Por Pedro Borges.
“Wakanda for ever”! Esse é o lema dos guerreiros e das guerreiras do país fictício localizado entre Ruanda, Congo e Uganda e representado no filme “Pantera Negra”. Inspirada no personagem das histórias em quadrinhos, a obra cinematográfica da Marvel e estrelada por figuras como Lupita Nyong’o, Forest Whitaker, Danai Gurira, Michael B. Jordan, Chadwick Boseman, entre outros, conta a trajetória do príncipe T’Challa, responsável por defender as tradições milenares do povo de Wakanda e assegurar que a tecnologia desenvolvida pela nação seja usada para o bem.
O filme, com a arrecadação de US$ 1,297 bilhão e o posto de décima maior bilheteria do cinema de todos os tempos, apresentou as principais características do movimento afrofuturista: a projeção de um amanhã positivo para africanos e afrodescendentes, a exaltação de costumes ancestrais e uma representação positiva negra.
A ideia do afrofuturismo, porém, não se iniciou com os quadrinhos e nem com o filme Pantera Negra. As primeiras referências do termo datam da década de 1960, nas letras do compositor de Jazz e poeta, Sun Ra, que se descrevia como “filósofo cósmico” e ser vivo de outro planeta. Na literatura, a principal expressão do gênero é a escritora Octavia Butler, primeira mulher negra a ganhar destaque no campo da ficção científica. O romance “Kindred”, publicado em 1979, conta a história de uma mulher negra da década de 1970, que volta no tempo e passa a viver o cotidiano das sociedades escravistas. Ela passa a conviver com seus antepassados e a lutar pela sobrevivência de todos, para que ela tenha condições de nascer, no futuro.
O termo, porém, só foi utilizado pela primeira vez em 1993, pelo estadunidense Mark Dery no texto “Negro para o futuro: entrevista com Samuel R. Delany, Greg Tate e Tricia Rose”. Na ocasião, ele descreveu o movimento como “ficções especulativas que tratem de temas afro-americanos e que abordam preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século XX”.
A descrição do pesquisador, contudo, é questionada por artistas e intelectuais negros, que entendem como uma contradição o afrofuturismo ter como principal e primeira definição a de um autor branco. Uma delas é a multiartista, pesquisadora, cientista do Afrofuturismo e graduanda pela UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais), Zaika dos Santos.
“Entendo que o conteúdo descrito por Dery estimulou muitas aberturas, mas creio que é necessário rever essa perspectiva antropológica eurocentrista de se falar de assuntos que não são pertencentes aos lugares de fala”.
A pesquisadora Kênia Freitas, pós-doutoranda em Comunicação na UNESP e pesquisadora sobre afrofuturismo, se debruça sobre o tema e entende o movimento como “uma conjunção entre narrativas, obras de ficção especulativa e feitas a partir da experiência negra”. Para ela, “o importante é que sejam obras em que o ponto de vista e a perspectiva principal seja de pessoas negras e do seu universo de vivência e experiência”.
Afrofuturismo e o Brasil
O movimento ganhou amplitude, e o que antes era algo restrito aos EUA, agora se transformou em referência na diáspora negra e no continente africano. No Brasil, o movimento também tem uma série de adeptos.
Um deles é o escritor Fábio Kabral, autor da obra “Caçador Cibernético da Rua 13”, que se passa no “Mundo Novo”, na metrópole de “Ketu Três”. Lá, todos os mecanismos tecnológicos são movidos pela energia eletromagnética dos espíritos ancestrais e dos fantasmas.
“A força da natureza, representadas por meio dos orixás, são poderes presentes no dia a dia do universo das minhas obras. E tudo isso ocorre pela minha vivência como iaô de um terreiro de Candomblé”, explica.
A experiência de Fábio Kabral com a religião de matriz africana, que tem uma relação intrínseca à natureza, faz da sua narrativa afrofuturista algo diferente do acostumado em outras representações futuristas, repletas de metal, carros, sem qualquer árvore ou área verde.
“Devo dizer que a concepção de tecnologia associada à natureza é uma visão nossa, devido à nossa vivência no Candomblé”, diz.
O ambiente natural também é explorado no filme Pantera Negra com a participação de animais silvestres entre o universo tecnológico, caso de Rinocerontes e de uma região repleta de área verde no em torno da montanha onde se localiza o poder político e tecnológico de Wakanda.
Foi essa relação entre o afrodescendente e o futuro que atraiu para o afrofuturismo os olhares de Junião Junior, integrante da banda Senzala Hi-Tech e responsável pela identidade visual do grupo.
“Algumas coisas que me chamaram muito atenção foi ter artistas pretos dentro das artes e ter essa coisa do negro pensando o futuro, porque o negro sempre falou do passado e pensou no presente, mas você não via o preto pensando futuro. E ai você se identifica”, conta.
A banda trabalha com instrumentos descritos como rústicos, caso dos tambores e outros mais eletrônicos, com o intuito de produzir uma mistura entre passado e futuro. A perspectiva afrofuturista também fica evidente nas ilustrações sobre a banda e nas capas de discos e faixas do grupo.
