“Uma parte da sociedade escolhe ignorar seu dever de contribuir na direção de construir soluções aos problemas gerados por violências históricas e presentes direcionadas às comunidades indígenas e seus territórios. Outra parte busca se mobilizar diante da dor experimentada por pessoas que, conforme noticiado pela Apib com imagens aterradoras veiculadas em suas redes sociais, nos primeiros cinco dias de agosto já atingiu dezenas de jovens Guarani e Kaiowá baleados por pistoleiros armados no Mato Grosso do Sul”, escreve Danilo Silva Guimarães, professor do Instituto de Psicologia da USP, em artigo publicado por Jornal da USP, 09-08-2024.
Eis o artigo.
O mês de agosto é marcado por diversas mobilizações indígenas no Brasil e no mundo. Diferente do Dia dos Povos Indígenas, o 19 de abril, criado no Brasil em 1943 por um decreto presidencial, tendo em vista orientações do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, o 9 de agosto é o Dia Internacional dos Povos Indígenas do Mundo. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), valorizando a memória da primeira reunião de criação do Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas da Subcomissão de Prevenção de Discriminações e Proteção das Minorias da Comissão de Direitos Humanos, realizada em Genebra em 1982.
Dentre as mobilizações que acontecem em todo país, destaco a convocação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) contra a negociação de direitos indígenas. A Apib tem sido a maior referência do movimento indígena no país nos últimos anos. Tem sido responsável pelo Acampamento Terra Livre, que acontece todos os anos em Brasília/DF.
Dentre outras atividades para o mês de agosto, lideranças acompanham reunião da câmara de conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF), que discute o que tem sido nomeado pelo movimento indígena como Lei do Genocídio Indígena. Trata-se da Lei 14.701/2023, que estabelece como marco temporal para demarcação das terras indígenas o ano de 1988, sendo que estudos arqueológicos apontam a presença indígena em todas as regiões do atual território brasileiro há mais de 10 mil anos.
Na Universidade de São Paulo, em 2012, iniciamos a construção de uma Rede de Atenção à Pessoa Indígena (Rede Indígena), no Instituto de Psicologia. Já, naquele momento, questões relativas à busca por cuidados em saúde e educação de qualidade passavam pela necessidade de se assegurar o pleno exercício dos povos quanto aos seus processos de organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Desde a psicologia, a possibilidade de habitar serena e confiadamente é condição necessária para a saúde integral das pessoas. Para aproximar-se desse objetivo, em muitos contextos indígenas, são necessários esforços para combater tudo aquilo que ameaça os costumes e práticas ancestrais que são as bases para a educação e promoção da saúde.
Não se trata de indisponibilidade para mudanças, mas de serem respeitados e assegurados os direitos das comunidades indígenas viverem nos seus territórios, os costumes e práticas sustentáveis, bem como a articulação de saberes e escolhas quanto ao que desejam construir para as futuras gerações.
Nas interações que pessoas e comunidades indígenas estabeleceram com a Universidade por meio da Rede Indígena, uma das reflexões emergentes resultou na elaboração do Jogo da PEC215. A PEC 215/2000 é uma proposta de emenda constitucional brasileira formulada no ano 2000 que visa mudar as regras do processo de demarcação de territórios indígenas e quilombolas, restringindo a expansão de áreas indígenas já existentes. Ela é uma precursora da atual Lei do Genocídio Indígena, que aponta para o mesmo propósito de dificultar que os indígenas possam habitar serena e confiadamente hoje, territórios que seus ancestrais habitaram desde milhares de anos atrás. O jogo da PEC215, foi, então, uma construção, dentre outras, sobre o papel criativo que a universidade pode ter no diálogo para encontrar soluções para impasses decorrentes do colonialismo que exterminou pessoas, comunidades e povos indígenas e da colonialidade que persiste inviabilizando as vidas indígenas.
Trata-se de um tabuleiro que descreve um percurso formativo de pessoas indígenas que hoje enfrentam o desafio de saírem de seus territórios para retornarem com alguma contribuição para suas comunidades. O percurso se dá sobre uma cobra grande, imensa, que não pode ser acordada, dado que ela poderia devorar quem caminha. O corpo da cobra passa pelos territórios desmatados, cercamento das áreas de circulação e moradia originariamente indígenas, crescente poluição das águas e do ar, crescimento das cidades, até chegar em Brasília/DF, centro do poder político que impacta diretamente a vida das pessoas e comunidades. Um poder político entendido como permeado pelos interesses econômicos que perpetuam, contemporaneamente, o genocídio indígena.
Uma parte da sociedade escolhe ignorar seu dever de contribuir na direção de construir soluções aos problemas gerados por violências históricas e presentes direcionadas às comunidades indígenas e seus territórios. Outra parte busca se mobilizar diante da dor experimentada por pessoas que, conforme noticiado pela Apib com imagens aterradoras veiculadas em suas redes sociais, nos primeiros cinco dias de agosto já atingiu dezenas de jovens Guarani e Kaiowá baleados por pistoleiros armados no Mato Grosso do Sul.