Adriana e a versão “oficial”

cobrador culpado

Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.*

Florianópolis fica mais intensa e interessante quando a população vai às ruas para defender seus direitos. Acende-se o debate, as posições se apresentam, o diálogo popular se abre, se torna espontâneo, honesto, às vezes tenso e, não poucas, até engraçado. O que vale a pena é que o exercício democrático da opinião, além da institucionalidade vulgarizante, aparece, flui, e não poucas vezes nos educa e permite discernir.

Adriana é de Lages, auxiliar de enfermagem. Veio morar na ilha em 2000. Pelo que parece gosta de um papo agitado. Beira os 40 anos. Com o rosto cansado e marcado pelo suor do final da tarde, foi baldeada pelo ônibus que vem do Ticen ao terminal Canasvieiras. Espera para pegar o Rio Vermelho sabendo já do corredor estafante que aumentará sua irritação na SC 403. Na fila de explorados e turistas pobres, protesta contra os cobradores de ônibus que, segundo a mídia, os técnicos e sabichões, são os culpados do aumento abusivo da passagem do transporte coletivo na Capital catarinense. Tem muita bronca de cobrador, muita. Ela escutou na rádio, assistiu na TV e leu no jornal. Adriana sabe que é assim. A maioria na fila sabe. Alguns opinam… ninguém duvida. Quase que até o cobrador do latão está convencido: ele é culpado (Ora! Não vai ser o beneficente empregador.).

Como este escrevedor gosta de uma boa conversa e não consegue se resistir a um debate, se adentra com seus míseros saberes no ringue do papeado. Para abreviar narrações dispensáveis, o troca-troca de ideias com a auxiliar de enfermagem, percorreu a fila, o corredor tortuoso da rodovia estadual, o patiozinho veicular com ciclovia que vai desde Ingleses até o fim de Capivari de Baixo, e a metade da geral do Rio Vermelho. Lá se foram alguns milhares de palavras e cinquenta minutos que começaram tensos, viraram pedagógicos e concluíram civilizadamente favoráveis à Classe Trabalhadora.

Adriana tinha todo o direito de pensar que estava certa em toda sua linha argumental. A linha argumental do governo municipal, das empresas e, como é natural, dos monopólios da mídia que a massificam e a sacramentam. Adriana argumentava, como a imensa maioria da população, fazendo eco, padecendo o “síndrome de papagaio”, me permito a grosseria. Mas, de forma honesta e sem culpa alguma. A digna auxiliar repetia o roteiro que, desde a última década do século passado, as empresas de ônibus, com ajuda do executivo municipal de turno, as câmaras de vereadores que soubemos escolher e o judiciário de circunstância, plantam nos veículos de formatação de opinião pública. Ou seja, nas usinas da “opinião publicada”.

Talvez, a única culpa que se possa depositar nas costas de Adriana e da imensa maioria da população de Florianópolis e Santa Catarina, é a responsabilidade acrítica de se conformar muito rapidamente com uma única versão de qualquer fato ou acontecimento. O cansaço pelo trabalho exaustivo e mal remunerado, o estrês que os serviços essenciais de péssima qualidade proporcionam, a educação pauperizada e o descrédito na classe dirigente, fazem com que as pessoas produzam até a autoexploração e não dediquem um segundo à mínima reflexão.

A população de Florianópolis foi convencida de que mora no paraíso dos paraísos, como se só com a beleza natural fosse mais do que suficiente para viver. Aqui vivem famosos, vem morar as estrelas do esporte, da TV, dos negócios e da fantasia. Florianópolis é um espetáculo de gente charmosa nos jornais e de gente escondida nos becos, nos travessões dos serviços terceirizados, instáveis, precários, mal pagos. Adriana cuida de duas senhoras com mais de 80 anos e, segundo confessa, estão bem mais saudáveis do que ela. Não é de se duvidar.

Por que Adriana, trabalhadora, deveria culpar os cobradores que pertencem à sua mesma classe social? Porque Adriana, como todos e todas, foi cultivada para servir aos ricos, os patrões, os donos das empresas, os empreiteiros de serviços, os príncipes do mercado. Os sem-vergonha que lucram às custas de quem trabalha, produz, adoece e se endivida para sustentar uma classe empresarial e política majoritariamente parasita.

Adriana precisa ler, precisa se informar melhor, precisa peregrinar buscando outras versões dos fatos. Precisa se libertar da mídia que a atazana com pseudonotícias, espetáculos de mau gosto, falsos assassinos e escondidos vitimários. Necessita ler sem moderação até recuperar a esperança em si própria, na Classe Trabalhadora à qual pertence. Adriana precisa empoderar-se da democracia direta.

Adriana é real. Mora no bairro do Rio Vermelho. Pega três ônibus para ir ao emprego. Viaja 5 horas por dia, trabalha oito, com mais 4 horas cuida da casa, faz comida, lava roupa, educa filhos e ajuda o marido. Assiste à TV “oficial”, às vezes tem uns trocados para comprar o diário “oficial” e escuta a rede de notícias “oficial”.

Ontem, acredito piamente, foi estimulada para usar a internet além do facebook, tirar a poeira de alguns livros velhos, ou comprar outros em algum sebo. Adriana é uma pessoa honrada e já sabe que o problema da tarifa do ônibus da ilha dos mistérios não é tão difícil de compreender, e não é culpa dos cobradores de ônibus.

Foto e montagem: Tali Feld Gleiser.

 *Raul Fitipaldi é jornalista e co-fundador do Portal Desacato e da Cooperativa de Produção em Comunicação e Cultura – CpCC

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