Não sei se foi proposital. Talvez, usar o domingo de Páscoa tenha sido uma tática encontrada por Christine Assange para atualizar e chamar a atenção internacional às condições do filho, Julian, preso na cidade de Londres, Inglaterra, desde o dia 11 de abril.
“Meu filho ainda não conseguiu receber visitas. Nem mesmo de seus advogados! Já se passaram quase duas semanas desde que ele foi detido na prisão de Belmarsh. É escandaloso continuar a mantê-lo isolado”, disse, no Twitter, aos quarenta seis mil e setecentos seguidores que possui e a quem mais quisesse ler e compartilhar a mensagem na noite pascoalina de 21 de abril.
Ruminar se foi proposital é legítimo – e eu realmente penso sobre isso -, mas um possível propósito por detrás da escolha da data não invalida a ação de Christine, mesmo que ela tenha sido milimetricamente calculada. Num mundo onde o marketing é, via de regra, mais valorizado do que o conteúdo, me parece mais do que justo e até inteligente que uma mãe use o domingo de Páscoa, a data do calendário ocidental em que o filho mais famoso de todos os tempos teria renascido (nenhum juízo ou preferência religiosa aqui, só uma constatação histórica), para dar maior visibilidade ao caso de Julian Assange, fundador do WikiLeaks. Sei dos riscos que corro a partir deste ponto, mas vejamos: o domingo pascal é uma das datas mais festivas e comerciais do planeta. Baseada no consumismo – primeiro, de uma ideia, depois, de produtos comestíveis – ela mobiliza bilhões de pessoas. Seja na reunião de família em torno da mesa regada a vinho e bacalhau (aqui, sim, é questão de preferência pessoal, embora eu ponha as barbas de molho sobre o que nos é vendido como bacalhau), seja no movimento intenso da indústria e do comércio na fabricação e venda de ovos de chocolate cada vez mais caros, cheios de açúcar e com propagandas nocivas voltadas a crianças, há três pontos de convergência entre o dia santificado e o caso Assange: um filho que pode ser crucificado, uma mãe desesperada e interesses poderosos influenciando a prisão.
Inimigos mil
Se fosse um personagem de ficção vítima de assassinato, Assange seria daqueles que mexem com milhões de cabeças que se esforçam para descobrir o algoz. Julian fez muitos inimigos em pouquíssimos anos. Contando uma década de exposição pública mundial – se tomarmos 2009 como o marco da ascensão do WikiLeaks, criado em 2006 – pode-se dizer que a proporção de adversários cresceu em progressão geométrica.
A história já está bem contada por gente muito mais gabaritada do que eu, então, só um breve apanhado: em 2009, o WikiLeaks enfureceu os mandachuvas dos Estados Unidos ao publicar milhares de telegramas diplomáticos secretos, que continham críticas do governo estadunidense a líderes mundiais, como o presidente russo, Vladimir Putin, e membros da família real saudita. No ano seguinte, 2010, veio a projeção internacional de Assange, quando explodiu na rede mundial de computadores um vídeo militar dos EUA mostrando um ataque de helicópteros que matou 12 civis em Bagdá, no Iraque, em 2007. O grupo também divulgou 90 mil documentos secretos da campanha bélica liderada pelos EUA no Afeganistão, seguidos por quase 400 mil relatórios militares internos detalhando as operações em solo iraquiano.
Como se fosse pouco, o WikiLeaks foi considerado por analistas como um dos propulsores da Primavera Árabe, que reuniu gigantescas manifestações populares entre 2010 e 2011. A organização também vazou documentos reveladores da corrupção da família que governava a Tunísia, estopim dos protestos na região.
No entanto não era o bastante para Julian. Porque não foram “só” os poderosos instalados no setor público os alvos de Assange e companhia. O poder privado não passou incólume. E antes que alguém diga “lá vem esse povo do Joio arrumando qualquer desculpa pra falar de comida”, vamos dar nomes aos bois: Monsanto (claro!), Nestlé e Coca-Cola caíram no radar dos vazamentos.
Da gigante agroquímica, hoje pertencente à corporação alemã Bayer, uma pilha de documentos mostrou que o todo-poderoso Departamento de Estado dos EUA agiu como marqueteiro da indústria agrícola de biotecnologia, inclusive com os serviços de alto escalão da então secretária do governo Obama, Hillary Clinton (sim, a democrata que enfrentou Donald Trump demonstrando a consistência de uma gelatina liquefeita). Os telegramas diplomáticos também pegavam uma parte do governo do republicano George W. Bush.
Produzida entre 2005 e 2009, a papelada veio à tona no grande vazamento do Wikileaks de 2010 e evidenciou uma estratégia conjunta para promover a biotecnologia agrícola estadunidense, forçando países de menor poder econômico e político a importarem culturas e alimentos transgênicos que eles não queriam e/ou precisavam, além de fazer lobby para que os governos – os dos países em desenvolvimento, principalmente – adotassem políticas públicas para o cultivo de plantações biotecnológicas.
Já a transnacional de origem suíça Nestlé foi pega com a boca na botija mais tarde. Em 2016, o grupo fundado por Assange levou a público um relatório elaborado pela empresa no ano de 2009. O documento determinava: “O mundo está ficando sem água”. Bom, pode não ser mentira, mas o relato teve origem numa pesquisa enviada a oficiais do governo estadunidense em caráter secreto, o que já é para deixar orelhas em pé.
