, o povo dos Macabeus – relata a Bíblia – resistiu à invasão cultural do imperialismo grego que insistia em enfiar goela abaixo “carne de porco para todo mundo”. Para o povo da Bíblia “comer carne de porco” era trair a herança de muitas lutas libertárias. Hoje, seria empanturrar-se no McDonalds. Hipócrates dizia “que o alimento seja seu melhor remédio.” Mas hoje é preciso acrescentar que alimentos saudáveis, colhidos dentro do paradigma da agroecologia, sejam nosso melhor remédio. Tristemente, o veneno está na mesa do povo brasileiro, denuncia o cineasta Sílvio Tendler no filme-documentário “O veneno está na mesa”.

Diz a sabedoria popular que peixe morre pela boca, mas não só peixe, no Brasil muita gente está sendo morta antes do tempo pelo agronegócio. A indústria dos agrotóxicos, grandes produtores, comerciantes e muita gente que não tem compromisso com a vida está envenenando a alimentação do povo.

Li atentamente as 192 páginas do Relatório do Deputado Padre João Carlos (PT/MG), da Subcomissão Especial sobre o Uso dos Agrotóxicos e suas Consequências à Saúde, instalada em maio de 2011 e integrante da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Fiquei estarrecido. A situação é muito mais grave do que imaginamos. Epidemias avassaladoras de câncer e tantas outras doenças estão sendo construídas com incentivo/cumplicidade/omissão do Estado (leia-se poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), protagonismo da classe dominante e omissão/resignação de grande parte da sociedade.

O objetivo geral da referida Subcomissão foi o de “avaliar os processos de controle e usos dos agrotóxicos e suas repercussões na saúde pública”. Brasil, país celeiro do mundo, atualmente ocupa a primeira posição no valor despendido com a aquisição de substâncias agrotóxicas em todo o planeta. O Brasil se tornou a nação que mais consome agrotóxicos.

Paralelamente ao aumento no consumo, alavancado por uma política econômica estúpida que visa incluir pelo consumo, como se o ser humano fosse só “estômago”, está comprovado pelo Programa de Avaliação de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), da ANVISA : a) a presença de resíduos de agrotóxicos em alimentos acima dos limites máximos “recomendados”, não por quem come, mas pelo deus mercado que só pensa em lucrar e lucrar; b) a presença em muitos alimentos de venenos não permitidos. Afora isso, nas fiscalizações junto às empresas produtoras de agrotóxicos observam-se, recorrentemente, muitas irregularidades.

Assim, estão sendo contaminados o solo, as águas e o ar. Doenças se multiplicam em progressão geométrica. O envenenamento da comida está sendo perpetrado pelo uso exagerado de agrotóxicos, pelo emprego de venenos não recomendados para determinadas culturas ou ainda pelo desrespeito ao intervalo de “segurança(?)” – período mínimo entre a última aplicação e a colheita).

Apenas no ano de 2010 foram comercializadas mais de um milhão de toneladas (ou 1 bilhão de quilos) de agrotóxicos em todo o território nacional. Desse total, 750 mil toneladas foram produzidas no país, sendo o restante importado, cerca de 318 mil toneladas. Esses dados são oficiais. Ao incluir o comércio clandestino de agrotóxico, o contrabandeado, a quantidade deverá ser bem maior. Cada pessoa está ingerindo, em média, 5,2 quilos de agrotóxico por ano. Haja estômago! O crescimento do consumo de agrotóxicos no mundo aumentou quase 100%, entre os anos de 2000 e 2009. No Brasil, a taxa de crescimento atingiu quase 200%, o que indica que teremos no mínimo o dobro de pessoas doentes em relação à média mundial.

Atualmente existem 2.195 agrotóxicos registrados no Brasil, mas só 900 são comercializados. Ou seja, além dos já comercializados, outros 1.295 tipos de agrotóxicos podem entrar mercado a qualquer hora. Os registros são de titularidade de apenas 136 empresas diferentes, ou seja, poucas grandes empresas auferem muita grana envenenando a alimentação do povo. São cerca de 430 ingredientes ativos registrados. A comercialização desses produtos no país movimentou recursos da ordem de 14,6 bilhões de reais, somente no ano de 2009. Quantas pessoas adoeceram? Quantas morreram? Quanto o povo tem gasto, via SUS, para tentar socorrer as vítimas dos agrotóxicos?