“Desenhar negros é uma coisa que eu sempre fiz, que eu ia continuar desenhando. Daí veio essa história de trazer as nossas heranças tanto de cabelo quanto de vestimenta, quanto de criação artística na cor. Trazer uma coisa ligada a tecnologias de antigamente e de agora. A criação artística do Senzala foi fazer um mix disso tudo e soltar na rua para ver o que dava”, diz.
A ficção e o tempo
O tempo é uma característica importante dentro do afrofuturismo. As manifestações artísticas e políticas próximas dessa expressão cultural costumam refletir sobre o futuro, mas não só.
“Existem várias definições do afrofuturismo que pensam não só nisso que está óbvio no título, que é esse futuro, mas também o quanto essa relação de futuro se faz também tanto por uma fabulação do passado e uma reescrita do nosso presente”, afirma Kênia Freitas.
Zaika dos Santos questiona, inclusive, as definições de realidade e ficção com as quais trabalhamos no cotidiano. Para ela, a história oficial alterou e omitiu muitas informações sobre africanos e afrodescendentes, e o afrofuturismo traz elementos concretos sobre o passado, bem como planeja um futuro necessário para o planeta, como uma relação mais saudável com o meio ambiente.
“Nossa história foi silenciada. É preciso desmistificar que a nossa ficção afrocentrista sempre foi o real, e a que a dita ‘realidade’, a ficcionalização do negro pela perspectiva eurocentrista, é uma mentira. Isso já é um desafio gigantesco. Ou seja, não creio que Sun Ra e Octavia Butler falem de ficções e sim de verdades. Eu sigo fortemente esse desafio porque não acredito na narrativa histórica mundial que é vendida como ‘oficial’ e silenciou, roubou, deslegitimou e apagou a narrativa história de outros continentes”, explica.
Kênia Freitas acredita que as experiências negra no passado e presente estão próximas da narrativa de ficção. O imaginário de que aliens de outros planetas podem vir para a Terra, raptar sujeitos e os colocar em situações de violência e vulnerabilidade fazem parte da realidade concreta e histórica dos africanos e afrodescendentes.
“Nas ficções científicas, às vezes se fala de uma invasão alienígena, que as pessoas que são sequestradas e levadas para outros planetas tem que se deparar com uma cultura nova. Bom, foi o mesmo que os europeus fizeram com as populações africanas. Isso com uma série de torturas físicas e psicológicas como uma forma de controle. Se isso não é um processo cruel de abdução, eu acho que não tem outra coisa na sociedade tão expressa que tenha sido”, diz.
A experiência negra nos dias de hoje, fora do escravismo institucionalizado e generalizado em África e nas Américas, pode inclusive ser uma narrativa afrofuturista para aquelas e aqueles que vieram antes.
“Se eu penso nos meus antepassados, eu sou uma ficção especulativa deles, eu sou uma imaginação de um futuro inimaginável diante da situação perversa e cruel que nossos antepassados escravizados passaram. Nesse lugar a gente é uma imaginação de um futuro quase impossível que se concretizou não por milagre, magia, mas pela força, resistência, trabalho, integridade dos nossos”, afirma.
Ao misturar elementos do passado e do futuro, o afrofuturismo promove uma ruptura com a linearidade de tempo construída pela tradição eurocêntrica e branca de pensamento, segundo Kênia Freitas, pós-doutoranda em comunicação na UNESP e pesquisadora sobre o tema.
“A gente pensa em relações cíclicas, aquelas que fazem e se refazem o tempo inteiro, de reimaginar o passado como uma forma de reviver o presente e de construir o futuro. Essas coisas não estão separadas, não estão nessa linearidade cronológica branca”, afirma.
Autoestima e o protagonismo negro
O capricho e a beleza das ilustrações de Junião Junior são propositais. O ilustrador e integrante da banda Senzala Hi-Tech, bem como outros artistas do universo afrofuturista, destacam a necessidade de se construir uma autoestima positiva para o africano e o afrodescendente.
“Eu gosto dessa questão da autoestima, de colocar pessoas dançando. Para cada faixa musical, ou disco, a gente pensa num elemento para ser colocado”.
Para além da autoestima, o movimento preza pelo protagonismo negro para se contar as histórias a partir de uma perspectiva afrodescendente. Fábio Kabral, autor da obra “O Caçador Cibernético da Rua 13”, acredita que essa seja uma especificidade do afrofuturismo dentro da literatura.
“Na verdade, desconheço outros estilos literários nos quais tenha como pré-requisito o protagonismo de autores e personagens negras e negros, como é o caso do afrofuturismo. O que há são autores negras e negros produzindo narrativas nas quais pessoas negras são protagonistas, independentemente do gênero literário. O único estilo no qual há esse pré-requisito é o afrofuturismo”.
Karolina Desiree, uma das coordenadoras de um curso de escrita afrofuturista e diretora do documentário “Yalodé: Mulheres (Re)Existindo”, recorda a mãe para contar sobre a importância da comunidade negra ser a autora da sua história.
“Lembro da minha mãe, quando eu tinha sete anos de idade, me falando: ‘minha filha, você tem que estudar para saber contar a nossa história, para que a nossa narrativa não continue sendo contada exclusivamente por brancos. É você que tem que ir para a África saber de onde viemos, e não ficar refém da visão do antropólogo’. Não é de hoje que o Movimento Negro tem essa fala”, recorda.