A empresa considerou como limite planetário sustentável máximo a utilização de 12,5 mil quilômetros cúbicos de água potável por ano. Em 2008, quando a pesquisa foi feita, o registro mostrou o uso de seis mil quilômetros cúbicos. Com a projeção de aumento da demanda, de acordo com a Nestlé, o consumo global se tornaria inviável em questão de poucas décadas.
O relatório previu que cerca de um terço do mundo sofrerá com a escassez de água em 2025 e os maiores problemas se darão nas regiões do Oriente Médio, norte da Índia, norte da China e oeste dos Estados Unidos. E que uma verdadeira catástrofe virá até 2050, quando a falta de água será mundial.
E é aí que entram os “conselhos” da mega-companhia de alimentos, concentrados em quatro medidas: a criação de um mercado virtual para controle da água (com a própria Nestlé sendo um dos principais atores desse mercado, lógico); eliminação de subsídios e medidas preferenciais dadas à produção de biocombustíveis (a indústria dos combustíveis fósseis agradece); adoção geral de plantas modificadas geneticamente que requeiram menos água na manutenção (adeus, agroecologia); e liberalização do comércio da agricultura por todo o globo (dá para imaginar qual o tamanho dos produtores que se dariam bem nessa, não?).
Para não dizer que só vivemos de notícia velha (mas o que seria notícia nova, hoje?), falemos deste mês. No dia 12 de abril, dia seguinte à prisão de Julian Assange, o WikiLeaks publicou um “relatório interno de incidente da Coca-Cola”, de 19 de setembro de 2007. O documento revela que um caminhão da Coca atingiu 19 crianças na vila de Kiwira, na região de Mbeya, na Tanzânia, numa estrada próxima da fábrica da corporação no país da África Oriental. Dez das crianças morreram e as outras nove foram hospitalizadas. Em protesto, aldeões queimaram o veículo.
Rapidamente, no mesmo dia 12 deste mês, a Coca-Cola se apressou em explicar:
“O grave e triste incidente que ocorreu na Tanzânia, em 2007, envolvendo um veículo da Coca-Cola é de conhecimento público e teve cobertura da imprensa daquele país. Seus desdobramentos foram acompanhados de perto pelas autoridades locais e por nossa companhia. O documento vazado pelo WikiLeaks descreve com exatidão o que ocorreu e qualquer outra especulação sobre o caso é mentirosa”, destacou nota oficial da megaempresa.
Certo. Mas não é de se estranhar que uma questão desse tamanho, envolvendo dez crianças mortas e uma das maiores marcas do mundo, não tenha recebido a atenção midiática que merecia?
Bem, vamos lá: a franquia da Coca-Cola na Tanzânia pertence à Bonita Bottlers, que tinha, em 2007, o bilionário Reginald Abraham Mengi como CEO, que também era (ainda é) CEO da IPP Media, organização de comunicação muito influente na região. Além disso, ele preside a Confederação das Indústrias da Tanzânia e a Associação de Proprietários de Mídia da Tanzânia.
Se as ligações ainda não estão descortinadas, vale uma reforço. Ao final do “relatório interno de incidente” da franqueada da Coca, vem os seguintes direcionamentos:
“Um comunicado de imprensa foi entregue (sobre o atropelamento)” e “será liberado para três empresas de mídia amigáveis”.
Mídias amigáveis? Creio que a pergunta meio que se responde sozinha.
Mais um personagem
Podemos ter outro personagem nessa história. Fora o crucificado, a mãe em desespero e os poderosos que querem calar vozes, temos um potencial traidor.
Foi o presidente do Equador, Lenín Moreno, quem revogou o asilo concedido a Assange. A decisão que levou o jornalista e ativista australiano à prisão após sete anos vivendo na embaixada equatoriana em Londres derrubou a concessão de Rafael Correa, que também presidiu o país sul-americano. Deve ser só coincidência que a retirada do asilo tenha ocorrido depois que o WikiLeaks publicou que Moreno teria envolvimento com empresas situadas em paraísos fiscais.
Lenin Moreno, aliás, foi vice-presidente nos governos de Rafael Correa. E concordou com o asilo dado ao ciberativista em 2012. Segundo Correa, o ex-aliado é:
“O traidor maior da história equatoriana e latino-americana, Lenín Moreno, permitiu que a polícia britânica entrasse em nossa embaixada em Londres para prender Assange. Moreno é um corrupto, mas o que fez é um crime que a humanidade jamais esquecerá”, escreveu, no Twitter, o ex-presidente, que atualmente mora na Bélgica.
Ah, sim: estou ciente de que Julian Assange foi acusado de assédio sexual e até de estupro na Suécia. Também sei que essas acusações surgiram depois do estouro provocado pelos vazamentos no começo desta década e que as denúncias foram arquivadas (podem ser reabertas), mas o fato é que autoridades britânicas confirmaram que a prisão tem relação com um pedido de extradição feito por autoridades estadunidenses, com a primeira audiência prevista para dia 2 de maio.
É nesse ponto que não interessa em nada o que eu penso sobre Assange individualmente. Existe uma poderosíssima conjunção de forças que quer a deportação do fundador do WikiLeaks para os EUA. Os direitos civis planetários, já tão ameaçados pela onda reacionária que engoliu várias partes do mundo, estarão ainda mais em risco se isso se concretizar. E não nos enganemos: as fundamentais liberdades de informar e comer melhor estarão na frente da fila do fuzilamento.