Já existem fortes indícios de que o uso dos agrotóxicos provoca câncer e outras doenças graves. Relatório da ANVISA (2010) informa que foram encontrados 234 ingredientes ativos de agrotóxicos em hortaliças, frutas e leguminosas. Em “todas” as espécies testadas foram utilizados agrotóxicos não autorizados. No pimentão, por exemplo, no ano de 2009, 64,8% das amostras testadas revelaram a presença de agrotóxicos não autorizados.

Atenção: por “ser agrotóxico autorizado” não garante que não faça mal à saúde. Todo agrotóxico é substância química, é tóxico. No município de Lucas de Rio Verde, em Mato Grosso, constatou-se a contaminação do leite materno, das águas da chuva, do solo e até do ar. Estima-se que, a cada ano, 25 milhões de trabalhadores são contaminados com agrotóxicos apenas nos países empobrecidos.

O Relatório põe o dedo na ferida: “A incidência de câncer em regiões produtoras de Minas Gerais, que usam intensamente agrotóxicos em patamares bem acima das médias nacional e mundial, sugere uma relação estreita entre essa moléstia e a presença de agrotóxico. Neste estado, na cidade de Unaí, está sendo construído um Hospital do Câncer, em virtude da grande ocorrência desta doença na região. Segundo os dados apresentados na Ausculta Pública que realizamos nesse município, já estão ocorrendo cerca de 1.260 casos por ano para cada 100.000 pessoas. A média mundial não ultrapassa 400 casos por ano para cada 100.000 pessoas”. Ou seja, se não houver uma redução drástica no uso de agrotóxico, daqui a 10 anos, poderemos ter na cidade de Unaí mais de 12.600 pessoas com câncer, sem contar o grande número de pessoas que já o contraíram. Onde já se viu uma cidade com apenas 100 mil habitantes ter Hospital do Câncer? Eis um sinal dos tempos e do lugar! Feliz quem entender a gravidade desse sinal vermelho.

Várias leis já foram criadas para tratar dos agrotóxicos: Lei nº 7.802/1989, Lei nº 9.974/2000, Lei nº 11.657/2008, que institui o dia 18 de agosto como o Dia Nacional do Campo Limpo; Lei nº 6.938/81, referente à Política Nacional de Meio Ambiente e a Lei nº 12.305/10, referente à Política Nacional de Resíduos Sólidos. Essas leis são dribladas o tempo todo, além de serem “generosas” com a indústria dos agrotóxicos, o que fere mortalmente a dignidade humana e toda a biodiversidade.

Padre João Carlos afirma no Relatório: “O uso de agrotóxicos representa uma série de riscos à pessoa humana, à saúde humana, ao meio ambiente, fato que já é de conhecimento geral. Quando o uso é indiscriminado, tais riscos são muito mais elevados e não podem ser relegados, nem pela sociedade, muito menos pelo Poder Público, em especial pelos órgãos responsáveis pelo controle e fiscalização de tais produtos”.

A aplicação de agrotóxicos contamina os trabalhadores, as populações que residem nas áreas periféricas às lavouras, os alimentos, os cursos d’água, enfim, todo o ambiente. O sinal vermelho do agrotóxico acendeu-se. Feliz quem abraçar pra valer a luta pela construção de reforma agrária com agricultura familiar segundo o paradigma da agroecologia, caminho para produção de alimentos saudáveis e vida em plenitude.

Gilvander Moreira é Frei e Padre Carmelita, mestre em Exegese Bíblica/Ciências Bíblicas, professor de Teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Via Campesina.

E-mail: gilvander(0)igrejadocarmo.com.br

Fonte:http://www.correiocidadania.com.br/

Foto: http://www.brasil.agenciapulsar.org/nota.php?id=8786

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