Acostumar com o vírus? Por Tiego Rocha Rebello.

    Por Tiego Rocha Rebello, para Desacato.info.

    Senhor excelentíssimo governador, deixa ver se entendi com o que devo me acostumar. Sou apenas um relês professor influenciado pela ciência e não percebo coerência entre as recomendações médicos sanitárias de órgãos internacionais e nacionais da saúde e as ações do governo federal e estadual. O Federal demonstra serias limitações cognitivas, expressa em erro grosseiros de localização geográfica (troca de siglas básicas de Estados da federação brasileira), defende medicação não recomendada, deslegitima o uso de máscara, promove aglomerações – me parece inútil o diálogo (até porque ele não existe – se bem que isso não é um privilégio do federal). Já o senhor ano passado tinha um comportamento tão diferente em relação a pandemia, que se tornou uma pessoa meio dúbia – de crítico à cúmplice da ineficácia da União.

    Não consigo perceber o benefício na contenção do vírus a aglomeração gerada nas escolas. O que me deixa com muitas dúvidas: quem está certo a pesquisa acadêmica ou a corrente das redes sociais? Como disse sou apenas um relês professor confuso tentando entender: dentro da sua lógica de política, o que vale mais a vida ou a propriedade? Não vou entrar aqui em debates filosóficos, sociológicos, antropológicos ou históricos das expressões, pois tenho muitas dúvidas se o senhor respeita saberes produzidos pela ciência de um modo geral. Respeita?

    Por isso, na tentativa de compreender as suas ações, gostaria de fazer algumas perguntas ao excelentíssimo, prometo que são poucas:

    1. O senhor gosta de professor, de estudantes e seus respectivos familiares?
    2. Qual é a essencialidade da educação presencial? Qual benefício para contenção e combate à pandemia?
    3. Por que não estamos sendo testados e vacinados, já que estamos em ambientes nem sempre adequados e somos essenciais?
    4. Como evitar que crianças e adolescentes cumpram os protocolos de segurança no caminho casa escola e escola casa?
    5. Se dobrou os casos, inclusive de óbitos, na faixa etária de 0 a 20 anos: a aula presencial não é uma grande exposição de jovens que não tem previsão de serem vacinados? A aula presencial é realmente segura para esses jovens? A aula presencial não seria um grande laboratório para mutações do vírus? Ao invés da aula presencial não seria o caso de pensar e articular políticas de inclusão digital que manteria isolada parcela considerável da população, sem incubar e disseminar o vírus a quem tem um maior potencial de desenvolver casos graves da doença?
    6. O que o senhor entende por inclusão digital? Garantir as ferramentas de acesso e acessibilidade a internet a docentes e discentes não seria uma maneira de conter o vírus e preservar vidas? O dinheiro gasto nos polos remotos não poderia ser investido em tablet e acessibilidade à internet para alunos de baixa renda?
    7. Em época de eleição tanto se fala em parceria público privada, não seria o momento de realizar acordos com fornecedoras de internet locais para garantir o acesso ao ensino remoto e garantir o direito constitucional de acesso a educação de maneira segura? Ou isso só se aplica para abertura de estrada com dinheiro público e depois cedê-las para exploração privada com pedágios?
    8. Caso eu venha a morrer por decorrência do Covid-19 contraído na escola: o Estado vai indenizar a minha família? O Estado vai pagar pensão aos meus filhos? Ou vai jogar a culpa no professor?
    9. Caso um familiar do convívio do professor ou do aluno venha a morrer por decorrência do Covid-19 contraído deles, que contraíram na escola: o Estado vai indenizar a família? O Estado vai indenizar por danos morais e desestruturação de núcleos familiares? O Estado vai jogar a culpa no professor, no inconsequente comportamento pueril e juvenil, na quebra de protocolos sanitários no ambiente doméstico?
    10. Em casos de sequelas provenientes do contágio de docentes, discentes ou seus familiares de convívio diário haverá alguma pensão diante da incapacidade de exercer ou vir a exercer um ofício?
    11. Devo me acostumar a conviver com as mortes pela falta de capacidade do Estado de suprir necessidades básicas de garantir o direito constitucional a vida com medicamentos, UTI e atendimento básico de saúde?
    12. Devo me acostumar a conviver com as mortes pela falta de capacidade do Estado de suprir necessidades básicas de garantir o direito de acesso a educação pública de qualidade, de ofertar o ensino remoto e promover inclusão digital?
    13. Devo me acostumar a conviver com as mortes pela falta de capacidade do Estado de gerenciar a crise sanitária e econômica?
    14. Devo me acostumar a conviver com as mortes de colegas professores, de alunos e de familiares?
    15. Devo me acostumar a conviver com o medo, ansiedade, depressão e outros abalos psicológicos de professores e de alunos?
    16. Devo me acostumar a conviver com o desprezo evidente a minha categoria e com o luto?
    17. Devo me acostumar a conviver com políticas aparentemente fundamentadas em princípios eugenistas, com a negação da realidade médico sanitária e o desmonte da educação pública?
    18. Essa política negacionista, que prefere não perceber os riscos do ensino presencial sem vacinação em massa faz parte do plano de desmonte da educação pública, democrática, cidadã e de qualidade?
    19. As aulas presenciais fazem parte de algum plano maior de higienização social?
    20. Existe algum plano maior de colocar o Brasil no topo da desgraça do Covid-19 e a escola pública é uma forma de estabelecer um mínimo de seletividade? O estado está engajado nesse plano para demonstrar o protagonismo da região sul na desgraça da pandemia?
    21. Ameaçar ACT e não chamada de concursados que suprima as verdadeiras demandas do magistério é estratégia para nos fragilizar e dividir a categoria?
    22. O senhor ao entrar em um prédio em chamas ligava a eletricidade e chutava portas com chamas atrás? Não né? O senhor sabe que isso seria um comportamento suicida ou no mínimo extremamente arriscado: por que exige-nos um comportamento suicida ou no mínimo extremamente arriscado?
    23. Está confortável no seu gabinete?

    Perdão pela repetição de palavras e alguns momentos de redundância. Hábitos de professor quando o aluno nos parece com claras dificuldades de compreensão do discurso científico, ou apresenta algum tipo de limitação. Se não souber o significado de alguma palavra, qualquer bom dicionário resolve o problema. Perdão novamente, vícios de professor sempre orientar.

    Não esqueça de escrever e assinar o seu nome completo, afinal de contas é importante assumir a autoria de suas ações e ideais. Aliás é fácil se colocar na posição confortável de refletir “daqui a 5, 10 anos” e “olhar para trás e dizer; olha ‘nisso a gente errou, nisso acertou”, pois esses erros têm nomes: são pessoas que já morreram, que vão morrer ou ficarão com sequelas permanentes por decorrência do coronavírus. Assuma a sua responsabilidade.

    Espero que perguntas não lhe ofendam. Desejo-lhe a mais alta estima e que os fantasmas dos seus erros lhe atormentem até a sua última noite de sono.

    Atenciosamente o professor.

     

    A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

     

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